17 de julho de 2012

Carlota Joaquina.


 Carlota Joaquina será, sem dúvida alguma, uma das personagens mais controversas e enigmáticas da História de Portugal e do Brasil. Maltratada pelas historiografias portuguesa e brasileira, que deturparam a sua imagem, sobretudo pelas suas fortes convicções anti-liberais, Carlota Joaquina ficou para a posterioridade como uma mulher feia, maquiavélica, adúltera e inescrupulosa.

 Filha primogénita dos monarcas espanhóis, Carlos IV e Maria Luísa Teresa de Borbón, Carlota nasceu a 25 de Abril de 1775. Aos dez anos casou por procuração com o príncipe D. João (futuro D. João VI) que, a esta data, era apenas o filho secundogénito da rainha D. Maria I e do rei D. Pedro III de Portugal, não sendo herdeiro da Coroa em virtude de ainda estar vivo o seu irmão mais velho, D. José, que por infortúnios do destino (e da religiosidade cega de sua mãe que não permitiu a inoculação contra a varíola), nunca chegou a reinar, morrendo em 1788.
 Carlota era uma mulher determinada, convicta, ardilosa (no melhor sentido da palavra) e inteligente, o que compensava os seus parcos atributos físicos de que as crónicas da época assim dão conta. Como princesa real, Carlota teve uma educação esmerada, sabendo várias línguas cultas e sendo conhecedora em vastos domínios do saber.

 A França e a Espanha (sua terra natal) tornaram-se aliadas políticas contra a Inglaterra, tentando que Portugal aderisse à aliança, voltando costas ao seu tradicional aliado. Era do interesse da França que a Espanha invadisse Portugal, situação que se agudizou com a queda do Directório no golpe do 18 Brumário de 1799, levando à progressiva ascensão de Napoleão Bonaparte e das suas subsequentes ideias imperialistas em torno da Europa. A hesitação de Portugal levaria à invasão espanhola de 1801, em que foram ocupadas várias praças portuguesas (nomeadamente Olivença que, ao contrário das restantes, não mais nos foi restituída).
 Carlota, apesar de espanhola, defendeu os interesses de Portugal e não deixou de avisar Carlos IV do perigo que Napoleão representava, demonstrando a sua perspicácia política.

 Poucos anos mais tarde, Napoleão estava decidido em dominar a Europa e o mundo, ultimando Portugal ao Bloqueio Continental a Inglaterra (ao qual não aderimos) e que nos custaria as invasões francesas e a fuga da Corte para o Brasil, em 1807. Carlota, princesa regente, acompanhou o seu desavindo marido e toda a família real na viagem para a maior e mais rica colónia portuguesa.
 Em Espanha, Napoleão substituíra Carlos IV no trono pelo seu irmão José Bonaparte, tornando este último rei de Espanha e do seu vasto império colonial. Uma vez que Carlos IV havia anteriormente abdicado da Coroa em favor do seu filho Fernando VII, reconhece-se Fernando VII como o rei deposto. A família real espanhola foi exilada, restando Carlota Joaquina como único membro da família real espanhola que estava longe da alçada de Bonaparte. Os domínios espanhóis na América Latina recusaram-se a reconhecer José Bonaparte como legítimo soberano, ameaçando a emancipação, o que levou a germinar em Carlota Joaquina a possibilidade de se tornar rainha daqueles territórios ou, no mínimo, regente em nome do seu irmão. Veja-se a sua ambição, para uma mulher que vivia nos inícios do século XIX! Procurando apoios atrás de apoios, nomeadamente do Reino Unido, correspondendo-se directamente com o governo inglês, o que indignou D. João e também causou uma mal impressão nos ingleses, Carlota tentava construir a sua teia diplomática. Avisado pelo embaixador britânico no Rio de Janeiro, lord Strangford, de que se Carlota conseguisse subir ao trono nas colónias espanholas depressa se livraria de si, D. João ficara assustado, negando a permissão a Carlota Joaquina para que esta se ausentasse do Brasil, num pedido formulado por Carlota ao receber a notícia de um emissário argentino que a avisou de que se fosse para o Rio da Prata, depressa seria aclamada rainha. Um plano que lhe sairia gorado.



 Também D. João pretendia unir as colónias espanholas, sobretudo os territórios do Rio da Prata, e o Brasil sob o seu ceptro real, argumentando de que era seu direito fazê-lo, como esposo da única princesa espanhola legítima em liberdade e devido às invasões francesas e espanholas em Portugal, a esta altura um reino destruído e arruinado. Evidentemente, Carlota não queria que esta política expansionista se desse à custa de territórios que clamava como seus. Os planos de D. João não lograriam, pois, à margem de intrigas feitas pelo Reino Unido, que pretendia a independência das colónias espanholas e não a sua união sob a Casa de Bragança, falhou os seus intentos, arrastando consigo as pretensões de Carlota Joaquina.

