31 de maio de 2017

The Circle.


   Abri uma excepção àquilo que havia dito, ou seja, que iria reduzir os artigos respeitantes às minhas idas ao cinema. Não deixei de ir; pelo contrário, tenho ido mais do que nunca. Não quero, até porque não levaria jeito, passar a ideia de que pretendo tornar-me num crítico de cinema. Falta-me bagagem cinematográfica (eu bem digo que serei um gajo interessante aos cinquenta anos).

   Este The Circle merece, então, a excepção. Desde o Lion, algures por Fevereiro, presumo, que um filme não me suscitava tanto o interesse. Não li qualquer sinopse. Sabia que tinha assistido a um trailer, mas tão-pouco me recordava de nada.

    A empresa / rede social Circle é um eufemismo de outra empresa que tão bem conhecemos. Com planos que deixariam Orwell corado, Bailey, protagonizado por Tom Hanks, acredita ser possível conectar o mundo na sua rede, deixando a descoberto a vida de biliões de pessoas. Mae Holland consegue uma entrevista para trabalhar na empresa, ficando com o lugar e apercebendo-se desde cedo que pouca ou nenhuma privacidade era permitida aos funcionários da Circle. Desde as actividades nos dias de folga até aos batimentos cardíacos, tudo era monitorizado por funcionários.

     Mae torna-se pioneira num projecto-piloto, quando passa a estar 24h por dia a ser seguida por milhares de pessoas através de câmaras devidamente instaladas no seu quarto e na sua casa. Umas microcâmaras, camufladas, inclusive, eram o último grito em tecnologia, que permitiria colocar o mundo online, encontrar qualquer pessoa em milésimos de segundo, votar em actos eleitorais, tornando cidadãos e governantes, países, a bem ver, reféns da Circle.

      O filme, como se adivinha, levanta problemas éticos. Até que ponto a tecnologia pode comprimir a nossa privacidade, expondo a nossa intimidade a estranhos. Um tema actual e nada fictício. Não haverá legislação alguma que consiga proteger-nos dos avanços tecnológicos. A tendência é para que progressivamente sejamos controlados. Recordo-me, em miúdo, isto em 2001, de instalarem duas enormes câmaras no recreio do colégio. Sentia-me permanentemente vigiado. Ainda que os tribunais se decidam por inconstitucionalidades várias, os benefícios sobrepor-se-ão. Governantes e governados, na deriva securitária, exigirão bases de dados, visionamentos permanentes. As microcâmaras farão com que nem saibamos que estamos a ser observados. Conscientemente, já partilhamos várias das nossas actividades online, onde estamos, o que fazemos e com quem. Eu mesmo.

      O interesse do filme reside aí. Faz, pelo menos foi esse o efeito que teve em mim, com que coloquemos questões básicas. Um acto tão comum como pegar no telemóvel e publicar que estamos no cinema X à hora Y pode ter consequências nefastas, por-nos em perigo, desde logo, e permitir que dados referentes à nossa vida sejam monitorizados sabe-se lá em que parte. As sedes pouco contam num mundo virtual. Clara Ferreira Alves, jornalista, tem-se pronunciado, e com ela concordo, sobre estas matérias. Convém que saibamos quando desligar. E, uma vez mais, aplico-me o conselho.

      Uma palavra para os actores: o Tom Hanks, as usual, fenomenal; a Emma Watson continua com aquele ar da miúda do Harry Potter, não cresce, decididamente, e não me pareceu ter uma actuação fora de série. Foi boazinha no que fez, esforçou-se. O filme vale pela inquietação que provoca.

29 de maio de 2017

Mil.


   Pensei em se deveria assinalar o feito. Nada de extraordinário. Trata-se de um patamar sem qualquer importância. Eu atribuo à estética do número. 1000. É redondinho. Acresceu um dígito. Esta é, então, a milésima publicação do blogue, que terá, seguramente, mais textos do que fotos ou vídeos. Orgulho-me disso. São centenas de artigos, crónicas e alguns ensaios (os possíveis num blogue) originais. Será interessante, daqui a uns aninhos, compilá-los numa obra qualquer. Lá para os quarenta, cinquenta, que é quando dizem que atingimos a maturidade. Como presumo que estamos sempre em constante aprendizagem, acredito que serei um tipo interessante daqui a vinte anos.

