Lisboa, 14 de Dezembro de 2015,
Querido Jesus,
Este ano, decidi que apelaria a Ti. Dizem por aí que o Pai Natal é mito. Um mito, aliás, criado com fins lucrativos. Em todo o caso, saliento que mantenho a tradição de escrever uma cartinha pelo Natal. Certamente recordar-Te-ás, porque dizem que duas das características do Pai são a omnipresença e a omnisciência, e do Filho, infiro eu, que em todas as cartas referia a minha crença obstinada em Deus. E na Tua palavra, por suposto. O Pai Natal, em boa verdade, não passava de um destinatário fruto da influência das crianças, das revistas e da televisão. Ficava por lá, no cabeçalho da carta. No conteúdo, apenas Deus e eu. Raras vezes, ou nenhuma, Te referi. Assumo o erro. Pegando no catecismo, e já que a minha educação, como a da maioria do povo português, é católica, Deus reside no Pai, em Ti, o Filho, e no Espírito Santo. Ao dirigir-me a Deus, imediatamente Te invoco.
Há dez anos, começaram as hostilidades. E o fim da minha família. Os pais entraram em guerra. Uma guerra que, se bem Te lembras, designava por Guerra Fria. Tal como a Guerra Fria, nunca assisti, felizmente, a confrontos. O pai e a mãe representavam o bloco ocidental e o bloco soviético, respectivamente. Houve mísseis na Turquia, em Cuba; houve, inclusive, uma invasão da Baía dos Porcos, mas pouparam-me, e pouparam-se, a dores maiores. Separaram-se suavemente. Eu diria que a relação de vinte anos se dissipou, se dissolveu tal qual o açúcar no leite quente. Na noite de Consoada, a mãe saiu depois do jantar. Foi ter com a sua nova família. Eu e o pai ficámos na sala. Eu olhava para a árvore, olhava para os presentes. O meu rosto, reflectido no vidro da janela, cintilava as cores das luzinhas, que piscavam em sintonia. Não entendia bem o que estava a acontecer. Sentia, no fundo, que passava por um abalo que alteraria para sempre o rumo das nossas vidas. Um mês depois, o pai disse-me: "(o meu segundo nome), a família terminou". As suas palavras ecoam no meu ouvido. Observo-o, sei a sua roupa, a divisão da casa, a sua posição, a hora do dia. Como se revivesse esse doloroso momento. O pior estaria por vir.
Dois mil e quinze foi o pior ano desde dois mil e seis. Dois mil e seis, com efeito, foi o meu annus horribilis, do início ao fim. Como depois do terramoto vem um período de ligeira acalmia, recuperei nos anos seguintes. A minha "viradeira". Pensei que o tempo levaria a que, progressivamente, me esquecesse. Cresceria, teria a minha vida, autónoma, independente. Como nos enganamos. As respostas mudam. No sentido inverso ao expectável, cada vez doeu mais e mais. Pela inércia que demonstrei. Sei que era um imberbe adolescente, sei que pouco poderia fazer, mas teria sido suficientemente corajoso para afastar aquele homem dos destinos da mãe. Não teria problema em pegá-lo pelos colarinhos - e perdoa-me o tom agressivo, tão oposto ao Teu ensinamento de perdão, sou pecador - e afugentá-lo com uma repreenda bem dada.
Senti-me no centro de uma derrocada. E tudo ruiu. Sob os escombros, fui construindo o meu débil edifício. Os materiais são de parca qualidade. Ao menor indício de tormenta, a estrutura oscila. E pode cair. A idade trouxe a experiência, a consciência, o discernimento. Não trouxe a paz de espírito. Que ainda procuro, sofregamente.
Não Te pedirei brinquedos. Não sou uma criança. Quanto aos bens materiais, eu mesmo, humanamente, proverei. E certamente terás a quem socorrer. Apenas Te peço para que olhes por mim. Que perdoes as minhas crises de cepticismo, que não as nego. Mas só quem tem muita fé é que se pode dar ao luxo de duvidar, parafraseando Nietzsche. Ironia das ironias, mencionar um homem que sempre duvidou da Tua existência. O Teu coração é grande para acolher os incrédulos.
