O Reino Unido, como sabemos, não possui uma Constituição escrita, formal, à semelhança do que acontece nos países da Europa Continental. Não há um único texto escrito onde estejam expressas as normas do seu edifício constitucional. Daí se falar, recorrentemente, que a Grã-Bretanha tem uma Constituição não escrita, unwritten constitution. Não significa isto que não haja leis constitucionais; há, sim, mas são redutos do constitucionalismo inglês, assente na longa evolução histórica e no costume, ou seja, as práticas imemoriais de determinados factos ou o exercício de certas faculdades que a colectividade entende que devem persistir, punindo-se todos aqueles que as desrespeitem. Estão incluídas também as práticas, praxes e conventions, que, não sendo Direito, regem por acordos políticos estabelecidos.
Os textos escritos, históricos, não estão codificados. O primeiro deles, e de especial importância, é a Magna Carta, de 1215, que os barões do reino impuseram ao monarca João Sem Terra. Vencido numa guerra pelo continente, sem o apoio da Santa Sé e sem recursos financeiros, o rei teve de resignar-se a firmar um documento em que se comprometia a respeitar os privilégios e liberdades da nobreza, do clero e do povo. Esta Carta preconizava ainda a liberdade da Igreja, as prerrogativas municipais, a moderação na tributação dos mercadores, o direito que cada um tem a não ser condenado senão em virtude de um julgamento prévio, o direito que todos têm à justiça... Era um verdadeiro foral da Nação - um pacto que o rei e o país estavam terminantemente proibidos de violar.
A Magna Carta seria confirmada pelos sucessores de João Sem Terra. Fora escrita em latim e só posteriormente traduzida para a língua inglesa (no século XVI). Isto obstou ao seu conhecimento pela generalidade do povo britânico. O seu teor e o que previa era um privilégio das classes favorecidas e essas extraíam o seu conteúdo político.
No século XVII, apareceram novas leis constitucionais. No reinado de Carlos I, travou-se uma luta, respeitosa no início, entre a Coroa e o Parlamento. O monarca pretendia manter intacto o seu poder de decidir e comandar como verdadeiro e único chefe da Nação; o Parlamento queria afirmar a sua supremacia e o direito de tecer observações e responsabilizar os conselheiros régios. O rei perdeu esta querela e, enfraquecido, viu-se obrigado a convocar o Parlamento, em 1628. Aproveitando a má situação, este apresentou ao rei a célebre Petition of Right, que o mesmo teve de aceitar, ainda que com relutância.
A Petition of Right, um dos pilares do constitucionalismo inglês, protestava contra o lançamento de impostos sem o consentimento do Parlamento, contra as prisões arbitrárias e contra o uso da lei marcial e da permanência de soldados nas casas dos particulares em tempos de paz. É importante não confundir a Petition of Right com o Bill of Rights, de 1689. Depois de 1628, houve uma revolução, em 1640, que conduziria à deposição do rei e à sua subsequente decapitação. Cromwell, brilhante estadista, tornou-se o Lord Protector de uma República de brevíssima existência. Prova é que a Constituição escrita que deu ao seu povo só sobreviveria dois anos à morte do ditador. No ano de 1660, a monarquia foi restaurada e Carlos II ascendeu ao trono. Suceder-lhe-ia, em 1685, Jaime II, católico, que pretendeu sujeitar novamente a Igreja inglesa à autoridade papal. Como reacção, em 1688, uma revolução depôs o último monarca da Casa dos Stuarts, negando o direito divino dos reis e invocando a existência de um pacto entre a nação e o soberano. Foi então chamada ao trono a filha do rei, Maria, que estava casada com o seu primo, um príncipe holandês, Guilherme de Orange. O Parlamento condicionaria a aclamação dos monarcas à aceitação do Bill of Rights.
