2 de janeiro de 2016

Dois em um.


    O início de 2016, ontem, coincidiu com as comemorações do trigésimo aniversário de adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia. Junto a Espanha, o nosso país completou a sua integração no conjunto europeu, num processo desencadeado em 1977, três anos após a Revolução de Abril. Era, com efeito (e até os GNR o cantavam), o culminar de uma transfiguração de país rural, com elevados índices de analfabetismo e de mortalidade infantil, para uma nação «da Europa», de primeiro mundo. A assinatura do Tratado de Adesão teve lugar em 1985, no Mosteiro dos Jerónimos. No Primeiro de Janeiro de 1986, Portugal amanhecia na CEE.

      Trinta anos volvidos, não podemos ignorar as vantagens que representou. Nos anos seguintes, Portugal conheceu um desenvolvimento notório, quer ao nível das infraestruturas, quer na melhoria das condições de salubridade; no acesso aos cuidados de saúde, com repercussões no aumento da esperança de vida; na área da educação, sem descurar o desenvolvimento económico. Dez anos de crescimento, que proporcionaram a Cavaco Silva duas maiorias absolutas. Não obstante, o que subjaz à construção europeia, o espírito de cooperação e de solidariedade entre os Estados-membros, perdeu-se na letra dos Tratados que regulam a UE (surgida apenas após 1992, com o Tratado de Maastricht). Presentemente, a União Europeia serve propósitos duvidosos. Desconhece-se o equilíbrio, a igualdade entre os Estados. Há um domínio visível do norte sobre o sul; de potências como a Alemanha, sobretudo, que lidera os destinos da União, enfraquecendo as instituições europeias, como o Parlamento ou a Comissão, cujas competências cedem aos interesses de Berlim.
       O caminho que a União tem percorrido nem sempre tem sido o mais justo. Começou-se, erradamente, a meu ver, pela união económica, mais tarde monetária, preterindo-se a união cultural, afectiva. A Europa, após trinta anos, ainda se assemelha a uma realidade distante. Não há sentimento de pertença. Portugal, e Espanha também, não deve ficar refém dos parceiros europeus. Temos um legado cultural pelo mundo. Podemos cimentar plataformas adicionais com a América e com África, sem receios. Como venho defendendo, talvez aí esteja a resposta que nos liberte deste impasse, do marasmo, mantendo-se, claro está, a participação activa na União. Muito do que somos é devido, mal ou bem, à UE.


     Não queria começar o ano abstendo-me de uma palavra quanto à designada Lei do Piropo. Uma designação que, presumo, surgiu na tendenciosa e populista Comunicação Social, induzindo os cidadãos em erro. Importa adicionar certos esclarecimentos. O que temos desde Agosto, com o aditamento ao artigo 170.º e o aditamento e agravamento da moldura penal no artigo 171.º do Código Penal, é uma criminalização/agravação dos comentários/propostas que contenham teor obsceno, lascivo, de importunação sexual, passando a tentativa a ser punível se a importunação incidir sobre um menor de 14 anos, inclusive. Sequer temos uma tipificação autónoma. 
    Ora, tudo isso está em causa aqui. Temos bens jurídicos com dignidade penal, a liberdade e a autodeterminação sexual, e comportamentos claramente desvaliosos, exigindo-se uma tutela penal que proteja a livre realização da personalidade de cada um dos indivíduos. A lei existe para mulheres e para homens, considerando que a mulher é, de facto, a maior visada com esta decisão do legislador ordinário. E o crime de importunação sexual já existia.
      Quando soube deste aditamento e do agravamento, fui contido e evitei perfilhar qualquer uma das orientações: as favoráveis e as desfavoráveis. Enquanto penalista, não posso, em caso algum, ceder ao populismo de quem defende a intervenção do direito penal por bagatelas; todavia, analisando o objecto da lei e observando a ratio do Direito Penal, concluo que o legislador esteve bem, pelos motivos que enunciei acima. Comentários e propostas com determinado teor podem, efectivamente, provocar constrangimentos; atentar contra a liberdade das pessoas, a sua segurança, o seu livre desenvolvimento. Tenho reservas, isso sim, quanto à adequação. Será que conseguiremos prevenir as condutas agora criminalizadas? Por outras palavras, terá a lei força suficiente para desmotivar os potenciais autores? Tenho reservas quanto a saber se a sanção penal conseguirá fazer cumprir as políticas de prevenção.