Há dez anos, começaram as hostilidades. E o fim da minha família. Os pais entraram em guerra. Uma guerra que, se bem Te lembras, designava por Guerra Fria. Tal como a Guerra Fria, nunca assisti, felizmente, a confrontos. O pai e a mãe representavam o bloco ocidental e o bloco soviético, respectivamente. Houve mísseis na Turquia, em Cuba; houve, inclusive, uma invasão da Baía dos Porcos, mas pouparam-me, e pouparam-se, a dores maiores. Separaram-se suavemente. Eu diria que a relação de vinte anos se dissipou, se dissolveu tal qual o açúcar no leite quente. Na noite de Consoada, a mãe saiu depois do jantar. Foi ter com a sua nova família. Eu e o pai ficámos na sala. Eu olhava para a árvore, olhava para os presentes. O meu rosto, reflectido no vidro da janela, cintilava as cores das luzinhas, que piscavam em sintonia. Não entendia bem o que estava a acontecer. Sentia, no fundo, que passava por um abalo que alteraria para sempre o rumo das nossas vidas. Um mês depois, o pai disse-me: "(o meu segundo nome), a família terminou". As suas palavras ecoam no meu ouvido. Observo-o, sei a sua roupa, a divisão da casa, a sua posição, a hora do dia. Como se revivesse esse doloroso momento. O pior estaria por vir.
Dois mil e quinze foi o pior ano desde dois mil e seis. Dois mil e seis, com efeito, foi o meu annus horribilis, do início ao fim. Como depois do terramoto vem um período de ligeira acalmia, recuperei nos anos seguintes. A minha "viradeira". Pensei que o tempo levaria a que, progressivamente, me esquecesse. Cresceria, teria a minha vida, autónoma, independente. Como nos enganamos. As respostas mudam. No sentido inverso ao expectável, cada vez doeu mais e mais. Pela inércia que demonstrei. Sei que era um imberbe adolescente, sei que pouco poderia fazer, mas teria sido suficientemente corajoso para afastar aquele homem dos destinos da mãe. Não teria problema em pegá-lo pelos colarinhos - e perdoa-me o tom agressivo, tão oposto ao Teu ensinamento de perdão, sou pecador - e afugentá-lo com uma repreenda bem dada.
Senti-me no centro de uma derrocada. E tudo ruiu. Sob os escombros, fui construindo o meu débil edifício. Os materiais são de parca qualidade. Ao menor indício de tormenta, a estrutura oscila. E pode cair. A idade trouxe a experiência, a consciência, o discernimento. Não trouxe a paz de espírito. Que ainda procuro, sofregamente.
Não Te pedirei brinquedos. Não sou uma criança. Quanto aos bens materiais, eu mesmo, humanamente, proverei. E certamente terás a quem socorrer. Apenas Te peço para que olhes por mim. Que perdoes as minhas crises de cepticismo, que não as nego. Mas só quem tem muita fé é que se pode dar ao luxo de duvidar, parafraseando Nietzsche. Ironia das ironias, mencionar um homem que sempre duvidou da Tua existência. O Teu coração é grande para acolher os incrédulos.
lots of love,
Mark
Mark, você lida bem com as palavras, é certo. Toda a sua dor se reveste, para quem as lê de um lirismo impressionante. Confesso que me tocaste profundamente com suas agruras. Não vivenciei infortúnio deste tipo, mas tive os meus. Também como bom crédulo, também me permito a dúvida. Mas sempre acredito em nossa capacidade de não fugir à luta e, ao final, vencermos. Assim será também com você. Que o 2016 lhe seja mais leve e mais feliz.
ResponderEliminarUm grande abraço meu amigo.
Palavras como as suas, querido amigo, ajudam.
Eliminarum grande abraço por este oceano que nos separa.
Estou sem palavras... A tua carta, tão profunda e intimista, chegará ao Destinatário. Não tenho a menor dúvida. E Ele trará até ti tudo o que lhe pedires, não duvides disso. Ele olhará por ti e mandará os seus Anjos cuidarem de ti e olharem por ti também, como tem feito até agora. :)
ResponderEliminarUm beijinho e um abraço apertadinho, Mark.
Considerando os poderes infinitos de Deus, Ele sonda até os nossos pensamentos.