E o que é o Bill of Rights? É uma declaração de direitos, enumerando uma série de actos que o rei não pode cometer por serem desconformes, significando isto que o rei está submetido ao direito que resulta do costume sancionado pelos tribunais, o common law, que é aplicável a todos os ingleses, independentemente do seu estatuto social, do rei ao homem do povo. Este bill consagra várias garantias: o direito de petição, assegura a liberdade e a inviolabilidade dos membros do Parlamento no exercício das suas funções, enuncia a reunião regular das câmaras, condena os tribunais de excepção, ilegaliza a suspensão de leis só pela vontade do rei ou o favorecimento régio que dispense alguém do cumprimento da lei e estabelece claramente que o rei não pode lançar impostos ou manter um exército permanente sem a autorização do Parlamento.
A Coroa, atribuída à Casa de Orange, ficaria dependente do Parlamento. No último ano do reinado de Guilherme de Orange, ou Guilherme III, 1701, o Parlamento aprovou o Act of Settlement, à luz do qual só pode ascender ao trono britânico um príncipe anglicano, prescrevendo ainda novos impedimentos para que o rei não governe sem o Parlamento ou prejudique a supremacia parlamentar, vedando ainda que o soberano possa imiscuir-se na consciência dos juízes.
Nos nossos tempos, século XX, seriam elaboradas mais leis constitucionais, a ver: o Parliament Act, de 1911, que restringiu os poderes da Câmara dos Lordes (como se sabe, o Parlamento britânico é composto por duas câmaras: dos Lordes e dos Comuns), fixando em cinco anos o mandato dos deputados da Câmara dos Comuns; o Statute of Westminster, de 1931, que veio regular as relações entre o Reino Unido e os seus domínios e colónias no ultramar; o Ministers of the Crown Act, de 1937, alterado em 1946 e 1957, que fixou o vencimento dos ministros, consagrando ainda a existência de várias funções que até então eram meramente costumeiras; os Regency Acts, de 1937 e 1953, que regulam os preceitos da regência em caso de menoridade ou incapacidade do rei; o Parliament Act, de 1949, que impôs mais restrições ao poder legislativo dos lordes; o Life Peerages Act, de 1958, que permite a nomeação de lordes a título vitalício; o Peerages Act, de 1963, que conferiu aos pares da Escócia o direito de tomar assento na Câmara dos Lordes, entre outros. Estas foram as principais inovações no século passado.
Devem ainda ser consideradas leis constitucionais todas aquelas que confluíram para o actual Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte. No século XIII, a Inglaterra era apenas um dos vários reinos das ilhas britânicas. Eduardo I anexaria a este reino o País de Gales, com o Statute of Wales, de 1283, passando o título de Príncipe de Gales para um dos filhos dos monarcas ingleses (seria estabelecido no primogénito). Só três séculos mais tarde, no século XVI, é que Henrique VIII transformaria essa anexação numa incorporação definitiva, conferindo aos galeses a possibilidade de elegerem representantes para a Câmara dos Comuns.
Outro reino independente era a Escócia. Em 1603, o rei da Escócia, Jaime VI, foi chamado para ocupar o trono inglês devido à morte da Rainha Virgem, Isabel I, última monarca da Dinastia Tudor. Jaime tornar-se-ia rei de Inglaterra como Jaime I e a Escócia manteria a sua independência num regime de pura união pessoal com a Inglaterra (dois reinos, um rei), à semelhança do que acontecia - curiosamente pelos mesmos anos - entre Portugal e Espanha (dois reinos absolutamente distintos, dois impérios, um só rei). Ao contrário da separação que se efectivaria nos reinos ibéricos, em 1707, já no reinado de Ana, os parlamentos dos dois reinos, escocês e inglês, decidiram avançar com a união pessoal para união real. O Act of Union, da mesma data, estabelecia um só Parlamento e políticas comuns. A Escócia manteve determinados poderes, como a sua Igreja oficial, leis municipais e civis, tribunais e nobreza, que se fazia representar na Câmara dos Lordes por dezasseis pares. O Parlamento escocês reabriria em 1998, trezentos anos depois, com o Scotland Act.
