19 de maio de 2017

O Ornitólogo.


   Desconcertante filme a que assisti, ontem, no canal TVCine 2. As obras que ostentam a chancela João Pedro Rodrigues são quase sempre polémicas, oníricas. O Ornitólogo não foge à regra. Conheci este realizador em pequeno, com o épico O Fantasma. A um miúdo, o filme perturba, sobretudo porque foca um submundo duvidoso de fantasias insondáveis e fetiches. Odete surpreendeu menos. Morrer Como Um Homem, o pior dos três, teve direito a que fosse ao cinema com o pai, que é extremamente à-vontade com a temática LGBT. É esta, aliás, a característica comum aos filmes de João Pedro Rodrigues.

   O Ornitólogo começa com um homem solitário, que trabalha justamente como ornitólogo, que parte numa expedição para estudar o processo de acasalamento e de nidificação de uma determinada espécie de aves. Durante uma travessia de caiaque, sofre um acidente provocado pela ondulação, sendo posteriormente resgatado, inconsciente, por duas turistas chinesas que fazem o caminho de Santiago. Após tomar conhecimento da fé de ambas, toma um chá tradicional chinês e acorda amarrado por cordas, com uma pujante erecção nas suas ceroulas brancas. Procura desamarrar-se. As cordas que envolvem o seu corpo acentuam-lhe as formas masculinas. A temática sadomasoquista, já explorada em O Fantasma, surge aqui, revigorada e adaptada, em meio com a fé cristã. Fernando não é apenas o ornitólogo; é o mártir. As turistas querem castrá-lo ao terem tomado conhecimento da sua apostasia.

    Consegue fugir, levando alguns dos seus objectos. Assiste à festa dos rapazes, numa madrugada, no meio de uma floresta do interior transmontano, e ao sacrífico de um animal. O folclore e as seitas pagãs misturam-se com o desejo. Um dos rapazes vislumbra-o ao longe e desculpa-se aos seus pares, em mirandês, com a necessidade de se afastar. Fernando, protegido pela penumbra e abrigado sob uma pedra, recebe a providencial urina do careto, pelo rosto e pelos lábios, vinda de cima.

    Pela manhã, observa a arte pastorícia de um rapaz surdo, a quem indaga pelo desaparecimento dos seus pertences. Nadam juntos. Deitam-se na areia, escrevem os seus nomes com um pequeno caniço. Jesus, é este o nome do rapaz. Fernando empresta os seus binóculos para que Jesus possa ver uma ave com maior precisão. O rapaz encosta-se no seu peito. Beijam-se avidamente, rebolando pela areia. A paixão assolapada é bruscamente interrompida quando, à partida, o rapaz tira uma camisola com capuz do seu saco, que Fernando identifica como sua. Ao ser confrontado, Jesus puxa de uma navalha. Envolvem-se numa luta corporal e Fernando consegue desferir-lhe um golpe certeiro no coração, que mata o pastor.

     Persiste a caminhada de Fernando na floresta, em busca de uma saída que o leve ao carro. Pontualmente, recebe SMS no telemóvel, um dos objectos que havia recuperado, de alguém que está preocupado com a sua saúde. Fernando toma comprimidos. Ao longo do filme, não conseguimos identificar para quê. Consegue albergar-se numa tenda improvisada. Cuida de uma pomba branca, símbolo da paz e da castidade, que recupera misteriosamente de um trauma na asa. Encontra o seu documento de identificação com a fotografia picada e as impressões digitais borradas, o que evidencia que foi usado num ritual. Os instintos vocacionais de Fernando são testados no sermão aos peixes.


     Não é difícil perdermo-nos no decurso do filme. Há um encontro fortuito com três amazonas que falam latim e um milagre, quando Fernando assume as vestes de Santo António e traz o irmão gémeo de Jesus, Tomé, ou o próprio Jesus, à vida. A trama termina com Fernando enquanto Santo António, incorporado pelo próprio realizador, passeando-se numa rua da Galiza, pelo que me pareceu, com o jovem careto.

      A longa-metragem é uma história de sobrevivência, de cruzamento entre o sagrado e o profano, de um homem, com a sua libido, que passa por uma experiência transcendental que o modifica para sempre. O homoerotismo, desde logo pelos planos minuciosos, é uma constante. O actor principal, Paul Hamy, foi escolhido a rigor. Em cada detalhe do filme verificamos o desfiar dos estereótipos associados, e muito justamente, aos homossexuais.

      Gostei particularmente do filme, pese embora todo o meu preconceito com o cinema português, demasiado monótono para a minha busca constante por estímulo.

12 comentários:

  1. Li algumas criticas muito boas em relação ao filme, infelizmente ele já saiu de cartaz por aqui, mas já estou com ele aqui no Pc, vou ver esse fim de semana.

    http://cumorcum.blogspot.com.br/

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    1. Sim, eu vi-o num canal do cabo. :)

      Veja. Eu gostei.

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  2. Uhmmmmmmmmmmmmmmmm

    Tenho que ir ver esse filme, :)

    abraço amigo

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    1. Só na TV ou sacando da net. :)

      um abraço, amigo.

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  3. Mark estou a gostar deste novo Mark que já vê cinema :p Eu falo por mim, e muito raro ver filmes em português mas nem tudo é mau, e cada vez mais há bom cinema feito por cá :)

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    1. O velho Mark também via, não falava era tanto nisso, e via em casa, sobretudo. :)

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  4. Há muito bom cinema em Portugal. Vai ver o Fátima do Canijo, ou o Paula Rego do Nick Willing, por ex. Ah e o São Jorge com o lindão do Nuno Lopes.

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    1. O 'Fátima', sou sincero, não me apetece muito. Vi o 'São Jorge'. Meh. Nem escrevi acerca, não aqui no blogue. O outro que citaste nem conhecia. Ah, hoje fui ver o 'Perdidos'. Gostei, mas não me merece um artigo.

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  5. Tens de ver "Os Maias", "Os Gatos Não Tem Vertigens" ou "Florbela". O cinema português tem melhorado muito! ^_^

    Já ouvi falar do filme, mas ainda não o vi. A ver se o consigo arranjar, pois gostei do que li por aqui.

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    1. Irei anotar. :)

      Creio que será da tua preferência, sim.

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