A tarde tinha cores garridas e extasiantes. O verde da relva era dotado de uma força invencível que me impelia a pisá-lo com as minhas sandálias vermelhas. Eu gostava das minhas sandálias vermelhas que a mãe, com carinho e dedicação, trouxera de Londres. O chapéuzinho azul redondo protegia a cabeça do sol intenso, todavia, a mãe sabia que eu preferia o rosa.
"Ó (...), o menino só gosta de cores de menina, que giro."
Corria indiferente aos argumentos dos adultos e à sua capacidade em complicar o simples. Tinha vontade de trespassar os altos muros brancos que me levariam até fora. Os outros meninos brincavam num lugar onde a liberdade gritava a plenos pulmões. Os meninos jogavam à bola, machucavam os joelhos e usavam o boné com a pala para trás. Eles eram feitos de carne e osso e eu de um material que bem mais tarde vim a descobrir qual era.
"Vem cá, não corras porque ficas com falta d'ar!"
O portão, gradeado, separava-me do mundo. Agora podia ver os outros meninos e as meninas. Por que razão eles lutam entre si para chamarem a atenção delas? Que terão de tão especial? Gosto daquele, pois bem, quero ser como ela para que também me veja nesses termos.
Pegou-me e trouxe-me de novo para a relva fresca, desta vez sentando-me no meu baloiço vermelho. Balançava aos impulsos dados pela mãe e sorria perante o céu azul. Na mão segurava uma bola com desenhos do Pluto e do Mickey Mouse. O que fazer com ela senão imaginar que poderia viver uma aventura semelhante?
"A mãe vai para dentro. Não saias deste bocadinho e não te aproximes do portão!"
Não respeitei. Queria ver os outros meninos. A rua silenciou os meus pequenos passos. Ninguém estava para olhar com admiração, inveja, talvez, a minha roupa imaculada comprada pela mãe...
"Este conjuntinho de roupa comprei-o no Porto. As sandálias achei um mimo. O C. não queria que eu as comprasse, mas achei diferente e como são de um material que não se vê em Portugal..."
Onde estariam? A eles, não os quero ouvir. Um cão passou e nem olhou para mim. Saíram.
O mundo corre e vive lá fora. Como seria bom se me tocasse da mesma forma, talvez erguendo-me e possuindo-me apressadamente em seus braços.
Aproximou-se, pegou-me na mão e levou-me para dentro. Olhei para trás e vi a bola caída, o baloiço inerte e um sol apelativo embora cada vez mais distante.
Sentou-me na mesa e deu-me um livro com gravuras e letras. Não sabia ler, mas pude desvendar o significado da história retratada. Quis saber mais. Quis viver por dentro o que não vivia por fora.
O sol continuava quente e luzidio no jardim.
Hoje continua quente, mas menos intenso do que naquela época em que o mundo era um e o amanhã uma teia de sonhos por construir.
Saudades de ser criança, com toda a ingenuidade correspondente, quando o mundo era mais feliz.
ResponderEliminarGostei do teu texto.
ResponderEliminarReavivou em mim memórias felizes.
Felizmente sempre tive essa liberdade para correr e rasgar os joelhos, com os amigos que ia arranjando.
Sempre te impuseram barreiras a essa liberdade, quando eras pequeno?
Sim, em parte. Não brinquei na rua, nunca.
ResponderEliminarEu brinquei muito na rua, aliás, estar em casa era uma tortura. Quando a minha mãe me dizia que não podia ir para a rua brincar era um autêntico castigo. Gostei muito do teu texto. Não há momentos em que o sol brilhe mais, do que quando somos crianças.
ResponderEliminarAbr
fiquei cidrado neste teu texto, é de uma beleza descritiva fantástica e dos posts que mais gostei de todos os que já li escritos por ti. O mais engraçado é que me vi no mesmo cenário mas do lado de fora do portão, ou seja no lado dos meninos que jogavam à bola porque eu fazia o mesmo.
ResponderEliminarAbc
tens um dom, sabes disso?
ResponderEliminar(Eu, corado):
ResponderEliminar":)"
Obrigado! ^^
Eu quando era pequeno já era um rapaz simpático, portanto o mais provável era ver-te e ir-te buscar para brincares comigo. Quem sabe, no fim ainda levavas um beijo, tornavas-te na minha "namorada" =p hehe
ResponderEliminarAbr
Miguel: Oh, que querido. ^^ Gostei bastante do pormenor da "namorada". (:
ResponderEliminarAbraço.
A última frase é incrível... Muitos parabéns.
ResponderEliminarGostei da mudança de visual do Blog e já agora um pormenor, gosto do teu cabelo, deixas mexer? =p lol
ResponderEliminarMiguel: LOL :D Thanks!
ResponderEliminarConsigo plenamente identificar-me com o que escreveste. Contudo, posso hoje afirmar que a minha "reclusão" foi muito mais profunda isto é, imposta por mim próprio. Bizarro eu sei...
ResponderEliminarAté já ;)
Gostei imenso do teu texto! Gosto da forma como escreves, consegues transmitir muitas sensações! Tens um dom e ainda vamos ter alguma literatura escrita por ti. Já pensaste nisso?
ResponderEliminarQuanto á situação, eu sou um desses "meninos de rua". Passei a minha infância a jogar á bola (não era genial nisto!), a correr, a rasgar e estragar roupa, etc!
E, admito, não simpatizava com os meninos que passavam o tempo em casa e não vinham para a rua! Coisas de criança!
Abraço!