20 de janeiro de 2019

Maria, Rainha dos Escoceses


   Ontem, depois do exame - sim, ainda não me vi livre de Direito Fiscal -, fui ao cinema. A minha ideia inicial era a de ver outro filme, contudo o tempo fez-se curto, e ainda tive de jantar, pelo que escolhi este Maria, Rainha dos Escoceses, cujo foco incide num período da história que muito me fascina,  ali o século XVI inglês. Tinha, também, imensa curiosidade para ver como Saoirse Ronan se saía, de quem sou fã desde Lady Bird.

   Contextualizando-o um pouco, a acção do filme tem lugar na Escócia e em Inglaterra, à época reinos distintos. Na Escócia, reinava Maria Stuart e, em Inglaterra, Isabel I, a última dos Tudor a sentar-se no trono inglês. Maria e Isabel eram primas, mas separava-as algo mais do que os seus reinos: a religião. Enquanto que a primeira era fiel a Roma, Isabel, como se sabe, restaurou o protestantismo, após breve interregno na reforma que vinha de trás, de Henrique VIII, protagonizada pela sua irmã e antecessora, Maria I. O filme, como se deduz, trata todas aquelas intrigas palacianas. Sem casamento e sem um herdeiro, Isabel temia que a prima lhe usurpasse o trono - o mesmo medo que tinha dos homens, levando-a a nunca se casar. Maria, talvez por ser católica e por não ter sido bem-aventurada no(s) casamento(s), que foram três, ao todo, reuniu muitos inimigos em seu torno. Isto é história. Foi deposta, já após ter sido mãe, e procurou asilo político na Inglaterra de Isabel, que lho deu por anos, até se provar (ter-se-á provado?) uma conspiração de Maria, que a levaria ao cadafalso.

   Gostei, modo geral, das interpretações. Imenso da fotografia e da caracterização. Ronan, como se esperava, sublime. Lamento não poder dizer o mesmo de Margot Robbie, que aqui é Isabel I. Não sei se por falha da actriz ou se pelo facto de qualquer tentativa de recriação de Isabel nos levar a compará-la com a magnânima Isabel de Cate Blanchett, não me convenceu. Faltou algo àquela Isabel I para ser totalmente credível. Não senti garra. A interpretação foi demasiado morna para uma personagem histórica daquela envergadura.


    Surpreendentemente, ou não, - para mim foi -, temos cenas íntimas bastante fortes no filme, e algumas de natureza gay. A surpresa não vem das cenas, e nem do serem gays, que já havia destas coisas naquele tempo; a surpresa vem da compreensão de Maria Stuart quando apanha o marido, Lord Darnley, na cama com o seu cortesão italiano, David Rizzio. Bom, bom, bom, quando vemos o actor que faz de Darnley, Jack Lowden, percebemos por que motivo o italiano não lhe resistiu, e vice-versa, que, a julgar pelo que vemos no filme, o rei-consorte também apreciava bem os dotes musicais, e não só, do músico… De salientar a descontracção com que Maria, católica, no século XVI, encarava aquilo a que, a determinado momento, chama de natureza.

   Com a morte de Maria, o trono da Escócia passa por regentes, e é o seu filho único, Jaime, que lhe sucede, como Jaime VI na sua terra-natal e como Jaime I em Inglaterra, que Isabel nunca deixou descendência. Todavia, ambos os reinos manter-se-iam distintos, partilhando apenas o mesmo monarca, quando o Acto de União, em 1707, já no reinado de Ana, os uniu por fim no novo Reino da Grã-Bretanha e Irlanda.

   Aconselho-o vivamente.

8 comentários:

  1. Tenho curiosidade, mas depois de ter visto algo semelhante há uns anos atrás com a Cate Blanchett, vai ser um pouco dejá vu...

    Abraço amigo

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    1. Se comparado ao filme da Blanchett, um mau déjà vu.

      Um abraço.

