28 de janeiro de 2019

Green Book.


   Tenho-lhes falado de filmes tão, tão maus, e este Green Book é tão, tão bom. Uma maravilhosa estória, inspirada em factos reais, ambientada na América ainda mal convalescida do esclavagismo. Neste contexto, movimentam-se as duas personagens principais: Frank Vallelonga, descendente de imigrantes italianos, e Don Shirley, um afroamericano. Vallelonga é o típico americano dos bairros problemáticos de Nova Iorque: bronco, incivilizado, rude, de maus modos. Don Shirley, pelo contrário, é um músico de formação clássica, culto, regrado, de fino trato. Os seus destinos cruzam-se quando Vallelonga responde a um anúncio de emprego, logo ele, tão racista, para ser motorista de Don Shirley.

   Os dois rumam aos estados do sul dos EUA,  de um preconceito inimaginável, em tournée, onde observamos situações que têm tanto de deplorável quanto de caricato. Plena inversão de papéis: motorista branco e patrão negro, que tamanha celeuma foi causando. Todos sabíamos do estigma racial dos anos 60 naquele país, mas, a confirmar-se que o que se vê no filme foi mesmo assim, o mais desconfiado torna-se solidário com Luther King. E este filme, quase providencialmente, surge numa altura em que tanto se fala de racismo em Portugal.

   Vallelonga é, ele mesmo, racista, e a maior lição que tiramos do filme é esta: o amizade regenera, faz-nos mudar, crescer. Afinal de contas, Vallelonga tinha, ele mesmo, complexos por ser filho de imigrantes italianos, e isso vê-se no decorrer do filme. Diz-se que o medo gera preconceito. Às vezes, a máscara do preconceito ajuda-nos a esconder as nossas fragilidades. A hipocrisia social também lá está: não aceitamos pôr a boca num copo em que negros beberam, mas oramos a Deus Nosso Senhor antes das refeições. Não permitimos que um negro use a nossa casa de banho, sacie a fome entre nós, mas queremos que nos dê música. Tudo terá sido pensado ao milímetro. Depois, entre um argumento de excepção, temos duas interpretações inenarráveis, e que justificam as nomeações nas categorias de melhor actor principal e melhor actor secundário na cerimónia dos Oscars deste ano, de Viggo Mortensen e Maershala Ali, respectivamente, que este último, ganhando, junta a estatueta à que já tem por Moonlight.



  Green Book também justifica bem a nomeação para melhor filme. É, efectivamente, uma longa muitíssimo bem idealizada, com uma narrativa coerente, organizada. Daquela amizade improvável, que tinha tudo para correr mal, aprendemos a confiar mais na natureza humana. E que não se pense que o filme é um drama carregado. Não. Vallelonga consegue ser quase um selvagem caricato. Da relação que se estabelece entre eles, que depressa passa de profissional para pessoal, ganham ambos: Vallelonga, em respeito, em tolerância, em rectidão moral; Don Shirley, por seu turno, passa a ter um amigo, um fiel amigo, apesar de tudo, numa sociedade que o aplaude e rejeita, inclusive pelos seus pares, que não se revêem num negro que veste fato e gravata. Shirley, que se sujeita a tudo porque acredita poder participar na construção de um país mais justo para a portentosa comunidade de afrodescendentes, mais não seja derrubando estigmas e mitos, entre frango frito no banco traseiro do carro alugado.

   Ficamos também a saber o que é o Green Book afinal, o livro verde, que de verde teria muito pouco; negro, a cor do carvão. A cor da vergonha, da vergonha que todos deveríamos sentir por ter permitido que tamanhos atentados à dignidade humana subsistissem por tanto tempo, e nos EUA, de forma ostensiva, até há meros quarenta anos. Na Europa, dificilmente acreditamos que aquilo que vemos em Green Book fosse possível.

   É, até agora, o meu favorito.

4 comentários:

  1. Gostei da resenha. Ansioso para melhorar logo e poder assistir.

    Beijão

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    1. Espero que sim, querido amigo. Espero que melhore logo, independentemente se para assistir ou não.

      um beijinho.

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