       Posto isto, o galanteio, o comentário educado, simpático, minhas senhoras e meus senhores, é livre. Ninguém tem nada contra os meandros de sedução, que sempre existiram e continuarão a existir. O que se deixou de permitir são precisamente as condutas desvaliosas que lesem determinados bens jurídicos protegidos. O conselho que posso dar: sejam educados. Que a consciência sirva de guia. O velhinho dito do: " Não faças aos outros o que não gostarias que te fizessem a ti. ", continua a ser um excelente limite à nossa acção.

* Houve criminalizações autónomas e aditamentos ao Código Penal e a demais legislação extravagante, o que não é oportuno tratar aqui por versarem sobre matérias distintas.

26 comentários:

  1. Portugal e Espanha mudaram da noite para o dia. A Realidade é que o escudo valia duas pesetas e aquando da mudança para o Euro o escudo perdeu contra a peseta. Um euro foi trocado por 200,84 escudos. Hoje a maioria dos jovens dizem e alguns chegam a afirmar que 1 euro equivale a cem escudos.

    Num país de ladrões e de analfabetos, onde o queijo nem serve como desculpa. Tens o país que o conheces...

    Em 30 anos, nunca viste um partido seguir as pisadas dos outros. É o Deita abaixo e nós é que sabemos...

    Este Natal jantei com uma amiga de um amigo que mora em Haia (Holanda). Fiquei triste que soube, que os cadeados nas bicicletas são usados, desde que os Portugueses, Espanhóis e a Europa do Sul começou a fazer eurasmos naquela cidade.

    Portanto!!!! Está tudo dito quanto à nossa cultura. Quanto aos Piropos?!

    Pois é juntar a Cultura e a Educação. Lá está...

    Grande abraço amigo Mark

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    1. Aquando da mudança do Escudo para o Euro, desapareceram o Escudo e a Peseta. :)

      Mas sim, já ouvi falar desses tempos em que nossa moeda tinha mais valor do que a moeda espanhola.

      Bom, eu desconfio sobremodo dos neerlandeses desde que, piratas, nos saquearam o império a Oriente. Se dizem isso, são preconceituosos. Há bom e mau em todo o lado.

      Os piropos... Não se pode fazer fé em tudo o que se lê e se ouve por aí.

      um abraço, amigo.

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  2. A União Europeia era inevitável, mas concordo consigo, podíamos ter apostado num intercâmbio com as nossas antigas províncias ultramarinas + Brasil. Eu sou defensor de uma União Europeia que não vergue nem à Alemanha e nem a nenhum outro país, pelos motivos que você expôs.

    Os piropos... Um disparate. Não têm nada a fazer. Sempre as mulheres ouviram piropos e nenhuma morreu, ou morreu? Já dizia a minha avó: mulher séria não tem ouvidos.

    Cumprimentos.

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    1. Estamos de acordo no primeiro parágrafo do seu comentário.

      Não tecerei qualquer comentário ao segundo.

      Cumprimentos.

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  3. Sim, amigo

    Mil escudos em Portugal deu 5 euros

    Mil pesetas deram 6 euros

    Agora é só somar

    Os piropos achei piada a todo um alarido em volta de nada lolololol

    Abraço amigo

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    1. Não admira. A Peseta estava a valer mais nos anos noventa, presumo.

      Não é "em volta de nada", amigo. De uma proposta obscena pode resultar um enorme transtorno. Há intimidação, há ameaças implícitas, há medo. E, às vezes, o ordenamento jurídico tem de estar um passo à frente da consciencialização das pessoas.

      um abraço.

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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    1. A Alemanha vale-se do ascendente económico para dominar a Europa. Como referi noutra rede social, é o neo-imperialismo travestido de boas intenções.
      A cidadania lusófona seria uma EXCELENTE (vai em caps e tudo) ideia para todos. Não temo os nossos irmãos brasileiros, africanos e timorenses. Ganharíamos todos. Claro que se trata de uma ideia ambiciosa, que requer tempo e ponderação, mas vejo com bons olhos.

