19 de maio de 2010

Lanche com a avó

Ontem, da parte da tarde, fui lanchar a casa da avó. Como tenho pouco tempo livre, é raro lancharmos juntos mais os primos, ou melhor, as primas. Os primos nunca estão disponíveis. Combinei tudo com as primas e acabámos por decidir ir ontem.
A casa da avó está em restauro. A avó decidiu mudar umas coisas, nomeadamente a pintura, alguns restauros e melhoramentos. Eu gosto imenso da casa da avó. É bastante ajardinada e tem um alpendre fantástico, onde podemos estar num banco corrido a conversar. É óptimo. Quando tinha três anos, a avó comprou-me um baloiço e colocou-o no alpendre. Tenho algumas recordações desse baloiço. Sei que o adorava.
Eu fui o primeiro a chegar, seguido da Bá. A Bá tem dezassete anos. Trouxe a irmã mais nova, a Patrícia, que tem catorze anos. Ambas são filhas da tia Milé, irmã da mãe. A nossa família é enorme: eu tenho imensas primas, mas nem todas tinham disponibilidade naquela hora. A avó adora ter os seus netos reunidos e até que o consegue. Ontem, no entanto, não foi possível. Somos muito unidos, o que é óptimo.
A Glória arranjou a mesa como só ela sabe fazer. Colocou um centro de mesa bastante vistoso e preparou um lanche fantástico. A Ana (outra das primas), conseguiu chegar a tempo e sentou-se connosco. Fiquei contente pela avó. Ela sempre teve uma tendência acentuada para a Ana, talvez por ser filha do seu predilecto, o tio Zé.
Estávamos os cinco a lanchar calmamente quando passa um rapaz dos que estão a fazer os restauros à avó. Como a fase do barulho já passou, a avó decidiu dar o lanche mesmo com os restauros em processo. O rapaz é alto, moreno e estava com uma t-shirt branca que transparecia tudo do seu abdómen, devido ao facto de estar molhada pelo calor. A Bá, a Patrícia e eu olhámos instantaneamente. A avó, perspicaz como só ela, fez uma observação.
-"Não vos critico, meninos. Se eu fosse mais nova procedia como vocês!"
Foi a gargalhada geral. A avó disse «meninos», no masculino, ou seja, incluiu-me no grupo, visto ser o único rapaz que estava à mesa com elas. Eu adoro a avó. Conheço o seu espírito aberto, apesar de ter sido educada numa família de direita, católica e conservadora.
Desafiado pela Bá, no final do lanche, fomos para dentro da casa, de modo a avistarmos de novo o rapaz. Lá estava ele, na sala, a pintar o parapeito que dá acesso ao corredor principal. Sentámo-nos no sofá da avó e começámos a cochichar e rir baixinho, numa atitude claramente provocatória. O rapaz apercebeu-se, mas não denotava preocupação ou incómodo. Estivemos assim algum tempo, até nos aborrecermos. Depressa a Bá e a Patrícia (a Ana já tem vinte cinco anos e outra maturidade, não nos acompanhou na brincadeira) se cansaram e voltaram para perto da avó. Senti-me no dever de dar uma palavra ao rapaz, não fosse ele pensar que estava numa casa de loucos.
-"Olá, desculpa aquilo de há pouco. Só estávamos a brincar. Não leves a mal." - disse eu, tentando ser simpático.
-"Não faz mal. Sei que só estavam a brincar." - respondeu-me, com um sorriso nos lábios.
Não consegui desvendar aquele sorriso, e o tal radar de que já ouvi falar não apitou. Porém, pareceu-me solícito demais. E acrescentou.
-"De todos, és pior que elas." - riu, mostrando embaraço.
Não consegui evitar um sorriso de surpresa. Notei, pelo seu discurso, que não era um rapaz com estudos. Talvez tenha tido uma infância difícil, com carências. Não lhe perguntei a idade, nem quis lhe dar qualquer tipo de intimidade, mas constatei que deveria ter vinte e poucos anos. O corpo estava trabalhado devido ao suor do cansaço e de dias consecutivos de trabalho exaustivo. É o ginásio da vida, para ele. Lamentei a sua vida e pensei nas dificuldades que já deveria ter passado. Os olhos são o espelho da alma. Os seus irradiavam tristeza, pesar e amargura.
-"Está, fica bem. Bom trabalho." - afastei-me e voltei para o alpendre.
No final do lanche, depois de todas se terem retirado, interpelei a avó sobre o sucedido. Contei-lhe tudo, incluindo o breve diálogo que mantive com o rapaz das obras. Ouvi algo que me marcou.
-"És muito sensível, querido. Sempre o soube. Tens um coração especial, apesar dessa capa que demonstras cá para fora. Escondes a preocupação que sentes em relação a todos. Sei que tens uma vontade imensa de ajudar, mas sabes que terás de lidar com as injustiças do mundo. Não te absorvas demasiado com a maldade do mundo. És muito novinho ainda."
Disse-o mais ou menos com estas palavras. Tentei retê-las uma por uma na memória, o que é impossível.
Adoro a avó. Não podia deixar escapar a oportunidade.
-"Se sou sensível, devo-o à avó. É a pessoa mais bonita que conheço."
Despedi-me, com um longo beijo na sua face.

6 comentários:

  1. Interesse pela psicologia.
    Gostei disso! Gostei daqui e do que li. Estou a seguir-te.

    Um beejo psicanalitico pra vc.
    *risos

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  2. O menino de facto é duma sensibilidade, gentileza e amabilidade que só visto. Chega a tocar-me num ponto sensivel, que também eu o tenho.

    Abraço

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  3. Este é realmente muito bonito, devo dizer-lhe. A sua preocupação com os demais também me tocou bastante.
    Acho que pode fazer muito se realmente quisesse. Por exemplo ser voluntário numa instituição de solidariedade ou num lar de idosos. Há tanta coisa que pode ser feita :)
    No entanto, sem querer julgá-lo, creio que seria difícil para si em muitos parâmetros dado à educação e ao meio em que cresceu.

    Visite, comente e não deixe Jesus descontente!

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  4. Foi muito simpático da parte da tua avó ter dito aquilo, ela deve ser um máximo. E também foi bom o rapaz não ter levado a mal e ter aceitado tudo na brincadeira.

    Fica bem

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  5. Tão mágico, tão querido, tão familiar, tão sentimental!
    Gostei muito da tua senbilidade para com a tua avó, poucos a têm! =)

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  6. este foi o texto que me fez parar por aqui.

    excelente, meu caro!

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