EliminarObrigado, Mikel.
um grande abraço.
querido Mark, que carta tão triste e comovente. Tenho a certeza de que o Jesus a quem escreves te dará a capacidade de te reconciliares com aqueles que amas, e sobretudo contigo próprio, ou melhor com esse adolescente a quem provocaram feridas que não consegues curar. por mim, dou-te o que tenho, as mãos vazias mas um forte abraço.
ResponderEliminarEspero que o tempo ajude a que tudo fique num recôndito da minha memória. As recordações estão ainda bem presentes.
Eliminarum abraço afectuoso, querido Miguel, e obrigado.
Socorra-se de Deus que Ele estará disponível para o ouvir. Não duvide. A sua carta é emotiva, é forte. Nenhum jovem deve passar pelo que passou. Não sei se o casamento dos seus pais foi católico se não foi, mas para mim o casamento é uma união indissolúvel. Isto supondo que eram casados. Mesmo que não fossem, têm um filho e a família é mais importante, a harmonia do lar. Já viu o sofrimento que teriam evitado? Vejo-o revoltado, o que vale é que me parece um jovem disciplinado e bom de cabeça. Não se desvie do caminho certo. Ainda sorrirá muito.
ResponderEliminarAceite um cumprimento cordial e um abraço.
Deus é uma ajuda importante, imprescindível. Saber da Sua existência acalenta.
EliminarSim, os pais foram, efectivamente, casados. Civilmente.
Sabe, durante os meus anos da licenciatura, tive a oportunidade de ler (antes de mais, isto é um aparte) manuais de vários autores. Uns mudaram radicalmente de posição. E eu, claro está, perguntava-me: "Como é possível que alguém mude assim de opinião?". É possível. As pessoas crescem, amadurecem.
Isto para lhe dizer o seguinte: já fui mais radical do que sou, já defendi intransigentemente as minhas "bandeiras". Há seis anos, responder-lhe-ia confrontando-o com a sua afirmação das "uniões indissolúveis", opondo-me, certamente. Hoje, todavia, não o farei. A família deve ser, sim, o mais importante. E o casamento não deve ser resolvido ao menor sintoma de mal-estar. O divórcio deve ser invocado quando não resta outra alternativa; no caso dos pais, no meu caso, havia, sim. Os avós paternos, até ao falecimento do avô em Fevereiro último, estiveram casados por sessenta e seis anos. Um casamento que teve altos e baixos, como todos, que ameaçou ruir, digo-lhe mais, mas que a avó soube manter. E não, o avô por NUNCA a desrespeitou, moral ou, ainda menos, fisicamente. Portanto, sim. O valor da família é sagrado.
Revoltado? Não. Magoado? Sim.
Não me desviarei. Todos nós precisamos de direccionar a ira, a raiva, porventura o ódio, em algum sentido. Eu tê-los-ei direccionado no melhor, suponho. :)
um abraço.
:-) de uma forma sublime, intimista e "revoltante" deste cor às tuas palavras e com elas pintaste um quadro que é só teu, que te diz muito mesmo que se pudesses terias outras cores que não as que te rodeiam. E acima de tudo o texto é original e espero que Ele te ouça! Mereces :-)
ResponderEliminarAcaso tivesse tido outras cores na paleta, teria pintado a vida de tons leves.
EliminarEsperemos que sim. :)
Muito obrigado, Limite.
A Coca Cola, foi à Lapónia buscar a história do senhor que vivia na floresta e que fazia bonecos em madeira. Na Primavera os rapazes entregam os cavalos de madeira à sua pretendente :)
ResponderEliminarQuanto ao resto, tudo se resolve. Às vezes quase parado, tens de ser forte e acredito que 2015 foi um bom ano para ti apesar de tudo :D
Grande abraço amigo
Pois, bem me parecia que os estadunidenses estavam metidos nisso. :)
EliminarInfelizmente, meu bom amigo, foi um ano mau. Recuei uns anos.
um abraço grande.
2015 é, que ainda não acabou, assim tão mau, Mark? :( lamento.
ResponderEliminardepois de tudo por que passaste com os teus pais, mereces momentos bonitos. as palavras podem soar-te ocas, mas não o são. tens muitos anos à frente para olhares a vida de outro ângulo e te adaptares o melhor possível.
as pessoas são como são, é inevitável sofrer com a perda e as desilusões, mas isso dá-nos força para encararmos novas situações.
bjs.