 Já desde os tempos da permanência da Corte na metrópole que era conhecida a incompatibilidade de Carlota com o príncipe D. João. No Brasil, as diferenças subsistiram. Cada um vivia no seu palácio, numa malha de intrigas e maledicências. Carlota tinha um comportamento sensual e erotizado, imaginando-se como rainha por direito próprio (e não consorte) e tendo aventuras extraconjugais, com relatos de affairs com escravos africanos. Verdade ou mentira, dificilmente se saberá.

 Com o fim da Guerra Peninsular, despoleta a Revolução de 1820 que exige o imediato regresso da Corte a Portugal. Carlota Joaquina e D. João VI, já reis desde 1816 com a morte de D. Maria I, regressam com toda a família real, ficando, como se sabe, D. Pedro como regente no Reino do Brasil.
 Em Portugal, os monarcas foram obrigados a jurar a Constituição de 1822 e o novo regime liberal, tendo-o recusado Carlota Joaquina, que prontamente não jurou a Constituição, mostrando-se contra o regime liberal e engendrando com o seu filho, D. Miguel, estratégias para derrubar o liberalismo e restaurar a antiga ordem absolutista. A ideia de Carlota seria a de destronar o seu marido, assumindo a regência e colocando o seu filho predilecto, D. Miguel, como comandante supremo do exército. O facto de não jurar a Constituição em muito indignou as Cortes, que houveram estabelecido de que todos os portugueses deveriam jurá-la sob pena de expulsão do reino. D. João VI contornou a situação enviando Carlota para a Quinta do Ramalhão, fundamentando a atitude com uma doença desta.

 No Ramalhão, Carlota manteria os seus planos ousados. As primeiras revoltas contra o liberalismo, a Vilafrancada, em 1823, e a Abrilada, em 1824, tremeriam o novo regime liberal, com D. Miguel por detrás destes movimentos conspiratórios. Com o movimento conhecido como Vilafrancada, D. Miguel conseguiria o posto de comandante supremo do exército; com a Abrilada, que pretendia afastar de vez o liberalismo, os intentos não foram prosseguidos, tendo D. João VI conseguido afastar os revoltosos absolutistas sob protecção de uma nau inglesa que estava ancorada no Tejo. Destituiu D. Miguel do cargo e, à grande mentora do projecto falhado, Carlota, exilou para sempre em Queluz, estando proibida de regressar à Corte.

 Terá Carlota parado?

 Com a morte de D. João VI, em 1826, Carlota continuou a influenciar D. Miguel para a tomada do poder, o que acabaria por acontecer em 1828, após dois anos de regência da sua filha Isabel Maria. À Guerra Civil entre liberais e absolutistas, encarnados em D. Miguel e o seu irmão D. Pedro IV (I do Brasil), não viveria o suficiente Carlota para assistir. Morreria a 7 de Janeiro de 1830, abandonada e sozinha, esquecida por D. Miguel que, chegando a rei, esquecer-se-ia da sua mãe, não a tirando a tempo do desterro.

 Carlota Joaquina foi uma mulher de fortes convicções, ambiciosa e pragmática. Nada sentia por D. João VI, o que não impressiona numa época em que os casamentos reais eram celebrados por interesses político-estratégicos, em alianças estabelecidas entre as respectivas famílias reais. A ligação de Carlota ao Absolutismo, que saiu fracassado na Guerra Civil, haveria de criar o mito de mulher má e conspiradora. E se é verdade que "onde há fumo, há fogo", também não é menos verdade de que hoje Carlota seria apenas e só uma mulher determinada, como tantas que, felizmente, temos.

16 comentários:

  1. Sem grande dúvida, foi uma grande mulher para a sua época.

    Não foi ela que casou como Rei Inglês, que levou o "culto" do chá, para Inglaterra. Tb por ser tão feia, foi devolvida a Portugal?

    Estarei a fazer confusão?!

    Abraço amigo

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  2. Francisco: Não sei se terá sido uma grande mulher para a sua época. Não a pretendi defender aqui, mas também não a quis "atacar", como as historiografias portuguesa e brasileira fizeram ao longo dos tempos. Relatei os factos e, à luz destes, pareceu-me tratar-se de uma mulher ambiciosa e não o monstro horrendo que subsistiu pelos séculos. :)

    Fizeste mesmo uma grande confusão! Já há uns dias, falando com um amigo, ele me perguntou o mesmo. Não!, essa rainha foi D. Catarina de Bragança, filha de D. João IV. Ela não foi devolvida a Portugal: mesmo não tendo sido um casamento feliz, ela só regressou a Portugal após a morte do seu marido, o rei inglês Carlos II. :) Na época de Carlota Joaquina, já D. Catarina tinha morrido há muitoooo tempo. :)

    abraço :3

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  3. Uma grande lição de História! Adorei! ^^

    Hughie :333

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  4. Fabuloso.
    Claro que sabia um bocado sobre a vida desta rainha, mas agora fiquei muito mais esclarecido.
    Independentemente das suas tomadas de posição políticas, a sua figura, reconhecidamente pouco atractiva e o seu feitio, fazia com o seu desavindo marido, D.João VI um dos casais reais mais estranhos de toda a História de Portugal.

