A morte recente de uma figura pública, aos trinta e três anos, de suicídio, acendeu em mim uma discussão que venho alimentando desde há tempos. Filosófica e legalista. Debruçar-me sobre esta questão é o culminar de um processo que adio pelo carácter sombrio do tema. Negamos a morte. Quando provocada voluntariamente com o objectivo de fazer cessar a própria vida, o tabu impede-nos de meditar com a clareza e profundidade necessárias.
O suicídio é um ilícito no direito português. A vida humana é inviolável e indisponível. Isso resulta do artigo 24º, número 1, da nossa Constituição. O titular não pode alienar a sua vida, dispor dela, seja directamente ou através de intermediários. No direito civil, nomeadamente, qualquer pessoa que pratique um acto com terceiro com vista a que este lhe suprima a vida, a figura do consentimento do lesado (art. 340º, número 2, do Código Civil), exerce uma prerrogativa nula. Atenta contra uma proibição legal, mesmo que a pedido, e, seguramente, os bons costumes. Para o direito penal, o consentimento do ofendido, uma das causas de exclusão da ilicitude, disposto no artigo 38º, número 1 do Código Penal, cessa quando o facto incidir sobre interesses juridicamente indisponíveis, a contrario, e, em semelhança ao direito civil, ofender os ditos bons costumes. O artigo 134º do Código Penal prevê a figura do homicídio a pedido da vítima e o artigo 135º do mesmo diploma pune de forma clara o incitamento ao suicídio. A intervenção de terceiros queda absolutamente proibida entre nós.
Na hipótese de alguém, sem ajuda de outro interveniente, pôr termo à sua vida, o direito nada pode fazer. A personalidade jurídica extingue-se com a morte. Não seria humanamente possível responsabilizar um morto. Ainda que o fosse, não ajudaria à reabilitação emocional do suicida. A conduta é sempre ilícita. O bem suprimido não estava na disposição do seu titular. E isto é visível nos casos de tentativa frustrada. Não há responsabilidade penal quanto ao suicida tentado. Não se pune a auto-lesão. Haverá se, com a tentativa, ocorrer alguma lesão a terceiros, como o homicídio, e prejuízos. Por maioria de razão, não faria sentido incriminar a auto-lesão com fundamentos de prevenção geral ou especial. Punir a tentativa de suicídio não teria um efeito preventivo ou dissuasor no sentido do cumprimento da norma pela sociedade. Quem pretende terminar com a sua vida, não se motiva por nada mais. Não há perigosidade do agente que, desde o início, orientou a sua energia para a supressão da sua vida. Já não será assim se, com o suicídio, tiver como meta a atingir a morte de outras pessoas. Poder-se-ia falar da finalidade útil da pena como prevenção de reincidência, contudo, não me parece que condenar um suicida a pena de prisão seja a melhor maneira de cuidar dele e evitar futuras tentativas.
Assim o é no direito civil. Mantém-se a ilicitude do acto, mas nada há a fazer. Não é possível sancionar um falecido e nem seria proveitoso. Todavia, importa ressalvar que, nas tentativas, todos os danos colaterais, despesas médicas e demais são imputados à pessoa em causa que tentou o suicídio. As indemnizações poderão ser especialmente reduzidas atendendo à perturbação, no momento do facto, que minimizará a culpa. Se, com o suicídio, o agente provocar vítimas inocentes, há ilícito civil que dá lugar a responsabilidade por danos patrimoniais e extrapatrimoniais.
Seguindo a lógica, o titular do bem jurídico vida, cada um de nós, não pode expo-lo a riscos desnecessários que não decorrentes do quotidiano. Conduzir é um risco, como sabemos, mas faz parte do regular funcionamento da sociedade. Já não será assim se, por irresponsabilidade censurável, pusermos em risco a nossa integridade física ou vida, colocando-nos em situações de potencial perigo, como seja sentar no parapeito de uma varanda. Também o duelo é ilícito. Resumindo, cabe-nos proteger a nossa vida, reduzindo ao máximo o risco de a perder.