      Um dos princípios que norteiam o Direito Penal é precisamente o Princípio da Intervenção Mínima. Eu sei, eu sei, é muito popular e fica sempre bem espalhar nas redes sociais o nosso apoio a tudo o que vem na inflamada (má) Comunicação Social; no entanto, as pessoas responsáveis dão-se ao trabalho de averiguar, reflectir. Aqui, parece-me que o direito penal tem cabimento, sim. Temos bens jurídicos, temos comportamentos desvaliosos e temos necessidade de tutela.

      Muito obrigado, amigo Tiago. São temas que não suscitam muito interesse. Eu gosto de abordá-los, e fá-lo-ei até que... os dedos me doam.

      um abração.

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  5. Gostei de ler este texto, tal como sempre, quando venho até ao teu cantynho. De facto Portugal melhorou e muito desde a entrada na CEE, mas não com a mudança para o Euro. Ainda me recordo de 25€ (5.000 escudos) darem para imensas coisas, enquanto que hoje em dia, gastam-se em menos de nada - e nem é preciso ser bens supérfluos, um cabaz básico de alimento custará cerca de 40/50€ com produtos de marca branca...

    Quanto à lei do Piropo, confesso que embora seja a favor que certas condutas sejam penalizadas, não sei como é que tudo se processará na prática - será a palavra do(a) queixoso(a) contra o/a "galanteadora"? Será preciso haver testemunhas? Como se resolverão as coisas?

    Abração :3

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    1. Na verdade, são dois. O primeiro, bom, uma efeméride, a bem ver. Hei-de escrever um artigo em condições sobre a União Europeia (e o Direito da). O problema é que me falta a vontade. (risos) Sou muuuito preguiçoso, shiiu! :)

      No segundo, enfim, impunha-se dizer algo sobre, afinal é a minha especialidade. Não seria de bom tom ficar omisso, sobretudo depois de ler tanto disparate pelas redes sociais.

      É... a união monetária não trouxe louros. O Euro não "rende", como se ouve. :)

      Na prática, lá está, processa-se com as provas. Sem provas, nada feito. A prova testemunhal, claro, conhecida por uma das provas mais importantes (a par da confissão). Os factos que constituem a existência do crime têm sempre de ser demonstrados. Ainda não há jurisprudência no que diz respeito a estas alterações de Agosto. Posso desde já adiantar que será muito difícil, sim, na senda do que outros juristas (penalistas, inclusive) disseram, provar. Numa rua deserta, estando a vítima e o presumível autor, e sem que ninguém assista ao facto, provar é quase impossível. Os rumores públicos não são admitidos como depoimentos.

      um grande abraço.

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  6. Não entendo que defenda a saída do Euro (ou da UE). Só tem uma contrapartida: Disciplina!

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    1. Eu não defendo a saída do Euro, e muito menos da UE. Isso seria suicida. Não sobreviveríamos fora do espaço comunitário. Quem o defende é inconsequente. Agora, a UE precisa de uma boa reforma. Sou contra qualquer tentativa federalista, que chegou a estar presente nos propósitos da União (quem não se recorda do malfadado projecto de Constituição Europeia?). Serviria apenas os interesses de potências como a Alemanha e/ou a França. E que se faça cumprir o que subjaz aos tratados, exactamente o que enunciei no artigo. Não vejo solidariedade alguma, nem igualdade. Aliás, a igualdade fica sempre bem espelhada num a proposta de boas intenções. É difícil de concretizar a igualdade material entre um país como a Alemanha, por exemplo, e, sei lá, o Chipre.

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  7. " Não faças aos outros o que não gostarias que te fizessem a ti. " isso já é querer dizer alguma coisa, os piropos para algumas pessoas são inofensivos para outras não é bem o caso. Há um limite para tudo e nem tudo o que é para ter graça tem para todos nós. Mesmo assim acho a lei um absurdo...

    ...30 anos já passaram, e começo a sentir-me velho, é que são nessas datas que me dou conta que o avançar do tempo é daqueles que por vezes me esqueço.