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  2. A história desta senhora é uma completa tragédia, e muita dela devida a ela mesma. Li várias biografias delas, onde ela é tida como uma pessoa ambiciosa, com escolhas duvidosas.
    E foi a sua ambição que permitiu colocá-la numa posição falsa, presa de outros que se aproveitaram dela e a usaram a seu bel-prazer.
    Casada três vezes, a primeira sem que tivesse qualquer voto na decisão, as outras fê-lo por pura ambição e com conhecimento de causa.
    Nunca entendeu que não era uma pessoa querida, nem pelos seus súbditos escoceses nem pelos ingleses e, muito provavelmente, nem mesmo pela sua família francesa, os Guise, que a usaram como moeda de troca para adquirirem influência na corte.
    O primeiro marido, Franscisco IX, proveniente da corte de Henrique II, que não era conhecida pela sua probidade moral, era um incompetente, quase anão, gago e tido por fraco de espírito, mas ainda assim foram levados, de forma perfeitamente anacrónica, a declararem-se como herdeiros do trono inglês após a morte de Maria Tudor. Até mandaram cunhar baixela com estas premissas, o que fez deles uns visionários sem ligação à realidade.
    Claro que era "persona non grata" a Catarina de Medicis, que, essa sim, governava a França por trás dos panos, qual aranha que não queria outras rivais na sua "teia", que reconheceu a sua ambição e percebeu que ela iria mover mundos e fundos para a concretizar; acabou por recambiá-la para a Escócia sob o pretexto de ir governar o seu reino e, de caminho, solicitar o trono inglês, que ela, Catarina, sabia perfeitamente, estar fora do alcance de Maria, ou não a deixaria partir. Os jogos de poder na altura eram extensos e complexos.
    Claro que o 2º casamento com Darnley foi uma jogada política, pois este tinha tanto direito aos tronos inglês e escocês como ela, Maria.
    É difícil de perceber que Darnley tenha tido qualquer ligação com Rizzio, pois ambos estavam em campos opostos, mas ... o desejo e a sexualidade têm coisas que a razão comum não entende. Aliás, há várias vozes (quiçá maldicentes), que dão Rizzio como pai do filho de Maria, o futuro rei de Inglaterra.
    Claro que Darnley, que era um homem muito culto, considerado como uma pessoa de alguma beleza, com uma educação à altura de um herdeiro presuntivo, que era, também foi considerado como despótico e igualmente ambicioso e mesmo intolerante, não percebendo que o sua mulher não o elevasse à estatura de co-reinante, visto que, na prática, tinha tanto direito como ela, e era homem, o que, na época, contava bastante numa sociedade de contexto patriarcal.
    Claro que os ingredientes para o seu assassínio estavam lançados, e, claro, desapareceu, não se sabe muito bem como.
    O último casamento com Bothwell, revelou-se outro erro grave.
    Claro que este último também é obrigado a fugir para a Dinamarca e ali morre isolado e louco.
    E quanto a Maria todos sabemos como acabou a história. É muito interessante como é vista a morte desta mulher numa série da BBC, de seis episódios, denominada Elizabeth I, que passou na nossa televisão nos anos 70, protagonizado por uma esplendorosa Glenda Jackson (a pessoa que, à data, considero que melhor interpretou esta rainha).
    Há gente que nasce com tendência para o erro, e a sua biografia narrada por Stefan Zweig faz-lhe justiça. Este escritor, que admiro profundamente (a sua obra "O mundo que eu vi", é do melhor que me foi dado ler), escreveu poucas biografias e salientou que escolheu as pessoas sobre quem se debruçou pelas suas fragilidades e anacronismos.
    Descreve-as de uma forma humana e até carismática, mesmo quando é difícil vê-las sob essa luz.
    Uma boa semana
    Manel

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    1. Nunca li nenhuma biografia de Maria Stuart, que se considerava a legítima sucessora de Isabel; aliás, considerava estar acima de Isabel nos direitos sucessórios. A julgar pelo filme, ela chegou a intitular-se rainha de Isabel.

      O que sei de ambas, sei-o através de livros onde são mencionadas. Livros sobre a história britânica, enciclopédias… Apaixonei-me pelos Tudors com uma série que passou aqui há uns anos na TV, de seu nome, precisamente, "The Tudors". Bastante interessante. Claro que, antes disso, já me fascinava a ousadia de Henrique VIII, que, por capricho, cortou com Roma, muito embora a Igreja Anglicana seja quase um meio-termo, uma ponte, entre o protestantismo e o catolicismo. Há quem diga que a liturgia é toda ela bem católica. É facilmente explicável: enquanto que Lutero cortou com a autoridade do Papa por divergências teológicas, Henrique fê-lo porque o Sumo Pontífice se recusou a reconhecer o seu enlace com a concubina. Acresce que Catarina de Aragão era catolicíssima, tia de Carlos V, o imperador. Havia muitos interesses que não interessava afrontar.

