5 de fevereiro de 2022

És maricas?


   Um breve hiato nas publicações de Budapeste para um desabafo. Uma publicação intimista. Não surge por necessidade de catarse, mas explica, de certo modo, o porquê de, depois de uma breve incursão à direita, ter percebido onde realmente pertenço, e certos comportamentos.

   Como muitos meninos, eu também fui vítima de anos de preconceito, ignorância e ódio. Quando ouço falar em sair do armário, a expressão soa-me a algo incompreensível. Eu consigo perceber o que é chegar-se à beira de um pai ou de uma mãe e contar-se o que se é e se sente; comigo nada se passou assim. Eu nasci sem um armário. Era demasiado evidente, para mim e para os outros, que era um rapaz diferente. Ser mais delicado no trato, gostar de brincar com as meninas e com brinquedos de meninas não necessariamente teria de determinar a minha sexualidade. Entretanto, foi assim que o entenderam. Desde os cinco anos, sensivelmente, comecei a ser alvo de piadas e ridicularizações, primeiro no bairro em que vivia, depois no colégio. Naquela época (inícios dos 90), a juntar-se ao preconceito estava a ignorância. Parece inacreditável, mas os miúdos não sabiam bem o que eu era. Perguntavam-me se era homem ou mulher, se tinha vagina, se o meu pai também era assim como tu. Havia um desconhecimento gritante. Foi-o assim durante anos. Anos, dia após dia, sujeito às mesmas perguntas, às mesmas perseguições. Não podia falar daquilo com ninguém. Ninguém o entenderia ou estava capacitado para me ajudar. Por umas quantas vezes queixei-me aos meus pais dos maus-tratos de uns miúdos, que ligavam para o colégio, falavam com os directores e tudo ficava igual. Quando me refiro a maus-tratos, refiro-me a piadas e insultos. Até ao dia de hoje, nunca fui agredido fisicamente ou violentado sexualmente por ser gay.

   Esses anos transformaram-me decisivamente. Estou convencido de que me moldaram a personalidade. Como amar se nunca soube o que essa palavra significava? Como respeitar se nunca me respeitaram? Em casa era querido, sim, porém não chegava. Faltava ser aceite lá fora, pelos outros. Ser tratado como uma pessoa digna de consideração como qualquer outra, e sobretudo num período tão delicado como o é a infância, e mais tarde a adolescência. É impossível crescer-se com uma cabeça sã naquelas circunstâncias. Alguma repercussão havia de ter. No meu caso em concreto, tornei-me numa pessoa com falta de empatia pelos demais, desconfiada, que alimenta sentimentos de vingança contra quem me fez mal. Podia, realmente podia, ter transformado os traumas em mais uma bela estória de superação que se expõe nas redes sociais e todos batem palmas. Não foi assim. Admiro quem o consegue, a sério que sim. É bom, é excelente, conseguir pegar nas nossas fraquezas e dar-lhes um rumo positivo, inspirador.

  Naturalmente, a sociedade, a mesma que me fez mal (e, é provável, a alguns de vocês) não se compadece das nossas debilidades. Exige-nos o mesmo. O mesmo equilíbrio, a mesma ponderação, os mesmos sentimentos altruístas. Exige-nos, no fundo, um percurso irrepreensível como o dos demais. Julgam-nos por quem somos sem a menor preocupação com o nosso historial. Quando começamos a revolver o passado de alguém, podemo-nos deparar com surpresas, algumas chocantes, outras nem tanto, mas seguramente com muitas explicações.

  Então, como estar do lado dos meus verdugos? Como, inicialmente por me rever num patriotismo disparatado que exalta a história de Portugal e as suas velhas glórias coloniais, começar a fazer propaganda unindo-me àqueles cujo percurso em nada foi semelhante ao meu? Foi a análise que me fiz, e ao meu procedimento, e percebi que estava no caminho errado. Também percebi que o meu passado pode explicar quem sou, mas não deve determinar sempre o que faço, e que me cabe a mim distinguir o bem do mal, resistir às minhas inclinações para o mal. Não deixar que o que me fizeram me destrua como ser que tem a capacidade de, pelo menos, imitar os outros observando como fazem. E, acima de tudo, não fazer com ninguém o que me fizeram a mim. Seria dar-lhes a vitória, e eu não quero que eles ganhem.

8 comentários:

  1. Percebo perfeitamente e revejo-me em muitas coisas que escreveste. Muitos insultos, bocas, porrada, e perguntar sem malícia, que que estavam carregas de mal lá dentro. Não é fácil. Nunca o foi. Não será. Mas se queremos ter alguma percentagem de felicidade na nossa vida, temos que ter todas as forças do mundo, para que não nos transformemos em pessoas horríveis, que sempre dissemos que não queríamos ser. E sim. Também já me perguntaram isso algumas vezes - o titulo do teu texto.

