Quando os garotos subiam as ruas íngremes de paralelepípedo cinzento, húmido do orvalho de Outono, arredavam os seus medos. Por aquelas horas, sabiam-se os donos da aldeia, fazendo seu cada beco, o antigo pelourinho do sítio, o pátio da banca do Senhor João, que por tantas vezes os presenteava com figos sempre que, vindos da escola, por lá passavam.
Martinho avisara atempadamente a avó, lavadeira, mulher a quem as moças instavam por conselhos, tornando a velha senhora no oráculo de Figueira da Luz, do seu fito para a noite de Todos-os-Santos. A pele das suas mãos mantinha notável brilho e maciez. Encontravam-lhe a alma, todavia, no olhar quebrantado, que denunciava uma vida que não conhecera sonhos de menina. Não havia quem a enganasse nos dinheiros. A sua argúcia impunha deferência e admiração.
Corriam desalmadamente sob o signo da lua cheia, batendo de porta em porta, misturando a crendice com a pândega própria de miúdos que tudo quanto conheciam estava nos limites do lugarejo onde nasceram. Não percebiam a fome, os castigos, tareias, não enquanto houvesse casa a salvo do peditório.
As trouxas, delicadamente cosidas pelas mães e avós, guardavam os doces e os frutos das oferendas. Martinho sustinha a sua, farto de orgulho, costurada pela avó, com o bordado de fio de linho azul. Ostentava-a com cuidado, como uma representação material do carinho daquela mulher a que nem o cansaço inibia de o sentar no seu colo, de lhe afagar o cabelo, de beijar a sua bochecha sarapintada.
Que na sua casa havia carência de bens, mas fartura de afectos.
Que na sua casa havia carência de bens, mas fartura de afectos.
Outro dia conversando com uma amiga, surgiu uma ideia que vai de encontro ao teu texto, muitas vezes, na busca do que acreditamos ser o melhor acabamos por nos afastar do que realmente importa. A carência de bens é algo muitas vezes difícil e penoso, mas a carência de afetos nos mutila a alma e deixa cicatrizes profundas dos quais muitos nunca mais irão se recuperar.
ResponderEliminarAcredito que seja sempre muito importante, nos dias bons e nos dias não bons, durante nossa caminhada sempre dar umas olhadelas para trás, para que nunca nos esqueçamos das coisas que realmente nos importam! :)
Obrigado por esse texto tão especial, muito bonito e que praticamente funciona como um portal a uma outra época... impossível não ver a cena que você tão bem descreveu!
Abração!
Olá, amigo Latinha.
EliminarAs feridas que a falta de afecto deixam não são facilmente cicatrizáveis. Falo pelo que li, vi, e não por conhecimento próprio, felizmente. E quando se cresce, o que se lembra é o carinho, ou a falta dele. Como se as dificuldades económicas nada fossem perto de um gesto de ternura.
Eu tenho um passado bonito em criança. Frequentemente a ele recorro.
Obrigado, amigo. :)
grande abraço!
Que nostalgia que me fizeste ter em relação ao Pão de Deus :)
ResponderEliminarGrande abraço amigo Mark
Sabes, lembrei de ti à medida em que escrevia. Idealizei um cenário do interior do país e discorri. :)
Eliminarabraço grande, amigo Francisco.
;D
EliminarSempre gostei mais do Halloween, talvez porque entre o pão que Deus dá e as guloseimas que as Bruxas oferecem sou mais tentado às Bruxas :-p
ResponderEliminarBelo texto! E "fechas" com chave de ouro, É preciso dizer mais alguma coisa? Sim, estava eu nas compras quando ouço "Vision of Love" da tua estimada Diva Mariah Carey e lembrei-me de ti!
O Halloween tem a sua graça. Seria giro misturar um pouco de cada tradição, sem as descaracterizar. :)
EliminarOh, que engraçado. "Vision of Love", um clássico. O seu primeiro single. Há imenso tempo que não a ouço.
Obrigado, Limite.
Está um texto muito bonito. Gostei! ^^
ResponderEliminarAbração :3
Obrigado, Mikel. :)
Eliminarabraço grande.
"As trouxas, delicadamente cosidas...", anos antes de serem substituídas pelos sacos do "Continente".
ResponderEliminarUm texto muito bonito, Mark. Largaste a toga e soltaste o coração!
É provável. Não situei no tempo; creio que é adaptável.
EliminarObrigado, Goody. Não é inédito. Escrevi prosa ao longo dos anos. Se recuar a 2010, 2011, metade do que escrevia era prosa. Aprimorei certa versatilidade. Sinto-me bem a escrever crónicas. :)
Não te conhecia esta face :)
ResponderEliminarE também desconhecia esta tradição até há uns anos. Na minha terra não há nada disto. Mas, como gosto de tradições e de contra-tradições, partilho aqui que conheço um sítio onde os miúdos andam a pedir o "bolinho", e dizem "Ó tia dá bolinho ou com uma tranca no focinho?" :D
Não é um inédito. :)
EliminarPelo que sei, é uma tradição mais presente no norte do país.
Heheheh, adorei a interpelação. :'D
Até tenho vergonha de começar a escrever, depois disto.
ResponderEliminarPrefiro-te na crónica, mas a ficção não te fica nada mal. E dominas tão bem a língua. Há coisa mais sexy que isso?
Obrigado, Alex.
EliminarNão devias, que escreves mesmo muito bem. :)
brilhante. és um contista extraordinário. e que final maravilhoso :)
ResponderEliminarbjs.
Obrigado, Margarida.
Eliminarum beijinho.
linda historinha, tanto sentimento em poucas lindas! que talento vc tem! abs
ResponderEliminarMuito obrigado por suas palavras, Homem. :)
Eliminarum abraço.
Eu sou do pão por Deus e adorava. Julgo que "andei nessa vida" até aos 12/13 anos lool
ResponderEliminarQue giro. :D
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