Assisti, como certamente milhares de portugueses, à investidura presidencial do Senhor Professor Doutor Marcelo Rebelo de Sousa. Um dia que começou cedo por São Bento. Marcelo chegou pelo seu pé, prescindindo de uma viatura, anunciando aquele que será um estilo pessoal muito próprio. Sorridente, embora algo nervoso, subiu a escadaria do Palácio. Lá dentro, esperava-o a fina-flor do Estado. Confiante, fez o juramento solene com a mão direita sobre a Constituição da República Portuguesa, de 1976, a versão original saída da Constituinte. Seguiu-se-lhe um discurso muito rico, literariamente bem redigido, repleto de mensagens subliminares de relevo, a que me proponho analisar.
O Presidente, recém-empossado, começou por falar na riqueza cultural que temos - a nossa língua, vínculo que nos une a milhões de seres humanos. Na Pátria, no amor e na saudade que o une à terra em que criou os seus filhos e espera ver crescer os netos. Aludiu ao milagre de Ourique, aos nossos primórdios, na pessoa de Afonso Henriques, iniciando o seu discurso nas origens da nacionalidade. Ao povo português dirigiu o seu primeiro pensamento, leal, afectuoso e de memória. O Presidente quis recuperar um sentimento patriótico que se vem perdendo, sem receio de o fazer. O patriotismo, o apego à Pátria, ficou associado ao Estado Novo, mas Marcelo pretende resgatar um certo orgulho que se desvaneceu.
Às palavras de apreço institucional à Assembleia da República, aos ex-Presidentes, a Sua Majestade o Rei de Espanha, ao Presidente da República de Moçambique e ao Presidente da Comissão Europeia, Marcelo sublinhou a importância das relações de boa vizinhança, de fraternidade com os povos lusófonos e de estímulo à integração europeia, assente na igualdade e na união.
Regressando à exaltação dos valores históricos, o Presidente citou um herói português do século XIX. Mencionou Zamora, o tratado que instituiu a nossa independência de Leão, em 1143, e a Bula Manifestis Probatum est, na qual o Papa reconhecia formalmente a validade do Tratado de Zamora e a nossa independência, em 1179. Uma vez mais, Marcelo evocando a história quase milenar do Reino de Portugal. Percorreu, então, a Idade Moderna, com a nossa expansão marítima, passando pela Restauração de 1640, pelas missões de paz e pelo grupo de capitães que obrou a Revolução de 1974. O herói português era um soldado, e Marcelo quis demonstrar como Portugal é um feito de soldados, de homens de guerra. Ao 25 de Abril deixou uma palavra de reconhecimento. Anunciou-se a democracia e a transmutação do Império Colonial na Comunidade de Povos de Língua Portuguesa que nos agrega, selada na paz e no respeito.
A memória reportou-o, uma vez mais, aos tempos de deputado constituinte, quando votou a actual Lei Fundamental. A mensagem do Presidente é, aqui, bem clara. Ele conhece a Constituição, ensinou-a por quarenta anos; cumpri-la-á e fará com que ela se cumpra. Assumiu-se enquanto um guardião escrupuloso do texto constitucional.
Na senda do respeito pela Constituição, Marcelo reconheceu a estrutura basilar do nosso Estado de Direito Democrático - o respeito da dignidade da pessoa humana. Foi específico e contundente: falou, sem delongas, das «pessoas de carne e osso», dos milhões de pobres e de excluídos, das diferenças entre regiões, grupos e classes sociais. Manteve-se fiel aos compromissos abraçados pelo Estado, de respeito pela liberdade religiosa, de expressão, de pensamento, de opinião, cujas responsabilidades da sua defesa atribui a todos. A visita à Mesquita de Lisboa, propiciando-se o diálogo ecuménico, foi uma demonstração desse empenho firmado na sessão solene do Parlamento.