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    1. Porrada, felizmente não. Talvez por estudar no privado (sempre estava mais protegido). Insultos? Todos.

      É, é uma luta constante, pelo menos no meu caso, para ser aquela pessoa rectilínea, respeitadora, bom cidadão cumpridor e repleto de bons sentimentos. Não o sou, mas vou-o imitando, com falhas e imperfeições.

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  2. Pode ter a certeza que a grande maioria das pessoas que não estão conformes com a dita "maioria", acabaram e continuam a acabar, por sofrer à mão dos ditos "bullies", que nunca olharam a meios para obter a destruição dos seres que lhes parecem diferentes.
    Esta maioria recorre a todos os meios para obter os seus fins, até porque se devem sentir ameaçados com tudo aquilo que não está conforme, e esta posição também vem de casa, do ambiente familiar, não é algo que surge do nada, e muito menos das cabeças das crianças.
    Claro que as crianças/jovens em conjunto, uns com os outros, funcionam como "matilha", quando sentem "o cheiro a sangue" não param, antes pelo contrário, recrudescem os ataques. Se conseguirem aniquilar ficarão satisfeitos: "objetivo cumprido"!!!

    O meio feminino sempre o senti mais comedido, mais pronto à empatia, no entanto, igualmente corrosivo, e de uma forma quase intangível por vezes, quando a isso se dedica, porque também podem ser igualmente contundentes, só que de forma mais psicológica. Não se dedicam à violência física.

    Mas a grande maioria dos abusos, quer físicos quer psicológicos, surgem do mundo masculino, sem que com isso lhes sucedesse o que quer que fosse, antes pelo contrário, havia quase como que um aplaudir/aceitar encapotado - os vícios privados e as públicas virtudes.
    E as vítimas deixavam-no porque todo o sistema estava feito por forma a que aguentassem ... porque isso "os tornava mais fortes" ... e as vítimas não sabiam reagir, porque se autoflagelavam, porque se sentiam diminuídas, porque se sentiam culpadas de serem "diferentes", porque se sabiam a viver em mundos nos quais não há forças que policiam o comportamento dos prevaricadores (que aliás, por vezes, até são aplaudidos em privado) e porque, os que nos rodeiam, não percebem as forças sob as quais os "seres diferentes" vivem, e quando delas se queixam, nada acontece.

    E quando os "seres diferentes sujeitos a estas sevícias ficavam mais fortes" o que sucedia? Disso ninguém fala. Não se fala dos comportamentos aberrantes, dos estados psicológicos alterados, face às pressões a que foram sujeitos, da incapacidade em fazer parte duma sociedade como cidadãos de direito, as dificuldades que as pessoas têm em manter uma relação com outro parceiro, porque foram feridas de forma crucial aquando, na sua juventude, se procedeu à sua formação como pessoa que vai incluir uma sociedade, que se pretende o mais equilibrada possível; só que esses "seres humanos diferentes", muitas vezes, acabam por ser tudo exceto equilibrados.
    Fazem-se tantos estudos sobre os assuntos mais disparatados, mas destas questões ninguém fala porque são normalmente tabu, e porque, as pessoas que passaram por isso não têm qualquer prazer em recordar e voltar a lembrar aquilo que os diminuiu, que os fez acreditar que eram seres inferiores e não dignos duma sociedade, cuja normativa era vista como "saudável", em contraste com os estados "degenerativos" das diferenças.
    Não se fala da forma como se deturpava o espírito desses "seres diferentes", recorrendo ao uso de sessões de terapia invasiva e coerciva que usavam sobre os que não estavam conforme com a norma, com casamentos forçados, com comportamentos que passaram para a intimidade mais envergonhada e escondida.
    Da classificação destas pessoas como "anormais" e "doentes", que era a forma como eram vistas durante a minha juventude. Os meus pais eram exemplos disto, tudo o que não se conformava com a norma era relegado para estados de doença, mais ou menos grave, do foro físico ou psicológico.

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  3. E a forma como se comportavam os "seres diferentes" não ajudava, pois os encontros, quando existiam, eram fortuitos, altamente envolvidos num secretismo, em locais muitas vezes sórdidos e pouco higiénicos (como se de atividades criminosas se tratassem), qualquer manifestação de carinho pública severamente criticada pela sociedade em geral, e aqui há uma hipocrisia desta "sociedade em geral", que sempre afirmou que esses comportamentos eram igualmente criticáveis se provenientes de pares heterossexuais, o que sempre foi uma falácia, pois estamos fartos de observar estas manifestações em todos os locais, sem que manifeste qualquer coerção sobre eles, nem sequer um olhar mais acusatório, antes pelo contrário, as pessoas comprazem-se em ver estas manifestações, que apelidam de muito "fofas" e "carinhosas".
    Mas destas coisas ninguém quer saber, e as pessoas "diferentes" visadas, preferem esquecer os sítios por onde passaram.