    Uma tarde molhada, que inviabilizou por completo poder assistir a um concerto dos Clã, que adoro ( « devia ser como no cinema, a língua inglesa fica sempre bem, e nunca atraiçoa ninguém » ). Com o percalço da chuva, não deixou por isso de ser agradável. Visitei a exposição de Almada Negreiros, patente na Gulbenkian até dia quatro do mês que vem, uma visita que andei a protelar. Como referi numa outra plataforma, vale bem a pena. São dois pisos de telas e esboços, bem divididos e devidamente identificados com as legendas. É um espólio numeroso. Exige calma e paciência, até pelo aglomerado que se gera. Foi das visitas de que mais gostei. O amigo que me acompanhou despachou-se prontamente, enquanto que eu me demorei o tempo suficiente. Vi tudo com atenção.

    Almada Negreiros foi um artista extraordinário, multifacetado até na pintura. A determinado momento, a sua versatilidade enquanto pintor reportou-me aos heterónimos de Fernando Pessoa, com quem, aliás, privou de perto. Enquadrando-o no Modernismo português, Almada Negreiros inspirou-se nas correntes europeias e em nomes maiores das artes plásticas espanholas. Morou em Madrid, tendo essa estadia se reflectido numa parte considerável do seu legado.

    Deixo-vos algumas fotos, o que não é menos caricato por constarem numa publicação em que destaco outras novecentas e noventa e nove praticamente sem elas.




           


25 de maio de 2017

Portugal está na moda.


   Já li esta frase algures, esta semana, e achei curiosa. Não sei até que ponto estaremos na moda, mas estamos a viver momentos de optimismo, sem euforia. O Presidente da República disse, há um dia ou dois, que temia que a manifesta recuperação económica levasse os portugueses a um estado de alienação. Até ao momento, não o sinto. Estamos, é certo, a sentir emoções inéditas. No desporto e na música, jogamos cartas; temos um alto dignitário no cargo de maior relevo entre as organizações internacionais; após décadas de marasmo e de anos de pesados sacríficos, vislumbramos a saída da crise, constatamos o crescimento económico e até no turismo, a diminuição do desemprego, o aumento dos salários e das pensões. A última boa notícia prende-se à recomendação da Comissão Europeia para que o Conselho da União Europeia retire o país do Procedimento por Défice Excessivo, o que acarretaria, ao menos na psique nacional, um alívio. A decisão está para breve.

   Creio que, enquanto colectividade, estamos a recuperar algum do amor próprio perdido. O português médio subvaloriza-se. Temos uma alma maior do que o corpo. Demonstrámos, pela história, feitos heróicos, soberbas façanhas. Nos últimos anos, convenceram-nos de que não éramos bem europeus, e que não poderíamos mais viver como tal. Aliás, a Europa sempre nos foi meio estranha. Só começámos a olhá-la quando nos afastámos do mundo. Jamais foi a nossa prioridade. Estarmos na periferia ajudou-nos a manter as fronteiras praticamente intactas desde Alcanizes, há setecentos e muitos anos, e a contornar os principais conflitos estalados no continente. Deu-nos fôlego para as aventuras d'além-mar, onde provámos, sem grande esforço, ser os melhores. Desengane-se quem crê que ser português não nos custou suor. Conquistámos o direito a sê-lo. Os nossos novecentos anos comprovam a luta, nem sempre justa, para escapar às forças centrípetas da península.

    Encaro os tempos que se avizinham com confiança, todavia com prudência. Provou-se que a austeridade não era o caminho certo, e que devolver às pessoas o que lhes era devido teve um efeito positivo na economia. Porque os números falam por si. A matemática é uma ciência exacta. Longe de querer agradar com populismos, o Governo acreditou ser possível contrariar uma corrente ideológica que via, em medidas que devem ser excepcionais, uma orientação política definida, como se não mais nos restasse do que viver em infinita contenção e sob permanentes ameaças de descalabro das contas públicas e de bancarrota.

    Espero que a moda seja um indicador de mudança, também na nossa atitude, mais obstinada, chauvinista, que em dose certa pode produzir pequenos milagres.

19 de maio de 2017

O Ornitólogo.