Aos valores da Constituição, Marcelo quis cimentar o valor do mar, a plataforma que nos aproximou dos demais povos, a nós, um vértice constituído pelo Continente, pelos Açores e pela Madeira. O mar, à semelhança da história, é uma das prioridades do novo Presidente. Portugal, na perspectiva de Marcelo, tem um lugar privilegiado nas relações entre os povos, lugar esse que advém da nossa vocação histórica e marítima, sem xenofobias. O Estado deve, assim, apostar na educação, na cultura, na ciência, sem temer o passado. Uma palavra sobre o nosso Estado de Direito Democrático e o respeito pela tradicional separação de poderes, pela autonomia político-legislativa das Regiões Autónomas e pela autonomia político-administrativa do Poder Local. O Senhor Presidente não olvidou os direitos sociais, incumbência do Estado, nos domínios económico, social e cultural.
A atenção de Marcelo recairia, então, no sector económico, e o Presidente foi peremptório ao afirmar que o poder político não pode e não deve ceder aos interesses económicos. O poder político não deve, num assomo «dirigista», pegando numa palavra do Professor, manietar a sociedade civil - Marcelo é um liberal moderado - no entanto deve impor regras e corrigir injustiças. E o Presidente deve, portanto, promover os consensos necessários.
Gostaria de salientar o que o Presidente proferiu no parágrafo seguinte. A Constituição, «como toda a obra humana, não é intocável». Desvendo um possível conteúdo ideológico nestas palavras. Poderá extrair-se a ideia de que o Presidente é favorável a que a Assembleia da República reveja a Lei Fundamental.
Falando no plural, na segunda pessoa, o Presidente defendeu que devemos ser capazes de levar em diante reformas nas instituições, pautadas pelos valores que nos regem, onde inclui, pela primeira vez no discurso, a valorização do ambiente e a equidade entre as gerações. A partir de então sempre na segunda pessoa, devemos ainda honrar os nossos compromissos, nomeadamente os que se revelam de assaz relevância na nossa política externa, como os assumidos na União Europeia, na Comunidade de Países de Língua Portuguesa e na Organização do Tratado do Atlântico Norte. Também aqui o Presidente não renegou a conveniência de se empreender uma reflexão de espírito solidário, dirigindo-se à crise dos refugiados e às desigualdades no seio da CPLP.
Precisamos recuperar o «amor-próprio», num incentivo à esperança, lutando com a sabedoria e a experiência, para que afastemos as crise cíclicas que nos afectam. Devemos ser capazes de lutar contra a corrupção, o clientelismo e o nepotismo, que empobrecimento, injustiças e conflitos despoletam, reafirmando a qualidade e a capacidade da nossa Justiça, Segurança Social e Administração Pública.
Marcelo pretende ser um elo pacificador, após crises que acentuaram as divergências e a polarização da sociedade portuguesa, referindo, de novo, os consensos a que está disposto a promover. Para os cinco anos vindouros, carecemos de reforçar o que nos liga à Pátria - o valor transcendental da Pátria, sempre presente pelo discurso presidencial, de efectivar a criação de emprego, reforçar a coesão nacional, o crescimento económico e a viabilidade financeira do Estado. Itens muito programáticos, que não dependem apenas, mas também, do Presidente.
No término do discurso, Marcelo guardaria umas derradeiras palavras de incentivo e de confiança no futuro, apelando ao que de melhor subjaz no colectivo nacional português. Apelou à coragem, à perseverança, ao bom ânimo. À honestidade. Diz-se um Presidente de todos, «que não é a favor, nem contra ninguém», conquanto, isso sim, seja a favor do jovem que procura emprego, da mulher, do pensionista e do reformado, do agricultor, do industrial, do comerciante, do trabalhador. Um servidor da Pátria, da Pátria que quase que clama por si. Citou Torga.
Esta é a minha interpretação do prolixo discurso do Senhor Presidente. O primeiro de uma leva de intervenções no quinquénio seguinte. Não duvido de que Marcelo Rebelo de Sousa não hesitará em sair dos muros de Belém, auscultando os anseios do povo. Procederá a Presidências abertas. Deslocar-se-á ao Porto, nesta sexta-feira, não descurando uma cerimónia protocolar na segunda maior cidade do país. No dia de sábado, o Palácio de Belém estará aberto aos visitantes. Marcelo quer ser o homem que aproximará o órgão de soberania Presidência da República dos cidadãos. E, continuando assim, estará no bom caminho.
* Todas as citações do discurso de Marcelo Rebelo de Sousa constam entre aspas, e em itálico.