Por fim, a Inglaterra foi dominando a Irlanda ao longo do tempo. Em 1800, unir-se-iam, formando o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda. Em 1921, a Irlanda do Sul constituiu, como domínio, o Irish Free State, que proclamaria a sua independência em 1937. Continuou incorporada ao Reino Unido a Irlanda do Norte, desde 1921, que possui governador-geral, duas câmaras e gabinete próprio, não sem consequências sangrentas ao longo das décadas...
Hoje, do Reino Unido faz parte a Inglaterra, o País de Gales e a Escócia (Grã-Bretanha) e ainda a Irlanda do Norte.
Muito interessante. Desconhecia por completo...
ResponderEliminarOs ingleses são especiais, bem mais que os, cof, cof, cof, franceses. :)
EliminarCem anos antes da Revolução Francesa de 1789, em 1688, com a Glorious Revolution, abriram caminho para aquilo que os franceses fariam muito depois. E estes ficariam com os louros...
Gostei muito :)
ResponderEliminarObrigado pela lição de História :D
Abraço amigo Mark
É História e Direito, mais Direito. :)
Eliminarum abraço.
Fabuloso!!!
ResponderEliminarfabuloso o teu texto, com um conteúdo valiosíssimo e numa linguagem perceptível a qualquer pessoa, mas também fabulosa a forma como os ingleses são, na realidade, um povo, e um país (hoje, Reino Unido), tão especial que quase me atrevo a dizer que geograficamente só poderia ser mesmo uma ilha, pois nalgumas coisas e coisas importantes eles são bem distintos dos europeus continentais.
Eles são realmente distintos... Têm facetas únicas, daí sentirem-se tão pouco "europeus".
EliminarObrigado, João. :)
Sendo que a Escócia não se sabe até quando.
ResponderEliminarÉ verdade!
Eliminar[}
ResponderEliminarSucinto, mas rico de informação. Obrigado pela excelente informação histórica de um país e de uma realidade que a maioria desconhece para além do mapa físico...
Abraço
Muito mais haveria para dizer, João, mas o mesmo não se coaduna com um blogue. Ainda assim, tentei não fugir, passo a expressão, do mais importante.
EliminarObrigado. Ainda bem que gostaste. :)
um abraço.
Amei Mark!! Você escreve taaaaaanto! Fiquei cego de novo, normal tratando-se de textos seus, rsrsrs. Zoa!
ResponderEliminarAbraços!
Ahah, já disse que pago as consultas de oftalmologia. :D
Eliminarum abraço e obrigado.
clap clap clap, muitos parabéns :D gostei e história nem é beeem a minha onda xp ah é direito, esquece ahah abração Mark!
ResponderEliminarÉ uma mistura, "tah"? LOL Ahah
Eliminarum abraço e obrigado. :)
Olha, fui pegado pelo início, e só parei no fim.
ResponderEliminarMuito bem escrito.
Um editor de jornal teria aceite.
Com todos os parâmetros de venda ao leitor que isso exige.
Oh, MUITO obrigado, Alex. :)
EliminarÉ bom sentir esse feedback. Não deixarei de escrever sobre o que gosto, leiam muitos ou poucos. Este sou eu. :)
o que sabia, era muito ao de leve, João Sem Terra, Magna Carta e um pouco das visitas ao Reino Unido há uns bons anos. e quero regressar a Londres asap :p
ResponderEliminare para quem está a colocar uns remendos, bem, continua. Direito e História na perfeição. vais encontrar o teu caminho, de certeza. :)
bjs.
Oh, e eu adoraria ir lá pela primeira vez. Tenho um enorme fascínio pelos países anglo-saxónicos.
EliminarMuito obrigado, Margarida! :)
um beijinho.
Mais uma vez ofereceste-nos um texto sublime, num português imaculado! :D
ResponderEliminarMuito obrigado, Rúben. :)
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