   Desconcertante filme a que assisti, ontem, no canal TVCine 2. As obras que ostentam a chancela João Pedro Rodrigues são quase sempre polémicas, oníricas. O Ornitólogo não foge à regra. Conheci este realizador em pequeno, com o épico O Fantasma. A um miúdo, o filme perturba, sobretudo porque foca um submundo duvidoso de fantasias insondáveis e fetiches. Odete surpreendeu menos. Morrer Como Um Homem, o pior dos três, teve direito a que fosse ao cinema com o pai, que é extremamente à-vontade com a temática LGBT. É esta, aliás, a característica comum aos filmes de João Pedro Rodrigues.

   O Ornitólogo começa com um homem solitário, que trabalha justamente como ornitólogo, que parte numa expedição para estudar o processo de acasalamento e de nidificação de uma determinada espécie de aves. Durante uma travessia de caiaque, sofre um acidente provocado pela ondulação, sendo posteriormente resgatado, inconsciente, por duas turistas chinesas que fazem o caminho de Santiago. Após tomar conhecimento da fé de ambas, toma um chá tradicional chinês e acorda amarrado por cordas, com uma pujante erecção nas suas ceroulas brancas. Procura desamarrar-se. As cordas que envolvem o seu corpo acentuam-lhe as formas masculinas. A temática sadomasoquista, já explorada em O Fantasma, surge aqui, revigorada e adaptada, em meio com a fé cristã. Fernando não é apenas o ornitólogo; é o mártir. As turistas querem castrá-lo ao terem tomado conhecimento da sua apostasia.

    Consegue fugir, levando alguns dos seus objectos. Assiste à festa dos rapazes, numa madrugada, no meio de uma floresta do interior transmontano, e ao sacrífico de um animal. O folclore e as seitas pagãs misturam-se com o desejo. Um dos rapazes vislumbra-o ao longe e desculpa-se aos seus pares, em mirandês, com a necessidade de se afastar. Fernando, protegido pela penumbra e abrigado sob uma pedra, recebe a providencial urina do careto, pelo rosto e pelos lábios, vinda de cima.

    Pela manhã, observa a arte pastorícia de um rapaz surdo, a quem indaga pelo desaparecimento dos seus pertences. Nadam juntos. Deitam-se na areia, escrevem os seus nomes com um pequeno caniço. Jesus, é este o nome do rapaz. Fernando empresta os seus binóculos para que Jesus possa ver uma ave com maior precisão. O rapaz encosta-se no seu peito. Beijam-se avidamente, rebolando pela areia. A paixão assolapada é bruscamente interrompida quando, à partida, o rapaz tira uma camisola com capuz do seu saco, que Fernando identifica como sua. Ao ser confrontado, Jesus puxa de uma navalha. Envolvem-se numa luta corporal e Fernando consegue desferir-lhe um golpe certeiro no coração, que mata o pastor.

     Persiste a caminhada de Fernando na floresta, em busca de uma saída que o leve ao carro. Pontualmente, recebe SMS no telemóvel, um dos objectos que havia recuperado, de alguém que está preocupado com a sua saúde. Fernando toma comprimidos. Ao longo do filme, não conseguimos identificar para quê. Consegue albergar-se numa tenda improvisada. Cuida de uma pomba branca, símbolo da paz e da castidade, que recupera misteriosamente de um trauma na asa. Encontra o seu documento de identificação com a fotografia picada e as impressões digitais borradas, o que evidencia que foi usado num ritual. Os instintos vocacionais de Fernando são testados no sermão aos peixes.


     Não é difícil perdermo-nos no decurso do filme. Há um encontro fortuito com três amazonas que falam latim e um milagre, quando Fernando assume as vestes de Santo António e traz o irmão gémeo de Jesus, Tomé, ou o próprio Jesus, à vida. A trama termina com Fernando enquanto Santo António, incorporado pelo próprio realizador, passeando-se numa rua da Galiza, pelo que me pareceu, com o jovem careto.

      A longa-metragem é uma história de sobrevivência, de cruzamento entre o sagrado e o profano, de um homem, com a sua libido, que passa por uma experiência transcendental que o modifica para sempre. O homoerotismo, desde logo pelos planos minuciosos, é uma constante. O actor principal, Paul Hamy, foi escolhido a rigor. Em cada detalhe do filme verificamos o desfiar dos estereótipos associados, e muito justamente, aos homossexuais.