    Se é verdade que a situação se vai alterando, a muito pouco e pouco, continua lá, mais ou menos encapotada, mas continua.
    A pressão social cada vez é maior em direção à aceitação, o que é louvável, no entanto, isto só tornas as pressões mais encapotadas.
    O que antes se fazia "às claras", passa agora a fazer-se de forma mais "escondida", mas continua a existir a coerção, vejo-o cada dia, trabalhando numa escola.

    Enfim, e em suma, são situações que o louvo por as trazer aqui, pois doutra forma, continuariam no "segredo dos deuses".
    Reflete uma coragem bastante grande da sua parte a abordagem destes problemas, e das graves sequelas que deixaram nos seres humanos que por isto passaram, continuam a passar, e continuará a acontecer em muitas sociedades por esse mundo, mais ou menos encapotadas, ou então numa descarada "caça às bruxas", perfeitamente legalizada em muitas outras sociedades.
    Não nos esqueçamos que a própria Inglaterra (apresentada como uma paradigma das liberdades sociais) só descriminalizou a homossexualidade em meados dos anos sessenta do século XX!!!

    Continue com os seus temas, que são polémicos, e igualmente interessantes.
    Deixo-lhe aqui votos de um futuro livre de todos estes problemas, em conjunto com a pessoa com quem escolheu partilhar a sua vida.
    Um bem hajam
    Manel

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    1. Olá, Manel

      Eu é que agradeço as palavras tão lúcidas e esclarecedoras que complementam, e de que maneira!, o que eu escrevi. Já sabe que a sua opinião é-me importantíssima, não só pela sua lucidez como pela sua cultura e inteligência.

      Nem sei por onde começar. A reflexão do Manel é tão rica… Começo pela Inglaterra, que infelizmente deixou as suas leis criminalizadoras das práticas homossexuais em muitos países das Caraíbas, tipo Jamaica. Das sociedades mais homófobas do mundo, onde inclusive os artistas incentivam à violência contra LGBTQi+

      Durante anos procurei esconder este meu passado, estas dores. Revelá-lo, pensava eu, enfraquecia-me aos olhos de quem o passava a saber. Sentia-me desnudo ao revelá-lo, fraco, impotente, exposto. Actualmente, não. Foram anos terríveis de muita exclusão social, de muitas repercussões psíquico-sociais, que me abalaram definitivamente e me causaram transtornos na vida pessoal e estudantil. Grande parte dos meus “problemas” residem aí, nesse preconceito, nessa discriminação, nessa ignorância que me transformaram e me tornaram num miúdo estranhamente diferente. A somar-se à sexualidade diferente ficou o resto. Tudo foi diferente porque o percurso foi errático. E já não me canso para correr atrás da normalidade dos outros e dos seus sucessos pessoais. Aprendi a respeitar o meu tempo, as minhas fragilidades, e a fazer as minhas coisas pouco a pouco. Eu chego lá. Mais tarde do que os outros, mas chego.

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    2. Penso que hoje sofreria menos, afinal, como o Manel disse e eu concordo, tendemos a aceitar cada vez melhor as diversas formas de se viver a sexualidade e a identidade de género. Os miúdos hoje em dia não reparam em mim, ou se reparam não fazem caso. Já pensei que talvez seja assim porque ganhei barba na cara e imponha respeito, ou simplesmente a minha feminilidade já não é motivo de escárnio e de estupefacção. As coisas estão diferente, e ainda bem que assim o é.

      Naqueles tempo, eu tinha amigas, claro, porque os rapazes não se chegavam a mim. Tive um colega amigo, mas também ele não conseguiu resistir aos comentários que lhe faziam por estar comigo, e acabou por se afastar também. Não o censuro. Ninguém quer ser excluído.

      A minha feminilidade, que nunca me envergonhou mas que também não fazia questão de exaltar, passou a ser dos maiores motivos de orgulho. Orgulho-me do que sou nesse aspecto (noutros nem tanto). Foi essa aceitação total e integral que levou a que finalmente me decidisse pelo canal de YouTube, sem medo de expor a minha voz mais delicada, os meus jeitos, os meus sorrisos. Sem medo de expor quem sou.

      Obrigado por estar aí. Cumprimentos!

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  4. Palavras para quê? Eu sempre passei mais despercebido porque fazia desporto, tive namoraditas, mas lembro-me de haver miúdos na escola mais “visíveis” que passaram um mau bocado, sim. :/ Acho que as coisas mudaram.

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    1. Mudaram, sim. Eu sinto que hoje em dia as pessoas estão muito mais sensibilizadas para a diversidade sexual e de género. Pais e educadores. E uma criança vítima de bullying pode-o denunciar nas redes ou em organizações. Naquela época... nada. Sofria-se para dentro, interiorizava-se o sofrimento, com todas as consequências a nível da psique.

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