Esta é a perspectiva do direito, que é elaborado por homens e mulheres, que é fruto do labor de séculos, de doutrinas e correntes de pensamento. É compreensível que o direito tutele a vida humana, considerando-a o mais valioso dos bens jurídicos, punindo quem atente contra a de terceiros, seja na forma tentada ou consumada. Mas será lícito ao direito impor a qualquer um de nós que suporte a vida sem o querer? Para o direito, o suicídio é um ilícito, não é um crime. Não há disposição legal que puna o suicídio, pelos motivos que acima enunciei. Ainda assim, é ilegal. O que fica é o seguinte: ao suicida, além da dor (ninguém tira a vida, deliberadamente, por capricho ou leviandade), do sofrimento, persegue post mortem, àquele que se suicidou, o peso do ilícito civil e criminal, o estigma do suicídio, aumentado exponencialmente pelo direito. Tempos houve em que se confiscava os bens do suicida e ainda se previa consequências para os seus familiares!
A solução escolhida pelo ordenamento jurídico é a possível. Num Estado que se funda na dignidade da pessoa humana, permitir que o titular do bem jurídico vida pudesse dela dispor à sua vontade, não considerando o suicídio um ilícito, seria retirar-lhe valor. A vida menos valeria se o seu titular tivesse o assentimento do direito, ou o silêncio, quando contra ela age. Nada impede, porém, que cada um se suicide. É um impasse. Não sei até que ponto poderíamos admitir uma valoração neutra ou, quem sabe, liberdade de suicídio.
O que temos, actualmente, parece-me o suficiente. A última palavra, a vinculativa, para todos os efeitos, pertence a cada um.
Engraçado, quando vi esse título eu pensei que você fosse falar mais informalmente do tema mas afinal ficou uma dissertação bem bacana da posição legal aí em Portugal (aqui deve ser parecido, eu acho).
ResponderEliminarEu fiquei com uma dúvida. É o seguinte. Quem tenta se suicidar mas não morre não sofre sanção, certo? Mas então tem que pagar os estragos se estragar algo, foi isso que eu entendi. É assim?
Ah não, não tô pensando em me matar, relaxa, kkkkk
Abraços!!
Sim. O suicídio tentado não é punível, mas se houver danos morais, patrimoniais, etc, de terceiros, há lugar a indemnização. :) É isso mesmo. Bom, aqui! No Brasil não deve ser muito diferente, tendo em conta a raiz romano-germânica.
EliminarObrigado, Ty.
um abraço.
Independentemente do direito, a liberdade existe efetivamente, mas tem, e terá sempre que ter, as necessárias consequências.
ResponderEliminarDo ponto de vista legal, é demasiado complexo para os meu parcos conhecimentos jurídicos :)
abc
É um problema intrincado.
EliminarBom, depende. Se o suicídio se concretizar, não há quaisquer consequências, ao menos para o direito penal. O suicida pode, com ele, arrastar outras vidas. O seu património, claro está, responderá pelos prejuízos causados, se os houver, mas isso é direito civil.
Oh, não digas isso. Num célebre jantar em que estivemos, ambos, pareceu-me que tinhas bons conhecimentos de direito administrativo. :)
um abraço.
é um tema bastante delicado, Mark. há muitos anos, estava eu com uma depressão, esta ideia passou-me pela cabeça, fugazmente, é certo. mas passou, estava mesmo mal, as pessoas pensavam, só por me verem, que nada mal se passaria comigo, mas por dentro... felizmente, consegui ultrapassar, mas com ajuda médica e porque pedi ajuda à minha mãe.
ResponderEliminaragora, dou graças por estar bem, daí viver a vida, apreciá-la o melhor possível.
a vida é o maior bem, mas em condições extremas, de saúde, claro, quando o fim é o previsível, quando estamos a adiar o momento, um sofrimento atroz, de que adianta estar aqui em tormento? se me acontecer isso e se eu puder, gostaria de ir para aquela clínica na Suíça, salvo erro, para ter o direito de morrer com dignidade.
bjs.
Margarida, não fazia ideia. Não é qualquer um que consegue falar abertamente dessas situações. Ainda bem que conseguiste ultrapassar.
EliminarMas concordo contigo e também eu não concebo um ordenamento jurídico que "obrigue" as pessoas a manterem algo que não querem. Por outro lado, compreendo a decisão do legislador: num Estado assente em valores, sendo que o mais importante é o da vida humana, ser omisso ou permissivo em relação ao suicídio seria diminuir o valor da vida, que é absoluto. Permitir ou consentir que o próprio titular a tire, quando quiser, retiraria esse carácter absoluto. A vida valeria menos, e não é possível.
