6 de fevereiro de 2016

Grandpa.


     Há precisamente um ano, o meu avô paterno faleceu após padecer de uma enfermidade degenerativa que o foi progressivamente incapacitando. Eu, bem como todos os seus familiares próximos, pude acompanhar a sua deterioração física e psíquica. Até que, qual golpe do destino, infortúnio ou manifesta estupidez da minha parte, perdemos o contacto nos dois últimos anos que antecederam a sua morte.

      Foi, como há um ano referi, um dos dias mais complicados que vivi. A primeira perda efectiva, sentida. Embora nunca tivéssemos sido afectivamente próximos, havia uma presença minha assídua na sua casa. Não era a visita diária, mas rara era a semana em que não passava por lá, cumprimentando-os, inteirando-me do seu estado de saúde.

   Divergências várias propiciaram a que a avó paterna, e o avô, em certa medida, nunca tenha conseguido ultrapassar as barreiras iniciais que se interpõem pela não censurável desconfiança que pode surgir quando duas pessoas contactam pela primeira vez. A avó não gostava da mãe, e a mãe não gostava da avó. Tinham uma relação dissimulada, tão prejudicial para o bem-estar da família. Por inerência, não fui o neto dilecto. A sombra da mãe perseguia-me na minha relação com os avós. Sei que eles não se conseguiram desvincular da má impressão inicial, talvez por a mãe ser uma mulher divorciada, por não corresponder exactamente ao que entendiam como a esposa ideal.

      Com a separação, naturalmente que os velhos ressentimentos se agravaram. A avó acolheu o pai, num primeiro momento, assegurando-o de que estava certa quando se opôs à sua escolha pela mãe. Tudo se reflectiu na minha convivência com os avós. Ouvi críticas, insinuações acerca da mãe. É difícil manter o papel de filho, que defende intransigentemente a sua mãe, e o de neto. Vi-me obrigado a escolher, e a escolha incidiu, como não poderia deixar de ser, na minha mãe.


   Julguei que a avó não sobreviveria. É uma senhora psiquicamente instável desde nova, com um historial vincado de depressão profunda. Carece de ajuda. Os seus quase noventa anos, porém na posse de todas as faculdades mentais, e uma anorexia nervosa não ajudam a que consiga a tranquilidade tão merecida. Não é a típica avó idosa, mulher de uma vida de trabalho. Mas a idade impõe respeito. E a sua condição exige cuidados redobrados. O pai, percebendo que o seu dever seria o de acompanhar a mãe, pediu transferência do Porto, onde residia há largos anos, para Lisboa. Aproximámo-nos, consequentemente, e eu da avó. O neto preterido, com uma mudança de residência da minha prima, passou ao neto que lhe faz companhia, que pega na sua mão, que a beija. Esquecemos as diferenças.

     Não estamos tanto tempos juntos quanto gostaria. Preciso de alguma sanidade mental. Conviver de perto com a avó, por muito tempo, não é benéfico. O pai, seu filho, está ciente disso.
       Confessa-me que queria vender a casa, sair. Cada canto lhe traz o avô. Foram sessenta e muitos anos de casamento. Setenta anos de comunhão. Se for bem sucedido nos meus ambiciosos planos, não porei de lado a hipótese de convidar a avó para morar comigo. Não sei quantos anos de vida lhe restam, e seria, certamente, uma boa forma de conformar um amor que nunca viu a luz do dia.

24 comentários:

  1. E, no final o que diria a tua mãe acerca disso?!

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    1. De levar a avó comigo? Creio que acharia bem. As hostilidades não mais fazem sentido.

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  2. Desculpa, pensei que a fosses levar em breve e não quando tivesses o teu canto :) desculpa :) Fico contente por começar a haver harmonia familiar :)

    Grande abraço amigo

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    1. Isso, sim, seria uma bela prova de solidariedade. Mas nenhuma aceitaria.

      um abraço.