      Uma boa semana, Manel, e obrigado.

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  3. Sabe que o facto de Inglaterra se ter tornado anglicana é um processo muito mais complexo. A anulação do casamento era um só dos motivos, e penso que talvez não fosse o mais importante.
    Após a recusa de Clemente VII em dar o seu primeiro casamento como anulado, Henrique VIII foi aconselhado por dois homens astutos e inteligentes para quebrar com Roma: Thomas Cranmer, arcebispo de Cantuária e Thomas Cromwell, um jurista conceituado e seu conselheiro.
    Por outro lado, percebo perfeitamente Clemente VII, pois encontrava-se "entre a espada e a parede", isto é, entre Carlos V, Sacro Imperador Romano Germânico, e Francisco I de França, que o forçaram a tomar partido, sendo que ambos aqueles potentados pretendiam dominar a Itália e ter uma voz no domínio sobre o vastíssimo mundo cristão europeu.
    E, à época, tinha igualmente de se preocupar com invasão otomana, comandada por Soleimão, o Magnífico; a par de todos estas pressões, os movimentos protestantes estavam a ganhar terreno na Europa e, porque "um mal nunca vem só", teve de lidar com o pedido do rei inglês para anular uma coisa para a qual outro papa, Júlio II, tinha dado dispensa em 1509, visto que ele, Henrique VIII, pretendia casar-se com a mulher do seu irmão, o que, de acordo com as leis religiosas, era indispensável dispensa papal, sendo a mulher sobrevivente obrigada a jurar não ter consumado o casamento.
    Como era possível conciliar dois factos antagónicos?
    Para mais, Clemente VII, em 1527, à época do pedido, tinha sido feito prisioneiro por Carlos V, o qual saqueou Roma, e, por esse facto, encontrava-se sob a alçada deste imperador; por outro lado Catarina de Aragão exercia uma pressão formidável sobre o papa, através do sobrinho, para que este não permitisse a anulação do seu casamento.
    Clemente VII lá foi protelando o mais que pode, até que, finalmente, e mediante nova pressão inglesa, decidiu não anular.
    Claro que Henrique aproveitou o facto, e sob sugestões dos seus conselheiros, decidiu da melhor forma possível para si, claro, nem ele tinha nada de tonto!
    Como a igreja romana possuía, através das ordens conventuais, um vasto mundo de terras, para lá das riquezas acumuladas ao longo de séculos (o que acontecia em todo o mundo católico), o facto de confiscar-lhes todo este império a favor da coroa, também cortou a obediência a Roma e o fluir continuo de prebendas a favor da igreja.
    Henrique ganhou em poder temporal, religioso e económico numa medida que ultrapassou tudo o que poderia conceber, o que lhe permitiu continuar com a sua política de expansão e consolidação do poder.
    E, em simultâneo, conseguiu ver o seu casamento anulado pelo arcebispo de Cantuária, dando-lhe via direta para a sua união com a mulher seguinte.
    "Matava uma quantidade de coelhos com uma só cajadada".
    Claro que em todo este processo perdeu o apoio de um homem que admiro profundamente: Sir Thomas More, católico, filósofo, homem de estado e autor da Utopia, um livro que admiro bastante. Acabou por lhe mandar cortar a cabeça!
    E, no final de contas, a versão anglicana até nem diferia na católica, só alterava o chefe da igreja em Inglaterra, o que lhe permitia fazer as pazes com Deus.
    Assim, esta situação era muito complexa e abriu caminhos que se revelaram profícuos para a coroa inglesa.
    Mais um relambório, com desejo de dias agradáveis
    Manel

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    1. Desconhecia esses meandros. Segundo o que se lê e o que é mais comentado, Henrique VIII foi persuadido, sim, a cortar com o Papa pelo diferendo contra a anulação do casamento e porque também, de certo modo, já estávamos a avançar rumo ao absolutismo, que depois, em Inglaterra, seria travado já no reinado de Carlos I, quando houve, de facto, um braço de ferro entre este e o Parlamento. No tempo de Henrique VIII, sujeitar-se a coroa ao poder temporal começava a causar muitos incómodos.