É muitíssimo delicado. Não sou extremista, como alguns autores que quase dão a entender uma "obrigatoriedade" de nos mantermos vivos. Não chego a esse ponto. Sendo sincero, quem não quer, não deve ser obrigado, nem pelo direito, a prosseguir nesta jornada que é a vida.
um beijinho.
p.s.: Realmente, ando a ler os comentários muito depressa. Entendi mal. Referes-te à eutanásia. Aliás, ficou evidente: "(...) de saúde, claro (...)". Como li rápido, julguei mal. Bom, não abordei a eutanásia propositadamente. É outra questão. Mas, sim, concordo com a tua perspectiva.
EliminarPensei que te referias ao não querer mais viver, sem motivos plausíveis, como a saúde. Até aí não sou extremista. Não podemos obrigar ninguém a viver contra vontade, é o que penso, embora compreenda a posição do direito.
sim, eutanásia, era a palavra que me faltava.
Eliminardigamos que naquela altura, apesar de tudo, eu tive cabeça para lhe pedir ajuda. não falei no que me passava na alma, claro está, mas fui ao psiquiatra e lá me receitou umas coisas.
normalmente, quando se comete suicídio, é porque algo não está bem, o jovem pôde não ter tido coragem para pedir ajuda. é delicado, como disse, não é preciso ter um problema de saúde visível. depressões, esquizofrenias, doença bipolar, etc., (não sou especialista nesta área), e a solidão. a solidão é terrível. no Alentejo, por exemplo, a taxa de suicídio é alta. como se explica isto?
Claro. Os profissionais estão lá para nos ajudar quando é preciso.
EliminarEste caso chocou-me muito. Alguém na flor da idade, com um futuro promissor, actor, enfim. Levou consigo os motivos. Agora, só podemos especular.
É bastante alta, sim. Não sei. Se calhar a tua pergunta foi retórica. Solidão, pobreza, exclusão social, instrução (creio que o suicídio por lá é violento, com armas de fogo, etc).
Dizia a minha avó entre outras. Quem morre porque quer não se reza por alma"
ResponderEliminarMas, um jovem que avisa que se vai matar. Pede ajuda aos familiares e amigos. Ninguém liga(revistas cor de rosa)
Creio que é preciso estar numa baixa autoestima tão grande para conseguir colocar um ponto final na vida. creio que todos nós já pensámos em tal desígnio...
Quem o consegue levar até ao fim, e de facto se ele pediu ajuda... Só prova a Insensibilidade dos Familiares e amigos aos dias de hoje. Infelizmente não foi, nem será o último a tomar essa decisão...
Paz à sua alma
Pois, não leio a imprensa cor de rosa, mas devia. Há fofocas interessantes por lá. :)
EliminarA morte deste rapaz foi o mote para que escrevesse sobre o suicídio à luz do direito e daquilo em que acredito.
Sim, que encontre agora a paz que a vida lhe negou.
O suicídio é algo de muito particular, numa época muito negra já ultrapassada pensei em suicidar-me, inclusive alturas houve em que não pensava senão na forma como fazê-lo. Não pedi ajuda a ninguém, o meu comportamento manteve-se o mesmo e depois reconsiderei. Também já fui confrontado com alguém que queria pôr termo à vida. Sem dramas, sem auto-vitimização, simplesmente estava cansada de viver e pediu ajuda para o fazer, mudou de ideias. Isto tudo para sublinhar que o suicídio é uma "solução" extrema que é muito difícil de avaliar por quem vê de fora, é pessoal, é sempre único e mais preocupante são aqueles que o ponderam no silêncio sem pedir ajuda, sem dar sinais de alerta e a visão crua da coisa é que quem quer morrer morre, com ou sem as tentativas de auxílio de terceiros. Uma questão fascinante do ponto de vista legal, mas aterradora e desesperante para quem a vive, não há respostas certas ou soluções mágicas, há o fim.
ResponderEliminarExacto. Concordo contigo, daí que não pareça justa que o direito censure quem opta pelo suicídio. Depois, há o lado psicológico que não me atrevo a abordar porque não sou entendido na matéria.
EliminarAinda assim, entendo o lado do legislador. É perigoso dizer-se: "Bom, meus senhores, podem se matar à vontade. A vida é vossa". O direito tem de considerar o suicídio como algo ilícito, atentatório contra a vida humana, o valor de maior importância numa sociedade assente na dignidade da pessoa humana.