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  3. Queres levar a tua avó pra viver contigo, um dia que já tenhas o teu espaço. Porém, dizes que, a bem da tua sanidade mental, o convívio prolongado com ela não te faz bem. Eu compreendo que queiras colmatar o sentimento de perda e os remorsos pelo tempo que não passaste com o teu avô, principalmente nos anos antecedentes à sua partida. Mas, será a decisão mais acertada, tendo em conta o que sentes em relação à tua avó?

    Abraço :)

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    1. Se reparares, escrevi: «(...) não porei de lado». A hipótese paira no ar. Não sei se o farei, se não. Em todo o caso, ainda que o seu lado depressivo me perturbe um pouco, não sei quanto tempo nos resta. E vejo-a só, desamparada. Fica entregue aos cuidados de terceiros, que o pai tem a sua vida.

      Eu gosto da minha avó. Talvez não a ame; gosto, todavia, o suficiente para a receber em minha casa. Sou seu neto, independentemente de quaisquer diferenças, que, a bem ver, nem existem mais.

      um abraço.

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  4. Bom dia
    Gostei de te ler. Uma história como muitas outras que conhecemos.
    Acredita que não é fácil conviver com estas idades e estas doenças.
    O melhor para ela e também para ti nem sempre estará acessível. Eles cansam-se agora muito rapidamente das pessoas, dos ambientes e muitos dias desejam voltar às suas origens.
    Apenas uma palavra - Coragem e muito carinho.
    Não tenhas medo de ajudar e de acarinhar até que seja possível.
    O seu meio ambiente poderá estar carregado de recordações, mas é isso que os faz viver. O que eles querem é alguém perto para superarem os medos e todas as outras recordações.
    Abraço

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    1. Boa tarde, Luís Coelho.

      Cada história tem as suas peculiaridades. A nossa não é excepção. :)

      É verdade. A avó tem muitas saudades do passado. Desde a morte do marido, o meu avô, que foi tomada por uma tristeza que agravou sobremodo a sua depressão.

      Tem toda a razão. Bom, eu estou disponível sempre que me é possível.

      um abraço.

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  5. Nossa... quantas coisas há nas entrelinhas dessa sua postagem meu amigo... creio que vários blogues poderiam seguir por essas linhas e não conseguiriam esgotar os assuntos que se apresentam...

    A vida é um "conjunto de equações" com variáveis bem complexas... mas algumas coisas valem ser lembradas... ser o preterido, não significa necessariamente ser o menos amado! Talvez apenas possa mostrar que na visão deles você pudesse ser o mais "amparado", ou mais forte e não precisasse de maior atenção deles! Quem sabe?! Também há as questões familiares que sempre pesam... como bem dizes não há como ser neutro em determinados momentos... e mesmo eu que "adoro ser a Suíça" por vezes tenho que tomar partidos ou firmar posições...

    Acho que fazes bem... amar e respeitar não significa assinar um cheque em branco (acho que ninguém mais usa cheque nestes novos tempos) a tudo o que a pessoa faz. Aproveita teu tempo com a tua avó, apesar de tudo... talvez seja nesse solo mais árido que importantes lições possam nascer e até fortalecer o sentimento entre vocês.

    Há uma outra coisa que me chama a atenção... muitas vezes nos preocupamos demais com as pessoas, julgando que elas não terão condições de lidar ou suportar isso ou aquilo. Sua Avózinha do auto da sua idade está ai para mostrar que todos somos capazes de surpreender....

    Eu tive uma relação distante com meus avós... infelizmente! Por conta da distância, tive pouco contato com os avós maternos e do lado do meu pai, minha avó faleceu quando meu pai era criança e meu avó quando eu tinha uns 7 anos! Hoje tenho só o avó materno, que se encontra bastante enfermo... apesar de saber que eles se orgulham do neto, a grande verdade é que eles não me conheciam... e isso me chateia um pouco. Mas... faz parte da vida também! ;-)

    Lindo e forte post como sempre!

    Abraço grande.

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    1. Olá, amigo Latinha.

