6 de dezembro de 2015

Evocação do homem só.

 
    Uma tarde que anoitecera cedo. Um prenúncio de madrugada longa. A estação fervilhava àquela hora. Dezenas de pessoas encaminhavam-se para os respectivos comboios, no afã de um domingo que antecede outra jornada de trabalho.

    As luzes da estação incidiam sobre o átrio, desvendando um espaço amplo, frio, impessoal. Indiferente. Despedi-me à entrada. Quis dizer mais do que disse. Em como tudo estava errado na tela mal pintada. Por que terá de ser assim? 
    Lá fora, um amontoado de gente faminta. Alguns bem vestidos. A mendicidade batera-lhes à porta, acidental e bruscamente. O senhor das castanhas olhava de soslaio, desdenhando. A afluência espantava-lhe a freguesia. Velhos e novos, de todas as cores, proveniências. O voluntário não parava de sorrir, distribuindo sumos, pratos de comida indiscernível e palavras de apreço. Um breve contacto que, ainda assim, alenta em existências de solidão.

    Gesticula mensagens imperceptíveis. Brada aos que o rodeiam. Tem uma deficiência na perna que o impede de andar correctamente. A razão, há muito que perdeu. Mais um filho do colonialismo, da guerra e do sonho frustrado de uma vida de ventura na metrópole. O rosto preserva as marcas do sofrimento. Os olhos mantêm especial vivacidade e brilho, toldados, contudo, pelo intelecto que soçobrou aos anos de carência afectiva e de miséria.

      Os taxistas reúnem-se, conversam. Arrumam as malas portentosas dos passageiros nos porta-bagagens e arrancam. Os estabelecimentos das imediações fazem negócio. Tudo reportou-me, inexplicavelmente, aos vendilhões do templo. Não por um carácter divino do local, que não tem. Pela convivência entre o dinheiro, vil, profano, e a ajuda desinteressada de quem colmata necessidades tão prementes.
        E a virtude, sabemos onde está.

18 comentários:

  1. Há que pensar que nunca dizemos demais; dizemos o que tem que ser.
    Um abraço.

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  2. No umbigo de cada um :(

    Gostei muito do texto, reflete muito bem esta nossa cidade e sociedade

    Grande abraço amigo

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    1. Hei-de escrever sobre situações bonitas e idílicas, assim me depare com elas.

      um abraço afectuoso, amigo Francisco.

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  3. um dia o poeta cantou:
    ... "Hoje eu sei que quem me deu a ideia
    De uma nova consciência e juventude
    Tá em casa, guardado por Deus
    Contando vil metal...

    Minha dor é perceber que apesar de termos
    Feito tudo, tudo, tudo, tudo o que fizemos
    Nós ainda somos os mesmos e vivemos
    Ainda somos os mesmos e vivemos
    Ainda somos os mesmos e vivemos
    Como os nossos pais ...

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    1. Por mais que façamos, não evitamos o que somos. Acredito nisso. E verifica-se com frequência.

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  4. Voltaste em força com os contos / narrativas. Gostei

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    1. Obrigado.

      Só escrevo a dor.

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    2. Mark se quiseres também consegues escrever sobre outras coisas! Acredita nissa. Estava a ler o teu texto e pensei no dia de hoje, nas pessoas com que me cruzei, na jovem mãe que chamou de avó a uma mulher pouco mais velha que ela e que depois me confessou não ter sido chamada de "avó" por alguém que deveria de ter a mesma idade que ela. Teria mais para contar, mas nesta altura do ano começo a ficar sem palavras para escrever seja o que for. Gostaria de em pouco palavras escrever certas coisas mas não consigo.

      Se falas na virtude, ela está sempre connosco, mas é necessário sabermos da sua existência :-)

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    3. Com o "só", não quis dizer que apenas escrevo isto; quis dizer, isso sim, que só escrevi a dor. Estas narrativas, aliás, são uma parcela ínfima do que escrevo.

      Evidente que sim. Todos escrevemos o que queremos. Mas, sabes, creio que estamos mais à vontade com o que nos sai da alma.

      Eu referia-me a uma virtude quase sagrada, no bem-querer, no altruísmo. Tão díspar dos negócios que por ali se fazem. Não sei se me expliquei. :)

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  5. Pow, arrasou! Não tenho palavras pra escrever o quanto eu gostei. Triste sim, mas belo. Não pode negar isso (na resposta ao Francisco)

    Abraços!

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  6. Com a chegada do entardecer, a cidade mostra um dos seus lados mais obscuros, porém, retrato fiel da pura realidade.

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    1. Lisboa esconde desigualdades gritantes dentro das suas fronteiras administrativas. Apenas recordamos o belo, o que queremos ver, fotografar. É uma cidade cheia de injustiça.

      Quem é de cá percebe que houve um aumento do número de pessoas carenciadas. Vendem-lhes, aos turistas, uma cidade europeia que não existe.

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  7. um jornal online tem um artigo sobre os cacifos solidários, nos quais os sem-abrigos podem guardar os seus pertences. agora, todos os dias passo por dois, no mínimo, dois sem abrigo com os parcos pertences sobre um pequeno estrado que vão arrastando por aí e por ali. a vida dos que nada têm e a vida dos que nem sabem a sorte que têm e passam por eles e fingem que não os vêem.
    já vi carrinhas de ONG na santa apolónia, no saldanha, não só com pessoas sem abrigo, mas outras que só têm essa oportunidade para comerem alguma coisa.
    nesta época, dói mais, principalmente porque muitas dessas pessoas que vivem na rua não têm família ou não se dão bem com a que têm. problemas mentais, toxicodependência, alcoolismo, por exemplo, são algumas das causas. são vidas complicadas.
    bjs.

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    1. Exclusão, desemprego prolongado, alcoolismo, toxicodependência, problemas do foro psiquiátrico... Tantos os motivos que empurram essas pessoas para fora do que entendemos como "a sociedade".

      E há muita fome escondida. Os ditos "novos pobres". Vi muitos que aparentavam estar ali só mesmo pelo prato de comida. Pessoas que provavelmente terão casa, mas que não têm dinheiro para comprar comida.

      Lamento muito por essas pessoas e saúdo aqueles homens e aquelas mulheres que andam por ali a ajudar. Pode ser hipocrisia, mas nesta época custa mais. Vem aí o Natal, o Inverno (aliás, está já bastante frio), e aquelas almas nada têm.

      um beijinho.

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  8. Consegui transportar-me para o local do teu relato com extrema facilidade. Parabéns pelo texto e pelas emoções que ele transmite, Mark!

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