2 de setembro de 2012

Uma noite.


   E. entrou no espaço inundado por luzes psicadélicas. Aprendera a evitar os faróis dos carros, olhando para o lado e, com isso, podendo provocar graves e sérios acidentes de viação. Certamente culpava a tia mais velha por alguns laivos de epilepsia hipotética que o poderiam afectar, mesmo não tendo qualquer certeza sobre uma possível carga hereditária, ou falta dela, no aparecimento da doença. Por que motivo estaria a pensar nisso naquele momento?

   No balcão amontoavam-se grupos de rapazes e de raparigas, de copo na mão e bebida na cabeça. Um deles bebeu um shot sem pestanejar, nem exprimir qualquer reacção de vómito ou ardor. E. não conseguia decifrar se o sentimento dúbio que lhe suscitava aquela cena poderia ser qualificado de inveja ou orgulho, por se sentir diferente. Talvez ambos. Um misto de inveja por não conseguir libertar-se do seu próprio casulo cultivado e alimentado ao longo de anos por medos e receios; orgulho por saber que as suas chances de chegar à meia-idade com um bom fígado aumentavam, assim, consideravelmente.

   E. estava disposto a correr riscos nessa noite. Riscos que jamais pensara em correr. Se o questionassem acerca do que permitiria que acontecesse naquela noite há uns anos, o mais certo seria rir-se desalmadamente, negando veementemente sequer a possibilidade de sair de casa, na calada da noite, entrando na primeira disco que lhe parecesse agradável. Mas E. fê-lo e, no seu íntimo, não se sentia nada arrependido. O medo excitava-o e as expectativas sobre as próximas horas tinham um efeito semelhante à picada de várias abelhas pelo corpo.
   Doíam-lhe os pés pela tarde passada a palmear um jardim obsceno. Sentia-se sujo e ali o mais certo seria encardir-se mais, arrependendo-se pelo amanhecer, mas o que perderia? Não era ele um errante pelo mundo?

   O seu corpo começou a contorcer-se ao ritmo da música, electrónica, tão diferente dos seus gostos. E. não admitira ser alguém de gostos ecléticos. Pelo contrário, a sua monotonia de carácter tornava-o aborrecido, pachorrento, o que era altamente atractivo ou repulsivo.
   Queria seduzir. Pediu uma bebida ao barman e deu-lhe total liberdade para que escolhesse uma no leque de possibilidades que, desavergonhadamente, ouviu com a máxima das atenções.

   Amargo ou doce, quiçá agridoce, mas certamente muito forte. O calor invadiu-lhe a espinal medula, sentindo a cabeça a latejar e as gotas de suor a deslizarem pelas suas costas que ainda teriam o odor ao gel de banho de leite e amêndoas, que perfumara-lhe desde sempre as camisas imaculadamente engomadas pela sua mãe.

   Dançou de frente para um estranho, notando nele a solidão que também o queimava por dentro, mais do que a própria bebida. Os seus corpos aproximavam-se mutuamente, ao ponto de apenas uma luz rosa separá-los por breves segundos. O cheiro a homem, um after shave foleiro e restos do detergente da máquina numa roupa mal passada por água, adensavam o seu estado eufórico, a vias de alcoólico, apesar de ainda sóbrio.

   O beijo, roubado, surgiu num imprevisto, motivado pelo clímax do efeito descontraído que a bebida lhe provocava. O estranho certamente gostara, pois não demorou em retribui-lo, numa atitude bem mais erotizada e, sem dúvida alguma, experiente. Cerrou os olhos e perdeu os sentidos sem os perder. Pelo menos, sentiu-se desmaiado com plena consciência de estar acordado e lúcido - ainda.


   Não era sonho. E. acordara envolto num corpo de homem. A pele do estranho era sedosa. Apesar de não se recordar pelo tacto da madrugada de êxtase e orgasmos que deduzira que tivera, essa suavidade era agora bastante perceptível com a luz da manhã que iluminava o quarto jovial em que dormira.

   Não quis acordar o estranho. Teve medo de saber o seu nome, a sua história, como o trouxera até lá. Teve medo de quebrar a magia do momento, do que acontecera horas atrás. Escreveu o seu nome e o seu contacto num talão do banco, rasurado, e saiu, passo ante passo.

  Sentiu-se bem. Vivera, pela primeira vez.




   

13 comentários:

  1. Que narrativa tão interessante :)

    Quero mais ;)

    Abraço amigo

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  2. Lindo! Tens o dom da palavra ;)

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  3. História muito bacana, Mark.

    Ela tem um ar de realista,sabe. É algo que pode acontecer com qualquer um. Ficamos na dúvida se ela é verdadeira ou não,se é tudo produto da sua imaginação. É como se você entrasse dentro da história e ficasse a espreitar, a observar tudo o que está acontecendo,e, depois, escrevesse tudo num papel.

    Você é um excelente escritor. seus textos tem uma estética impar.

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  4. Olá, eu adoro ler blogs e por coincidência descobri o seu, sigo aqui. Peço que se puder visite meu espaço também !
    Abraço.

    faces-minhas.blogspot.com

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  5. muito bom! tudo, o texto, a música, apetece-me também esquecer tudo e dançar, dançar e perder-me.
    bjs.

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  6. Margarida: Muito obrigado! :3


    beijinhos :*

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  7. Sugoi! *.*

    Adorei a forma como toda a narrativa se desenrolou...senti tanta semelhança com um qualquer episódio de uma vida real que não as nossas... :P

    Hughie :333

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  8. Hórus: Obrigado. ^^


    hughie :3

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  9. A sensação provocada pela bebida que descreves é semelhante à que tenho quando como wasabi. :)

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  10. Coelhinho: Ainda sou muito inexperiente no que à comida japonesa diz respeito. :)

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