      Ou seja, eu sabia perfeitamente que o motivo não havia sido apenas a anulação do casamento; havia toda uma teia por trás. A Igreja era, e é, poderosa e riquíssima.

      Tanto Cranmer como Cromwell, bem assim como More, tiveram mortes trágicas. Todas elas naquele período entre Henrique e Maria. More foi um exemplo de rectidão e de fé, e por isso é até santo na Igreja Católica. Foram tempos conturbados na Inglaterra e na Europa. Estávamos no auge do protestantismo e às portas do Concílio de Trento e da resposta da Igreja aos novos ventos - foi o maior corte com a Santa Sé desde o Grande Cisma do século XI.

      Sim, o anglicanismo não difere assim tanto do catolicismo. Mais difere o luteranismo, por exemplo.

      Têm sido dias calmos. :)

      Obrigado, Manel.

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  4. Não lhe deixo o blog ... :)
    Como estou certo que sabe, Lutero distanciou-se da igreja romana por razões diversas das de Henrique VIII, nutrindo este fortes sentimentos contra aquele ex-monge, tornado protestante "herético", como ele referia.
    Tal era o desagrado de Henrique perante este homem que escreveu um tratado, "Defesa dos Sete Sacramentos", denunciando-o e aconselhando as pessoas a não se deixarem influenciar pelas ideias heréticas de Lutero.
    Como era bem de ver, o papa, Leão X, exultou perante este manifesto e concedeu-lhe o título de "Defensor da Fé", que o rei aceitou e rejubilou.
    Claro que esse manifesto foi logo considerado, por Lutero e pela maior parte das pessoas esclarecidas, como proveniente da pena de pessoas mais doutas no campo, como era o caso do Cardeal Wolsey ou mesmo More, que possuíam a estatura necessária para poderem ser considerados como autores de tal escrito.
    Durante muito tempo Lutero tentou contemporizar com Henrique, levando a cabo uma aproximação que nunca se veio a concretizar, dado os sentimentos negativos que o primeiro despertava no segundo.
    Depois da cisão com Roma, e quando Henrique se virou para outras autoridades religiosas no sentido de aprovarem as suas ações, Lutero vingou-se recusando-lhe a sua compaixão e compreensão e aconselhando-o a manter-se casado com Catarina de Aragão e a arranjar uma nova esposa, referia-se a Ana Bolena, claro.
    Anteriormente Henrique VIII tinha aconselhado Lutero a abandonar a sua esposa, pois este, entretanto, tinha-se casado, e a entrar num convento para redimir os seus pecados. "A vingança do chinês!"
    O que é mais interessante é que, mais tarde, após a quebra com Roma, e no sentido de se sentir lógico consigo mesmo, Henrique VIII decidiu vir a público e afirmar que, afinal, não tinha sido ele o autor do Manifesto contra Lutero!
    Toda esta situação é anacrónica para o papado, pois, após ter considerado Henrique VIII como "Defensor da Fé", teve de negar-lhe a anulação do casamento e, mais tarde, após a cisão, excomungá-lo definitivamente em 1538. A que danças e contradanças os grandes do mundo se entregam!
    Se fossemos nós, comuns mortais, seríamos literalmente queimados como heréticos, eles limitam-se a combaterem entre eles com palavras mais ou menos ofensivas, mas sem consequências de maior para as as suas reais pessoas!
    Manel

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    1. Sim. Lutero afastou-se da Igreja por razões relacionadas com a fé. Com as indulgências, primeiramente, e depois suscitou uma série de assuntos, entre os quais a forma correcta para a obtenção da remissão dos pecados e até se a Bíblia deveria ou não ser traduzida e disponibilizada. À época, a Igreja defendia que a Bíblia não podia ser interpretada individualmente, senão por intermédio de um sacerdote.

      Sim, também sabia dessa tomada de posição em defesa de Roma por Henrique VIII, primeiramente, para depois, então, se revoltar, o que atesta que, no seu âmago, Henrique era católico. Li algures que se teria convertido no leito da morte. Se não foi ele, foi Carlos II. Talvez esteja a confundir.

      Sabe que até hoje me pergunto como é que Lutero não foi parar à fogueira?

      Cumprimentos, e obrigado, sempre.

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