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    1. Comentei com a mãe, a avó, etc., e também notaram diferenças, que as há, entre um comentário simpático e um assédio obsceno. O velhinho dito mantém a sua utilidade. :)

      O tempo passa. Quem diria que estaríamos assim após trinta anos? O sonho europeu que nos venderam não foi beeeem aquilo que esperávamos.

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    1. Obrigado, amigo Paulo. Um feliz ano para si também.

      Que bom, está de volta. :) Amanhã mesmo irei ver o que publicou no seu espaço.

      um grande abraço.

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  9. Por aqui, quando ouvimos e lemos noticias sobre a UE sempre nos pareceu vantajoso para todos! Mas o que tem acontecido com a Grecia tem que ser levado em conta! aproveitando! um feliz 2016, mito amor, muito sucesso e dinheiro tb, que não faz mal não é?

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    1. A UE tem boas vantagens. O pior são as contrapartidas. E o espírito que estava presente nos ideais dos pais fundadores, que se perdeu.

      A Grécia até tem recebido uma ajuda considerável. É que o Euro é uma moeda que, de facto, não favorece os países mais pobres da união monetária. É uma moeda de grandes e pujantes economias. Não de um Portugal, de uma Grécia. Faz-me lembrar um homem pobre de vison.

      Obrigado pelos seus votos, amigo. Um feliz 2016, com tudo em dobro do que me desejou.

      um abraço.

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  10. A leitura que não posso deixar de fazer do teu post: Cavaco foi um grande ministro, com as maiorias absolutos que teve, porque teve dinheiro. Como diz o outro, "com as calças do meu pai, também sou um grande homem..."

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    1. Sim, pode-se dizer que sim. Certamente que teve duas maiorias absolutas porque o país conheceu um desenvolvimento notório.

      Como ele próprio referiu numa presença num programa do Herman, foi um privilegiado. Claro que se referia às convulsões a que pôde assistir enquanto Chefe de Governo: a queda do Muro de Berlim, a dissolução da União Soviética, o fim da Guerra Fria, todos aqueles conflitos que marcaram a história da Europa de leste nos anos noventa, a Guerra do Golfo, etc. Eu fiz outra interpretação: teve sorte com os fundos comunitários que lhe proporcionaram dez anos no poder.

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  11. A UE é um modelo a seguir em vários aspectos em termos de integração entre países. O imperialismo alemão mina cada vez mais a UE, às vezes tenho a impressão que a Europa é governada por inteiro por Merkel. Alinhar-se aos E.U.A em seus posicionamentos e dar as costas à Rússia faz a UE parecer um lacaio deste.
    Uma união lusófona parece bastante interessante. O fortalecimento do intercâmbio de vários gêneros entre esses países mostraria a muitos que não há tantas diferenças como alguns gostam de demarcar, talvez até acabava-se as picuinhas linguísticas, no entanto, parece pouco provável diante das pretensões imperialistas do Brasil na A.L.

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    1. A UE perdeu os valores que estiveram presentes no ideário dos seus pais fundadores. Hoje, efectivamente, serve propósitos muito suspeitos.

      Não só a UE. A maioria dos países da Europa ocidental pertence à NATO/OTAN. Somos aliados dos E.U.A. Uma aliança cujo objectivo centrava-se no combate à expansão da hegemonia soviética. Finda a ameaça, os estadunidenses trataram de fomentar outra, a do terrorismo islâmico. Os talibãs foram armados pelos E.U.A contra a URSS.

      A Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa (CPLP) perfaz vinte anos. Infelizmente para todos, é uma organização de âmbito cultural, sobretudo. Soube, há dias, que Portugal gostaria de ver implementada uma cidadania lusófona para todos os lusófonos, portugueses, brasileiros, africanos e timorenses. Parece que o Brasil não está lá muito convencido, e também é provável que a UE oferecesse resistência.

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  12. Sobre o "piropo": Como qualquer conduta imprópria... acho que devem existir sanções. A verdade é que havia muito boa gente que abusava na abordagem, roçando muitas das vezes a intimidação e a perseguição. Contudo, tenho sérias dúvidas sobre a sua aplicabilidade.

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    1. Concordamos, então. :)

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    2. Sim, embora na prática considere que não vai resultar.

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    3. Depende de como se dê. À partida, também tenho reservas.

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