      Gostei particularmente do filme, pese embora todo o meu preconceito com o cinema português, demasiado monótono para a minha busca constante por estímulo.

14 de maio de 2017

Amar por todos.


    Uma noite inesquecível para Portugal, semelhante àquela que vivemos nem há um ano, com a vitória no Europeu de futebol. Porque estes eventos, ainda aos que não lhes atribuem qualquer significado, colocam-nos sob a mira de milhões, dão-nos alento, são quase que o grito que damos ao mundo. Existimos. Conseguimos ser os melhores.

     Eu, particularmente, não aprecio a Eurovisão, mas deixei-me embalar no bonito poema que Luísa Sobral escreveu para que o irmão o cantasse. Há aquele coração dela que pode amar pelos dois, sobretudo pelo dele, por todos os problemas que vieram a público. É um poema que, cantado, acompanhado pelos violinos, ganha uma dimensão que não parece resultar das suas palavras aparentemente tão simples.

     A língua portuguesa brilhou em Kiev. Pôs estrangeiros a chorar ao som da voz de Salvador, muitos dos quais não compreendendo nada. É a linguagem universal da música, a capacidade de nos comover. Amália teve a experiência pela União Soviética e pelo Japão, quando entoou grandes poetas portugueses.

      Amar Pelos Dois conseguiu, ainda, transportar para a Europa toda a alma portuguesa, nostálgica, melancólica. É o triunfo do Portugal português, sem adornos, sem danças histriónicas e maquilhagens pesadas. Um homem e um microfone. A voz e a sua expressão corporal tão peculiar comunicaram com a Europa de lés a lés. Não precisámos de mais. Limitámo-nos a ser o que verdadeiramente somos: simples.

      A nossa língua e o Salvador estão de parabéns. E a irmã do Salvador. A vitória é-lhes inteiramente merecida. Obrigado por levarem a portugalidade até à Hungria, à Lituânia, à Geórgia e a tantos outros. Imprimimos o nosso nome na história do maior evento musical anual europeu.

10 de maio de 2017

Fátima.


   Fátima tem sido, pelos tempos, um assunto tabu para mim, a ponto de, presumo, nunca o ter abordado aqui. Na família, tenho de tudo: crentes, menos crentes, a mãe é crente. E eu nem sei como me hei-de posicionar. Por temor reverencial, assumo, provavelmente tenho evitado debruçar-me sobre as aparições. Evito pronunciar-me, não vá ser verdade. É cobardia, é, mas também é respeito. Tive uma fase mais esquerdista na minha adolescência, antes de me ter posicionado, e em definitivo, assim espero!, ao centro. Ainda assim, jamais afrontei a religiosidade alheia. É disparatado. Podemos discordar, sim - devemos, aliás, se é o que a nossa consciência dita - mas, em matérias tão sensíveis como a religião, devemos ter um cuidado redobrado. A fé não se explica. É tão forte que chega a curar, a melhorar sintomas de doenças. Até pelos seus aspectos positivos, deve ser respeitada e reconhecida como potencialmente importante. Dos seus efeitos perversos está a História cheia, e bem os conhecemos.

    Sou católico. Deixo-o aqui de forma clara. No tal período de indefinição, típico da adolescência, passei a agnóstico, quase ateu. Estava mesmo chateado com Deus. Quando os pais se separaram, aumentou essa desconfiança sobre uma figura qualquer que nos vendiam desde pequenos, sobretudo procurando atemorizar-nos com castigos. Crescer fez-me bem, até na religiosidade, porque percebi que não havia mal algum em acreditar em Deus e em até ser católico, podendo expurgar o que considerava estar errado na Igreja. Ser católico, pelo menos quanto a mim, não implica perfilhar de todas as orientações doutrinárias da Igreja. Oponho-me a algumas, concordo com outras tantas. E identifico-me como católico porque acredito na pedra angular, se me permitem, do catolicismo, que me reservo a não explorar aqui porque não é pertinente. Noutro momento, se se proporcionar, não terei problema algum em fazê-lo.

