19 de março de 2014

Conferência da Co-adopção.


  Amanhã, sensivelmente por esta hora, estará a começar, num dos auditórios da minha faculdade, uma conferência sobre a possibilidade de co-adopção pelo cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo. Como sabemos, o diploma foi vetado ou chumbado, como queiram, a semana passada, num processo algo turbulento na sociedade portuguesa. Dediquei, há tempos, um longo texto sobre este assunto. Nele, para o qual remeto, expliquei por que razão achava mais do que pertinente evoluir nesta matéria. Confirmou-se o que previ sobre a possibilidade do referendo, inconstitucional, porém, pensei que o projecto do PS sobre a co-adopção teria chances de vingar. Infelizmente, não se concretizou. Recuámos uns bons passos e perdemos a hipótese rara de fazer justiça às crianças que já reconhecem as figuras parentais que têm como seus progenitores. Legislar, aqui, seria para se confirmar, reconhecer direitos, e não de forma a abrir caminho a arbitrariedades e a abusos. Imagine-se uma criança que se vê na situação de perder o/a progenitor/a que a lei reconhece como tal, seja o/a biológico/a ou pelo instituto da adopção singular, já permitida para pessoas solteiras. A outra figura parental poderá perder o acesso à criança, retirada pela família do/a progenitor/a legal ou, mais grave ainda, entregue a uma instituição. Haverá algo pior do que passar a infância e adolescência num orfanato? Isto levar-nos-ia para a adopção por casais do mesmo sexo, mas nem é disso que se trata. Trata-se de uma realidade já existente. Continuarão, quer os opositores queiram, quer não, a existir crianças que moram com casais homossexuais. A diferença é que, de momento e por ora, sem quaisquer direitos ou segurança. Temos crianças que vivem num limbo, à mercê da sorte e do que o futuro lhes proporcionará.


    Ponderei se deveria ir à dita conferência. Olhando para o pequeno prospecto que me foi entregue, os oradores serão os tradicionais conservadores de sempre, excepto um. Dos três, todos foram meus professores. Pontos de vista à parte, nutro um certo carinho por dois, em especial, e custar-me-ia imenso ouvir pessoas que tanto admiro, academicamente, a defender posições que considero injustas e ultrapassadas. Têm todo o meu reconhecimento como sumidades no Direito; não posso deixar de ser crítico relativamente ao que defendem. Estará, ao que sei, presente um padre. Completa fica a santíssima trindade.

  Participar seria, a par de uma decepção que antevejo, um desperdício de tempo. Acredito que haja o contraditório, e deposito a minha fé nos discursos, que suponho virtuosos, de um dos professores, além de um psicólogo que também estará na palestra. Como especialista em Psicologia, espero que refira os inúmeros estudos que dão um parecer positivo à coabitação de crianças com casais homossexuais. Ao contrário do que o ex-bastonário da Ordem dos Advogados, Marinho Pinto, disse num programa de televisão, não há relatórios destes "para todos os gostos". Não sei quais o senhor leu, mas os de reconhecida qualidade e mérito são contundentes em afirmar que não há qualquer problema. Não será o facto de se viver com um casal homossexual que influenciará as futuras preferências sexuais daquelas crianças e jovens. Se assim fosse, não existiriam homossexuais, visto que, arriscaria em afirmar, 95 % dos homossexuais foram e são criados no seio de famílias heterossexuais! Pior do que um mau argumento é um argumento manifestamente descabido e absurdo.

    Esta conferência selará o assunto. Chumbado que foi o projecto na sede da democracia (das maiorias...), não há nada a fazer. Talvez numa futura legislatura. Tranquilizados, falarão cheios de satisfação, de justiça! Que justiça para as dezenas, centenas, de crianças e jovens que vivem em permanente angústia. E das pessoas que, sem o aval da lei, não podem chamar de "filho/a" a determinada criança com toda a legitimidade?

   Não se legislam afectos. Foram invocados todos os argumentos, em tudo se pensou, menos nas crianças. Nunca os adultos pensaram nas crianças. Se o fossem por um só dia, se descessem da sua soberba e tentassem entrar nos receios de uma delas, provavelmente hoje regozijar-me-ia por o meu país ter feito... justiça.