Foi, Margarida; ou melhor, é. Eu referi no passado porque, enfim, está mesmo a terminar. E ainda que surgisse uma maravilha, dificilmente apagaria, ou levar-me-ia a esquecer, o que de mau aconteceu nestes onze meses, mais.
EliminarO que me conforta é ter essa possibilidade de ainda vir a recuperar o que não vivi de bom. Quem sabe e ainda terei bons anos pela frente?
um beijinho, e obrigado.
Sua carta é bem triste, amigo. Olha eu tenho certeza que Deus estará olhando por você e que ainda vai sorrir muito. Inevitavelmente você cresce e será feliz longe desses problemas. E seus pais, bom eu acredito que não quiseram te provocar toda essa dor. Vai ver eles acharam que estariam fazendo o melhor, afinal uma família que só briga e não dá certo não é o melhor pra um adolescente. Mas o remédio foi pior do que a doença, né..
ResponderEliminarAbraços!!
No caso dos pais, nunca assisti a qualquer briga ou discussão.
EliminarA mãe pensou mais em si, no seu bem-estar. Entretanto, depois de identificados os erros, terei de revertê-los de algum jeito. Isso acontecerá, mais tarde ou mais cedo. Com a ajuda de Deus, melhor. :)
um abraço.
Quando li Dear Jesus, pensei que era o Jesus do Sporting! (e olha que eu não sou de futebóis).
ResponderEliminarÉ o modelo de carta de Natal mais diferente que conheço: e um desabafo e não um pedido...
Até sou sportinguista, sim, mas não lhe escreveria uma carta. :)
EliminarSim, uma carta de Natal diferente. Mas tem um pedido no final...
Também és Sportingista, Markzito? Desconhecia esse aspeto da tua vida! :D
EliminarClaro!!!
Eliminar«Só eu sei porque não fico em casa!»
Ai valham-me todos os santos!
EliminarSo me falta dizeres que és sócio e tudo!
Não chego a tanto. :) Mas gosto de futebol.
EliminarMarkzinho, você choca-me de vez em quando....
EliminarNão combina contigo. Ou pelo menos com a imagem que tenho construída de ti... :P
Estereótipos. :)
EliminarOh, porquê? Sempre disse que não era, e não sou, um rato de biblioteca. Sou um gajo normal. Lol
Que lindo meu amigo! Infelizmente não há como escapar de certos percalços da vida, mas ainda que dolorosos eles nos moldam e nos ajudam a crescer... espero que um dia todos tenhamos direito a ter compreensão porque passamos por alguns momentos, qual era a necessidade daquela "prova"...
ResponderEliminarMas o importante é não nos deixar abater, não perder a esperança e sempre seguir em frente! Não vou lhe desejar que 2016 seja bom, desejo-lhe que em 2016 continue a não lhe faltar fé, força e determinação para continuar a escrever tua história e principalmente viver e ser feliz!
Tem uma música que adoro (talvez você já tenha até visto no meu blogue) e tenho para mim quase que como uma oração, achei que ela casava bem com teu texto... deixo-a para ti!
https://www.youtube.com/watch?v=BaU-kvuD-so
Grande abraço!
Vários teólogos tentaram explicar por que motivo passamos por todas estas peripécias. Chegaram a várias conclusões. Depois, cada um opta pela que lhe parece mais convincente ou mais confortável de ler / ouvir / aceitar.
EliminarQuanto a mim, não sei. Ainda procuro uma verdade. Parece-me assente acreditar em Deus e na bondade da palavra de Jesus, que, se atentarmos ao que lhe imputam, tomando-o como verdadeiro, só ensinou o bem. Acredite-se ou não, praticar a mensagem de Jesus não fará mal a ninguém.
Obrigado, meu bom amigo. Já só espero que o ano que aí está seja um tanto ou quanto melhor do que este que finda. Não tenho estrutura para suportar tanta movimentação ao redor. Preciso de tranquilidade. Sou avesso a mudanças bruscas.
Gostei imenso da música. Muitíssimo obrigado.
um abraço enorme, amigo Latinha.
E são estes os momentos em que conseguimos ver, que temos mais força do que algum dia pensámos ter :)
ResponderEliminarDisseste uma verdade maior do que julgas.
EliminarNão sei em que parte fui buscar forças, e era tão miúdo.