     Fátima é um dos enigmas que não dou por garantido. Ponho em causa a sua veracidade desde que me conheço. Não que desconfie da palavra dos pastorinhos, mas tento explicar Fátima contextualizando-a no tempo. As aparições foram oportunas. A anticlerical I República havia arrastado Portugal para a I Guerra Mundial - o erro que ditaria ao seu fim. O país precisava recuperar a crença, então perseguida pelos republicanos. E Fátima sustentaria o golpe de 1926 e, sobretudo, o Estado Novo de Oliveira Salazar, fortemente inspirado na doutrina social da Igreja. Fátima, pelas décadas, configurou um dos pilares do regime. Cresceu em importância e em volume de negócios. Hoje, é um fenómeno que gera milhões. Lembra-me, às vezes, os vendilhões que Jesus expulsou do templo. Quando olho para o santuário, vejo muita fé verdadeira de milhares de pessoas que para lá se deslocam, e que isso lhes faça bem; em contrapartida, há ganância, oportunismo e visível cinismo, arriscar-me-ia a dizer, por parte das entidades que gerem, e é este o vocábulo apropriado, aquele manancial de dinheiro.

     Não quero entrar muito pelas questões que se prendem mais à fé: a senhora mais brilhante do que o sol, o dito milagre - que a ciência tem procurado esclarecer, com argumentos muito lúcidos - os segredos. Tudo é possível nas efabulações. As pessoas precisam de acreditar em alguma coisa. Em religiões da palavra, como o são as religiões abraâmicas, não há, tendencialmente, símbolos e imagens. E os crentes precisam disso, precisam de orar defronte a uma imagem, de acender uma velinha, de ostentar uma cruz que os proteja. É tudo compreensível. Faz tudo parte desse grande mistério da fé. E Portugal precisava de ter um importante local de culto, como Lourdes. Um país tão católico, tão absorto na sua religiosidade e na sua tradição, não poderia passar sem.

     Simultaneamente, as manifestações de crendice e os exageros que as rodeiam não deveriam surpreender. Em mim, entretanto, continuam a provocar certa consternação. Não me sinto confortável quanto vejo o meu Chefe de Estado a beijar a mão ao Papa, um líder religioso, da religião maioritária em Portugal, seguramente que sim, mas que representa determinada instituição, sendo que o Chefe de Estado, investido como tal, representa o Estado português, laico. Incomoda-me, ainda, ver um militar, no exercício das suas funções, referir-se a um líder religioso com deferência excessiva, demonstrativa da sua crença pessoal, quando pertence às forças armadas do Estado português, laico, repito, bem como me incomoda que se suspendam acordos internacionais, que vinculam o Estado português, na recepção a um líder religioso. Se a ameaça terrorista o exige, pois ela existe para todos os cidadãos, não apenas para alguns, lá que sejam sucessores de Pedro. Se os acordos que prevêem a liberdade de circulação não protegem os direitos constitucionalmente previstos, termine-se com eles. E, aqui, de nada releva estarmos perante um Chefe de Estado estrangeiro. Vários Chefes de Estado estrangeiros têm vindo a Portugal e, que me conste, não se repôs o controlo fronteiriço.

     Fátima continuará a suscitar opiniões díspares, umas mais racionais, outras espirituais. Encontrar-se-á o equilíbrio ao manter o Estado equidistante o suficiente. Deixar com Deus o que é Deus, e limitar-se a ficar com o que é de César.

8 de maio de 2017

La France.


    Temi, assumo, temi que verificássemos o mesmo resultado que nos aguardou nos EUA. A Europa tem conhecido uns desvios à direita mais intolerante um pouco por cada país, desde os Países Baixos à Itália, à Turquia, inclusive, mas a França representa para todos bem mais. É a pátria da igualdade, da liberdade e da fraternidade, valores que presidem à Europa continental democrática. A França foi a primeira a enterrar o Antigo Regime, não sem passar por períodos políticos muito convulsos, afirmando-se como potência europeia e mundial. O expressivo império que ergueu prova a sua hegemonia. No campo das ideias, poucas nações como a francesa terão contribuído tanto para o nosso enriquecimento no direito, na filosofia, na politologia, na sociologia, áreas do conhecimento que influenciaram decisivamente épocas e regimes.