      Sim, seria possível, mas não foi bem assim. Fui o preterido e o menos amado pelos meus avós paternos. E em criança, assumo, morria de ciúmes da minha prima. Cresci acostumado a ser o mais acarinhado, o mais mimado. Pelos pais e por todos os que me rodeavam. Na casa dos avós, pelo contrário, a dita minha prima preenchia esse lugar que eu reconhecia como o meu, daí que a nossa relação, dos primos, nunca tenha sido boa. Rivalizávamos a atenção, o carinho dos nossos avós. Enquanto a minha bisavó foi viva, fui o seu bisneto preferido. Tinha alguma graça ver as minhas brigas com a prima: enquanto que a avó se colocava oportunamente ao lado dela, a bisavó ficava do meu. Com a sua morte, perdi esse equilíbrio. A minha avó, esta senhora de que falo no texto, chegou a dizer-me que a minha prima seria mais do que. Assim, secamente. Anos volvidos, ela nem tem curso superior. Ficou-se pelo ensino secundário e por uns cursos avulsos. Mas a sua vontade de que ela me ultrapassasse era tão ostensiva que eu jamais poderei esquecer estas - e outras - abordagens tão lamentáveis numa avó.

      Sempre fui melhor aluno do que a minha prima. A separação dos pais e este desprezo dos avós levaram-se sempre a lutar, enraivecido, por ser o melhor. Em tudo.

      Não guardo rancor. Confrontei a avó com tudo isto. Ela está plenamente bem e consciente, ainda que seja instável e melancólica. Evidentemente, negou. Diz que sempre gostou de ambos por igual. As suas atitudes, ao longo dos anos, demonstram o contrário.
      Já lá vai... Não irei perder tempo com ressentimentos. Não temos esse tempo. Houve dois anos de ruptura, o falecimento do meu avô... Ainda posso fazer alguma coisa na tentativa de recuperar um pouco da que gostaria que tivesse sido a nossa relação avó-neto.

      um abraço enorme, amigo.

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    2. Amigo...

      Relações familiares são sempre delicadas e complicadas... é um fato! Sejam elas na "horizontal" (primos, primas, ...) seja na "horizontal" (tios, tias, avós, avôs)... Enfim, importante que amadureceste e crescente! Tua história serve bem para mostrar e acabar com aquele mito que toda pessoa idosa é "boazinha", muitas vezes nos deixamos esquecer que são pessoas, passíveis de erros também.

      Tua postura mostra que por mais machucado que possa ter ficado, soube superar (tudo bem que esquecer ninguém esquece) e soube estar presente quando eles precisaram!

      Espero que vocês consigam recuperar e aproveitar esse tempo que possuem juntos!

      Abraço grande!

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    3. *mais do que eu (apenas corrigir um pequeno lapso no meu comentário anterior)

      Sim. Não tenho quaisquer ressentimentos. É a minha avó, e gosto dela.

      Esperemos que sim!

      um abraço enorme. :)

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  6. Compreendo o que dizes e que sentes. Ainda que não tenhas sido o neto preferido, os avós são sempre avós. Como uma vez ouvi a um camarada "a nossa família, é a nossa família. Por muito mal estruturada que seja, é o nosso porto de abrigo, e não conseguimos deixar de nos preocupar com ela". Erros que todos cometeram no passado não devem ser, no presente, objeto de justificações e condicionadores de ações. O que interessa é o futuro. E como disseste, a tua avó tem quase noventa anos. Não viverá outros noventa, com toda a certeza. Há que lhe proporcionar uns últimos anos com paz, amor e tranquilidade.

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    1. É um bocadinho por aí. Hoje em dia, penso no tempo que perdi com o avô; naqueles dois anos inconsequentes. Quando esta avó partir, não terei, seguramente, outra (paterna).
      Falamo-nos diariamente, e sempre que posso vou a sua casa, que é, de momento, a casa do pai também.

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  7. Mais uma vez peço desculpa por me intrometer neste seu espaço.
    Eu, que seria talvez avô, caso tivesse constituído família, fico algo tocado por este relato.
    Não tenho uma noção de família, tal como é tida tradicionalmente, pois a minha é pouca mais que extinta (o que terão feito no passado, ou não, para ficar assim...), no entanto fico sempre muito sensibilizado por estes relatos.