Sinto-me "esmagado" entre os dois lados. Percebo um, de quem está no limite, e o outro, da legalidade.
É a vida humana a forma de vida superior!? Quando começa a vida e, portanto, o direito à vida? E há vida para lá da morte? Quando termina a vida? E é a vida humana individual ou a coletiva: a sobrevivência de um grupo, nação, país, pode justificar o sacrifício da vida de um indivíduo? O que o filósofo não consegue resolver, pode o legislador determinar? Ou deveríamos deixar estes assuntos no âmbito da liberdade individual e logo da consciência de cada um?
ResponderEliminarSão questões muito pertinentes, João. Em torno delas, gente das mais variadas áreas do saber tem se debatido.
EliminarPara o direito, sim, a vida humana é a forma de vida superior. Quando começa, bom, é uma questão inultrapassável. Viu-se aquando da interrupção voluntária da gravidez. Os juristas não se entendem, não há consenso - o que é raro no direito - e nem a medicina dá respostas conclusivas. A vida para lá da morte já foge ao direito. Está mais no campo da moral, da religião, outras ordens.
O nosso direito valoriza a vida individual e nenhum se sobrepõe a outra. Recordo-me do célebre caso do chefe da estação / maquinista que dei a direito penal, no ano passado: um chefe de estação percebe que um comboio, seguindo a trajectória, vai embater noutro, causando a morte de dezenas de pessoas. Tem à sua frente a alavanca que lhe permite mudar o trajecto do comboio para outra linha, onde está apenas um mero trabalhador, que morrerá em "sacrifício" das dezenas, centenas de pessoas que estão em ambos os comboios que chocariam. Poderá fazê-lo? Está em conflito de deveres: entre um dever de acção (mudar a trajectória do comboio) e um dever de omissão (deixar o comboio seguir e, eventualmente, colidir com o outro). Resposta: a vida humana não é quantificável. A vida daquele mero trabalhador não pode ser "perdida" para salvar cinco, dez, cem, mil vidas. A sua vida vale tanto como as outras. Há um dever de não violar a proibição de matar, que é o que faria o chefe de estação ao usar a alavanca, que se sobrepõe ao dever de não ajudar aquelas pessoas, precisamente porque o direito penaliza mais a acção ofensiva do que a omissão.
Sei que as tuas perguntas eram retóricas, mas não resisti ao impulso de tentar responder. :)
No que diz respeito ao suicídio, acho que está tudo bem assim. O direito não abre mão da valoração que dá à vida humana, no entanto, abstém-se de penalizar o suicida tentado, excepto dos prejuízos e lesões a terceiros. O resultado é que fica realmente na consciência de cada um.
*nenhuma
EliminarEntrando numa ótica filosófica, o homem, com o suicídio, consegue ser superior à lei, pois comete um ato ilícito do qual jamais será condenado.
ResponderEliminarBem observado, Horatius.
EliminarGostei.
ResponderEliminarObrigado, dear Alex. :)
EliminarUm tema bastante delicado e controverso. Desconhecia completamente que do ponto de vista jurídico havia tanta informação! ;)
ResponderEliminarBeijinho :3
O direito abarca (quase) tudo. :)
Eliminarum abraço, João.
Além dos termos legais, era interessante saber o que pensa o menino Mark sobre o tema, sem puxar a sua veia de jurista. Isto é, será todo o suicídio igual? E aquele que tirar o sofrimento a quem está a sofrer sem necessidade? Que pensa o Mark da eutanásia? Será que os países que a permitem serão piores países? A eutanásia deve continuar proibida, mas a pena de morte é mais justificável (por exemplo nos EUA)?
ResponderEliminarEu digo, Namorado, mormente nos comentários. No que diz respeito ao suicídio, creio que está tudo bem assim, do ponto de vista legal. A minha posição pessoal? Creio que ninguém deve ser obrigado a viver se não quer. :)
EliminarA eutanásia é muito complexa. Abordá-la-ei também.
A pena de morte é intolerável. Isso nem merece um post. :D
Gostei muito deste enquadramento legal de um acto muito complexo, que eu "a priori" não aceito, mas em circunstâncias extremas me poderia pôr a pensar. O caso da eutanásia é o exemplo mais recorrente.
ResponderEliminarAbordarei ainda a eutanásia, assim tenha tempo e vontade. :)
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