    A França representa, ainda, o empenho solidário do bloco europeu. É um baluarte na União Europeia, o seu sustento ante uma Alemanha economicamente dominante. Com o Brexit, que é uma evidência, a esperança de um eixo Paris - Berlim que permita contrabalançar o poderio da Alemanha desvanecer-se-ia, confirmando-se a vitória da Frente Nacional. O sistema francês é semipresidencialista, todavia, e inversamente ao português, com a tónica no presidencialismo. O Presidente da República é, efectivamente, o chefe da nação francesa, o definidor das orientações políticas no relacionamento da República com Estados terceiros.

     Le Pen, com o seu programa populista, poria a Europa numa crise de sustentabilidade política jamais vista. Se a UE agoniza, a líder da FN, numa França dominada tradicionalmente pelo aparelho estatal, de tudo faria para afastar o país da organização, deixando-nos a todos num impasse: sair ou ficar, condescender ou enfrentar. A decisão dos franceses nas urnas foi sábia. Emmanuel Macron tem fragilidades. Representa o sistema, com todos os seus vícios, mas soube - e ele próprio situa-se no centro político - manter um discurso equilibrado, nada excludente, pelo contrário, integrador. Enfrentou Le Pen, não a subestimando - o grande erro que se cometeu nos EUA, e conseguiu que se comprovasse nas câmaras a fragilidade das ideias de Le Pen, demagógicas, que procuram sempre aquele travo de intolerância que todos teríamos com atentados quase semanais à porta de casa. A obsessão securitária, tão previsível, e que Le Pen assumiu frontalmente, foi desconstruída. A França que a FN vendia não era a França tolerante, europeísta, laica e secular que os franceses querem ver assegurada.

     A distância que separou Le Pen e Macron, nesta segunda volta, foi expressiva. Não devemos, contudo, ignorar os onze milhões de eleitores que confiaram em Le Pen. Foi o melhor resultado da Frente Nacional, superior ao obtido em 2002, quando o pai da actual líder, Jean-Marie Le Pen, defrontou Jacques Chirac numa segunda volta. Analisando os resultados da Frente Nacional, observamos uma tendência crescente, preocupante, considerando que muito em breve os franceses terão eleições legislativas. E Macron, que há um ano ninguém diria que este desfecho seria ponderável, tem a seu favor o resultado de hoje, não acreditando eu numa surpresa a tão pouco tempo. Independente, afastou os partidos do poder da luta pelo Eliseu. É um fenómeno. Espera-se que o movimento que lidera consiga um número muito apreciável de assentos na Assembleia Nacional, mas não o suficiente para se afastar uma convivência difícil com um Primeiro-Ministro de outra cor política ou com uma composição parlamentar minoritária e adversa, o que obrigaria, como bem conhecemos em Portugal, a alianças que permitam a condução governativa do país.

     Por enquanto, e porque estes actos eleitorais das potências europeias têm sempre repercussões nos pequenos Estados periféricos, podemos suspirar de alívio. Macron é pró-europeu, segue a linha da continuidade. Uma continuidade que nos é favorável. O resto é com eles.

5 de maio de 2017

O Dia da Língua Portuguesa.


     Há uns poucos anos, o dia 5 de Maio foi institucionalizado como o Dia da Língua Portuguesa no seio da Comunidade de Países de Língua Portuguesa. Cada país comemorá-lo-á na sua data. Em Portugal, por tradição, a 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades; no Brasil, a 5 de Novembro, Dia Nacional da Língua Portuguesa. O dia de hoje passou relativamente despercebido entre os cidadãos lusófonos, acompanhando a fragilidade da própria CPLP. Irei falar pouco da organização, que, recordo-me, escrevi sobre ela há uns meses.

     Em que patamar estamos quanto ao nosso idioma? Pelo que venho percebendo, a língua portuguesa vem suscitando o interesse de milhões de não-lusófonos. Pela China e pelo Japão, ganha adeptos. O desditoso Acordo Ortográfico, que jamais logrou o consenso e que ainda carece de ratificação por parte de alguns Estados-membros da CPLP, está em vigor com lacunas e com falta de suporte popular, aqui e no Brasil, que os PALOP e Timor têm mais em que se preocupar. No plano das ideias, é bom ter um idioma unificado, idealmente uniformizado. Quem conhece o Acordo, sabe que a uniformização é uma falácia. As omissões são mais que muitas. A eliminação de sinais gráficos e de determinadas consoantes tornou, em alguns casos, vocábulos em aberrações ortográficas, esteticamente feias, linguisticamente intoleráveis.