    Não deixa de ser algo curioso perceber como estamos sozinhos e que o mundo não foi feito para gente isolada.
    Está estabelecido e preparado somente para acolher núcleos mais ou menos gregários, ainda que exista um conjunto de regras sociais que acolhe os "outcasts" como eu, e outros, pois cada vez são mais as pessoas que, por qualquer razão, permanecem nas franjas da sociedade.
    Uma boa semana
    Manel

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    1. Boa tarde, Manel.

      Não peça desculpa. O seu comentário, sim, sensibilizou-me.
      Sabe, sei que ficarei só. Tenho absoluta consciência disso. E sei, como o Manel sabe, que o mundo, como diz, não é benevolente com quem está só; com quem, por variadíssimos motivos, não constituiu família. Sei, desde há muito tempo, que não nasci para ser o tradicional pai de família; não terei, nesse sentido, filhos e netos. A minha família será o núcleo de pessoas que possa achegar a mim por afinidade.

      A mãe e o pai partirão. Envelhecem. Sinto-me cada vez mais só, e vislumbro um futuro que será desbravado tendo-me por exclusiva companhia. Um futuro muito incerto. São-o todos; o meu, contudo, um pouquinho mais.

      Uma boa semana. Sinta-se sempre à vontade de aparecer.

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    1. Sim, a sua morte trouxe o reatamento dos laços que se haviam perdido algures.

      Guardo alguns momentos, sim. Poucos. Recordo-me de estar ao seu lado a ver televisão; de lhe dar a sopa, quando ele já não conseguia comer pela sua mão; de o amparar, quando se erguia do sofá. Sobretudo dos momentos na doença, é curioso. Vivi sempre perto do meu avô e tenho poucas lembranças suas, saudável. Talvez porque a doença o afectou por catorze anos. Antes da doença, tenho uma imagem por outra, pontual.

      Obrigado pelo apoio.

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  9. Os laços afetivos são complicados, e nem falo apenas dos familiares. Acredito que no ano passado não tenha sido fácil para ti lidar com a nova "realidade", nunca é quando perdemos alguém, independentemente do tipo de relação que se tenha. Tu tens uma visão bem própria da vida, e talvez seja um trunfo para o teu futuro, mas isso só tu saberás :-)

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    1. Creio que ninguém está preparado para a morte de um familiar tão próximo. Perguntei ao pai e a avó, à conta dos dois anos em que me afastei, se não estariam já à espera deste desfecho. Disseram-me que não.
      Vemos as pessoas a definhar e não queremos acreditar que estão a deixar-nos aos poucos.

      Bom, que me dê conta desse trunfo, e que lhe dê uso! :)

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  10. O final é totalmente meritório! E em nota lateral,faz-me sempre confusão as pessoas quererem apratar-se de locais, m´suicas, memórias de entes que lhes foram queridos! A dor é grande mas o amor devia ser maior, e com um sorriso, lembrar e acolher os bons momentos... Também tenho disso na família, os meus Pais partiram mais cedo do que suposto e nunca se está preparado quando a ligação é dantesca e, sobretudo, inesperada, mas ao contrário até de meus irmãos, tê-los presentes em tudo o que estavam e faziam, creio ser o maior tributo, mas compreendo, obviamente, a lídima dificuldade em lidar assim, pelo menos por uns tempos...

    Voltando a ti, faz isso, Mark, e com a tua avó sente o que o amor produz...

    Hugs

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    1. O meu avô, pelo contrário, não partiu cedo demais. Faleceu com perto de noventa anos. Completá-los-ia este ano. Teve uma vida cheia de aventuras, amores e desamores. Não foi, devo dizer, um homem de temperamento fácil. Tinha os seus defeitos, como todos. A nossa relação nem sempre foi pacífica, pelos motivos que mencionei acima. Em todo o caso, acredito que no fundo, no fundo, gostava de mim à sua maneira.

      um abraço.

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