Cada vez mais são os que denunciam, nas redes sociais, episódios de violência, ou bullying, como lhe chamam actualmente. Quase todos os que fugimos ao padrão comum da normalidade, da apregoada normalidade, sofremos agressões verbais, físicas, emocionais, psicológicas. No meu tempo, que não foi assim há tanto (cresci nos anos 90 e 00), não havia um nome para o fenómeno, ao menos em Portugal. Éramos maricas, para usar um termo mais “simpático”. A solidariedade era pouca ou nenhuma.
Eu, como quase todos os homossexuais, sofri abusos. Fui vítima de bullying durante anos a fio, quer na escola, quer onde morava. Era alvo de comentários, piadas e chacotas praticamente desde que entrava no colégio até que saía. Tinha, e tenho, um lado feminino que sobressai, e de que sempre me orgulhei, mas que na altura me tornava facilmente detectável. Não andava atrás das meninas, a quem via como amigas, não me interessava pelo desporto, não era viril, e por aí fora. Recordo-me apenas de uma ou duas situações em que alguém me defendeu, precisamente uma moça guineense, a Edna. Ironia.
Esses anos de sofrimento, de que à época não me dava conta, moldaram-me o carácter. Hoje falo abertamente do assunto, mas durante muito tempo preferi negar que existira, embora sabendo que o que sou passa mutíssimo por aquilo tudo. Claro está que, à hora de se tirar ilações sobre a personalidade e a conduta de outrem, ninguém procura saber, ou pensa sequer, no que estará por detrás de tal comportamento. Sem subterfúgios, a pessoa má, egoísta, desconfiada, com falta de empatia pelos demais, excessivamente voltada sobre si vem de um processo gradual e inconsciente de afastamento do meu eu face aos outros. Excluí-me da sociedade, não através da adopção de comportamentos criminosos, senão em procurar socializar o menos possível. Eu não sei conviver com pessoas, não gosto de conviver. O meu mundo reduz-se a um núcleo mui restrito de gente que me quer bem e me aceita como sou e à minha personalidade antissocial.
Felizmente para todos, os comportamentos abusivos e os seus autores estão progressivamente mais isolados. Hoje fala-se das agressões, temos as redes sociais (que ajudam às denúncias) e grupos e pessoas especializadas no acompanhamento das vítimas. Naquele tempo... naquele tempo nada havia. Apenas as quatro paredes onde recalcávamos tantas dores.
Lamento muito tudo o que te aconteceu. :(
ResponderEliminarNão tens de lamentar, Ehehe. Não foste tu um dos 'bullies’. :)
EliminarHá sempre Bullyng que começa em casa com os pais e avós, os meninos e as meninas é que são boas, tudo o resto nada vale. A Escola é apenas o espelho e o reflexo da grande maioria das casas em Portugal
ResponderEliminarAbraço
Creio que esta situação se repetiu ao longo do tempo, e com a vasta maioria das pessoas que têm orientações sexuais que não as que se consideram "normatizadas".
ResponderEliminarEu não fui exceção, claro, e, como consequência, experimento a mesma situação que aqui refere.
Não consigo relacionar-me com as pessoas de uma forma despreocupada e "normal", como vejo acontecer com os outros seres humanos.
Os meus relacionamentos, para que se possam efetuar, têm de ser limitados a um reduzido número de pessoas, doutra forma pura e simplesmente torno-me mudo e acabo por desaparecer.
E odeio quando se encontram aquelas pessoas que se portam como se fossem "os palhaços/vedetas da companhia", que parecem muito engraçados e cheios de vida, mas que são totalmente ocos e desinteressantes.
Ainda que entenda que esse comportamento está relacionado com técnicas de sobrevivência a que as pessoas tiveram de recorrer nos anos de formação.
Lembro-me de ter encontrado, quando adolescente (por isso, há cerca de 50 anos), uma criança mais jovem que eu, que me pareceu um pequeno "ser amestrado", pois o pai da criança tinha ensinado o filho a contar anedotas, no que o miúdo se tinha tornado exímio.
Era um sucesso para todos ver um ser humano pequeno, magro, indefeso, com caraterísticas algo efeminadas, mas sem qualquer marca física que o tornasse interessante ao mundo machista que nos rodeava, contar anedotas, até mesmo algo escabrosas, no entanto com um à vontade e uma voz perfeitamente adequada á situação, que o tornavam hilariante.
Recordo a vergonha intensa que senti por estar a assistir à representação degradante daquele "macaco amestrado", mas que, no entanto, era um sucesso estrondoso. Todos se riam, e pareceu-me que o riso era mesquinho e apequenador do ser humano que ele deveria ser, e destruidor do respeito a que tinha direito.
Nunca percebi (nunca mais vi esta pessoa até hoje) se o jovenzinho se apercebia da situação horrível, se ele gostava dela ou se era obrigado a ser comediante neste "circo". Ele não me pareceu de todo limitado, antes pelo contrário, pareceu-me que era a forma que ele tinha encontrado para sobreviver à sua situação de ser efeminado num mundo regrado por homófobos.
Sei que estas situações por onde, inexoravelmente se passa, torna os indivíduos mais fortes e resilientes, no entanto, o que acontece com os outros? Os não tão fortes e resilientes?
Os processos de depressão profunda, que muitas vezes acabam em suicídio ou estados de debilidade mental que duram pela vida inteira.
Eu sou um ser isolado por excelência, passo seguramente 3/4 da minha vida sozinho, ainda que acompanhado. Nem saberia como conviver, não sei dizer as coisas convenientes ou politicamente corretas.
E num encontro com outras pessoas não se supõe que os tópicos da conversa versem sobre as máximas de Kierkegaard, o positivismo de Comte, a teoria da relatividade de Einstein, as teorias da estética, e, muito menos, as teorias economicistas de Marx.
Não que eu domine estas matérias, mas, para falar do tempo, ou dos assuntos "politicamente corretos", prefiro ficar em casa a ler, a assistir a coisas que me interessam, ou, melhor ainda, restaurar qualquer peça, das muitas que aguardam a minha intervenção.
Considero que teve muita coragem para trazer este assunto aqui, não é fácil trazer aqui situações que preferimos guardar numa qualquer gaveta do nosso in/consciente, pois nos feriram e humilharam, e ultrapassá-las implica força de caráter e um interior resolvido à força de "muita cabeçada".
Um bem haja
Manel
Olá, Manel.
EliminarSabe, o Herman disse uma vez, com assertividade, que os reveses não nos tornam mais fortes. Pelo contrário. Aquilo por que passamos tem inevitáveis consequências em tudo o que vem posteriormente.
No meu caso, não quis com este relato ajudar outros -o que se costuma dizer. Quis, sobretudo, que não passasse em vão. Que não caísse no esquecimento, e de certa forma que todos nós, enquanto membros de uma mesma sociedade, nos responsabilizássemos pelo sofrimento que causamos aos outros. Se o fazemos, temos de arcar com as consequências, e uma das consequências é a de se criar pequenos monstrinhos de carácter e personalidade deformados como eu.
Cumprimentos, e obrigado.