     A despeito das polémicas, é de saudar a unidade da língua. É ainda de saudar que os países africanos que foram antigas províncias ultramarinas a tenham adoptado como seu idioma oficial, veicular. Que o Brasil a use, ao seu jeito, com desinvestimento dos sucessivos governos na educação e com milhões que a dominam mal, mas que a use e que lhe chame aquilo que ela é, portuguesa. Que os timorenses a queiram aprender cada vez mais. Em quinze anos de independência, passámos de 5 % para 20 % de timorenses que conseguem expressar-se em português, provavelmente longe do domínio aceitável, mas encarando-a como elemento identitário e diferenciador. Ora, temos, lusófonos, de observar o lado positivo. Temos um idioma uno. Há, por parte das entidades governativas, vontade em mantê-la coesa. Em ensiná-la. O Instituto Camões, que vem-se substituindo em competências ao Instituto Internacional da Língua Portuguesa, está presente em variadíssimos países. Centenas de milhares de alunos aprendem-na com avidez. Namíbia e Uruguai são dois exemplos de países que, pela proximidade a Angola e ao Brasil, respectivamente, vêem uma mais-valia na inclusão da língua portuguesa nos seus currículos.

     Um dos principais desafios para as próximas décadas, a par da propagação do idioma em países alheios à lusofonia, é o de se cimentar a língua portuguesa nos falantes maternos, procurando-se que estes atinjam um domínio culto do idioma, que consigam formular raciocínios bem estruturados, com uma ortografia e uma sintaxe aceitáveis. Não basta saber falar; há que saber falar bem. O futuro da língua portuguesa depende do grau de domínio dos seus falantes, sob pena de uma crioulização, uma simplificação rotineira que, a longo prazo, poderá comprometer a existência do idioma tal qual o conhecemos.

3 de maio de 2017

IX Aniversário.


    O blogue perfaz nove anos. É surpreendente constatar a voracidade do tempo. Tenho a exacta noção de quando o criei, das circunstâncias que o motivaram. Não pretendo dissimular o orgulho que tenho neste espaço. Continua a ser a minha plataforma de eleição, não obstante não abdicar de outras mais imediatas. Na imperiosa necessidade de ter de tratar de determinado assunto, inclusive de índole pessoal, o blogue assume-se como a minha escolha.

     Gosto de escrever. O segredo de se ter um blogue de escrita, primordialmente, é gostar de escrever. A apetência, quando é natural, faz com a que escrita flua sem imposições. Escrever é-me um exercício de catarse, de exteriorização de opinião. É o meu veículo de contacto com o mundo, a minha janela para o que vejo e sinto. São nove anos. Não sou a mesma pessoa de 2008. Encaro o blogue com outra atitude, mais responsável, que cresceu comigo, acompanhando-me neste processo evolutivo.

     O blogue tem passado relativamente incólume ao estado de apatia da blogosfera. Creio que também se deve ao facto de, como já referi, escrever por prazer. Não me preocupa o impacto que terá nos leitores - claro está que todos gostamos de saber que somos lidos e que nos acompanham. Entretanto, quem publica determinado conteúdo com um olho no alcance que terá, facilmente desanima.

      Quanto a mim, não senti ainda o desânimo ou a falta de inspiração. O mundo fornece-nos tanta matéria interessante que só um idiota - aqui sem ânimo de ser pejorativo; no sentido de indiferente - não encontrará um estímulo. Há uma panóplia de temas e de áreas de interesse que abarca todas as preferências pessoais. O segundo segredo de manter um blogue é este: escrever, ou publicar, melhor, sem pensar muito no que virá. Mais ou menos como viver. Pegando nas palavras da senhora da pastelaria em que comprei o bolo de aniversário - o meu, que o blogue só terá direito a um no 10.º aniversário (risos) -  « não ter pressa, ir contando os anos, um por um ».

      Não me alongarei mais. Já são nove as publicações que assinalam os aniversários. Resta-me agradecer a todos quantos me seguem e acompanham. Também àqueles que me enviam e-mails tão simpáticos e encorajadores. Bem hajam todos!


lots of love,
Mark