20 comentários:

  1. Eu soube isso e lamento :( Eu pensei que vocês conseguiriam porque teve o casamento e eu sei que aí na Europa as pessoas são bem mais liberais..

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    1. O casamento foi igualmente polémico, embora menos. Como "mete" crianças, invocam argumentos de outra ordem: psicológicos, educacionais, morais, enfim, um sem número.

      Portugal é um atraso. Há uma Europa a duas velocidades - e não apenas economicamente falando. Esta em que moro, do sul, é patética. Espanha, aqui, está bem mais à frente.

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  2. Infelizmente é o país que temos :(

    Gosto imenso dos teus textos :)

    Abraço amigo Markito :D

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    1. Oh, textos normais, nada de especial. Ainda se falasse da teoria sine qua non, da causalidade adequada, do risco, etc, de Direito Penal, aí sim (e hei-de abordar!).

      um abraço.

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  3. O Senhor Marinho e Pinto é um recalcado.

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    1. Se fosse o único, se fosse o único...

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    2. Queres dizer-me algo Markzinho? LOLOL

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    3. Refiro-me a outras individualidades que são contra a co-adopção por cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo. Fora deste contexto, recalcados é o que mais há por aí, mas cinjo-me só à matéria que abordei. LOL

      :)

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  4. O Marinho Pinto é aqui vizinho, de onde moro.
    Da última vez que me cruzei com ele, parei e disse 'cromo'.

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  5. Pois, o problema destes "encontros/conferências", é que eles estão deformados à partida pela composição do "ramalhete" que os dirige, pelo que estão condenados a condenar aquilo que já foi indignamente condenado, ou melhor dizendo não aprovado.
    Eu não me dava ao trabalho de assistir, a não ser que me fosse garantida, a priori, uma composição equilibrada dos dissertadores, o que não parece ser o caso.
    Espero agora que a composição do Parlamento,numa nova legislatura, permita aprovar aquilo que é da mais elementar justiça.

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    1. Sim, João. Será uma conferência parcial. Também não estarei presente pelos motivos que enunciaste.

      Faço minhas as tuas palavras. Isto não se trata de convicções ou ideologias: é a mais "elementar justiça".

      Não houve discernimento, nem a calma necessária. Os velhos do Restelo do costume engasgaram-se com o "próximo passo", ou seja, o medo da inevitável adopção.

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  6. essa conferência estava planeada há muito tempo? o que eu quero dizer é que se o diploma tivesse sido aprovado, a conferência serviria para esses velhos do restelo manifestarem a sua indignação. agora, é como referes, dão-se por satisfeitos pelo facto de o projecto ter sido chumbado.
    fazes bem em não ir.
    bjs.

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    1. Não faço ideia, Margarida. Talvez estivesse planeada antes do chumbo pela Assembleia da República. :s

      Sim, será exactamente assim. Até a escolha dos intervenientes é tendenciosa. Dois professores, em questão, são conhecidos pelas suas posições conservadoras. Um deles esteve mesmo envolvido numa polémica, há não muitos anos, relacionada com um teste em que uma aluna se sentiu ofendida na sua dignidade.

      um beijinho.

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  7. Os professores tentam ensinar-nos, por vezes, a ser imparciais. A verdade é que eles próprios muitas vezes não o conseguem ser.

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    1. É verdade. Na minha faculdade, ensinam-nos a pensar por nós próprios, mas não sem tentar influenciar...

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  8. Sabes, não sei se foste ou não à conferência, mas devias ter ido e devias ter deixado a tua voz ser ouvida, porque se queremos mudar o mundo, temos que contribuir para tal.

    r. espero mesmo que terminem estes episódios!

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    1. Eu acabei por ir, Kyle, e aconteceu algo surpreendente... Irei escrever sobre isso. :)

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  9. Já se falou tanto deste tema...

    Felizmente que tu disseste exactamente aquilo que eu penso e que corresponde à verdade:

    "Não se legislam afectos." :)

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