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  5. Cláudia: Bem-vinda. :)

    Hórus: Ainda bem que gostaste da Carlota, coitadinha... digo, da minha dissertação histórica. :D

    João: Concordo em absoluto contigo. Foram um casal tão caricato. Eu acho um piadão aos dois. :D O engraçado é isto! :) A mulher era toda, como se diz vulgarmente, "mandada p'rá frentex". LOL

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  6. Mark

    Isso, foi a D. Catarina que também não tinha lá grande beleza. Infelizmente as nossas princesas não tinham lá grande beleza exterior...

    Abraço amigo, e obrigado pelo esclarecimento :)

    Cada vez que visito este canto, enriqueço os meus conhecimentos históricos e fico sempre um pouco mais culto (:

    Abraço amigo

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  7. Francisco: Sim, bonita também não era. LOL Há uns anos passou uma série que acompanhei com toda a atenção, salvo erro sobre a vida de Carlos II (uma vez que se trata de uma época conturbada da história de Inglaterra), em que a actriz que interpretava D. Catarina tinha umas roupas e uma maquilhagem pesadas mesmo para sobressair a sua, enfim, fealdade. Nunca fomos de princesas lindas de morrer... É verdade! LOL Exceptuando, e tenho de dizê-lo, a princesa D. Isabel, filha de D. Manuel I, que seria Imperatriz do Sacro Império Romano-Germânico por casamento com Carlos V. Dizia-se que era a mulher mais bonita do seu tempo.

    Oh, eu é que agradeço a vossa atenção e paciência para ler tão longo texto. Bom, a vida atribulada de Carlota Joaquina não daria p'ra menos. :)


    abraço :3

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  8. Mark, podia não ser bonita, mas tinha dois, três, hum... quatro palmos de testa. inteligente, ardilosa, sim, manipuladora, ambiciosa e destemida e quiçá, com uma pitada de loucura :)
    excelente crónica, como sempre.
    bjs.

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  9. Margarida: Muito destemida e, sim, provavelmente com a sua pitada de loucura. :)

    Obrigado. :)

    beijinhos :*

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  10. maravilhoso texto histórico! vlw, vai me ajudar muito no dever de casa '-'

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  11. Olá Felipe,

    Bem, que honra. Obrigado! :)

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  12. Claro que tudo a que faz referência é do domínio público, e pode ser analisado de diversas formas, dependendo de como olhamos a informação.
    Também a opinião das pessoas que admiramos acabam por nos tornar menos neutrais, foi o que aconteceu comigo em várias ocasiões.
    Tal como me parece que o Mark fará, sempre preferi ler, analisar e tentar (por vezes sem sucesso) ser o mais isento possível nos juízos que vou fazendo.

    Sobre Carlota Joaquina fui lendo muita coisa, entre o que avulta algumas biografias como a de Cassotti (a última consultada), ou os escritos de Benevides, textos avulso que me vão aparecendo, alguma da sua correspondência privada (obra editada no Rio de Janeiro), e com base em tudo isto foi-me quase impossível não exercer a minha prerrogativa de análise desta personagem.
    Evito julgar factos episódicos do "diz-que-diz", pois são pouco fidedignos e promovem ideias erradas.
    Evito julgar pelos comportamentos íntimos, pois prefiro percebê-las pelo seu lado público e documentado.
    Quanto à sua vida sexual, apesar de acreditar que uma mulher que ocupa um trono deve dar o exemplo, pois vive à custa de um erário público, e como tal terá de responder perante quem lhe paga, mas, na verdade, devo confessar que, para mim, tanto se me dá que ela se tenha deitado com um batalhão de mulheres ou homens. Que os seus filhos sejam do jardineiro ou do marido, é algo que me é irrelevante, apesar de considerar o facto pouco dignificante do lugar que ocupa (no entanto, percebo a importância que a sociedade lhe atribui, sobretudo numa monarquia em que manter a linhagem de sangue, com tudo o que isso acarreta, era fundamental para justificar a posição perante toda uma população).
    Que ela tivesse cometido incesto ou não, continua a ser-me irrelevante.
    Que tivesse sido "má como as cobras" na esfera íntima, tanto se me dá, mas não podem cometer ações que coloquem em causa a segurança de um país e de um povo que, afinal, a sustenta, nem ser causadora de levantamentos, revoltas e contra revoltas, tentativas de tomada de poder e até mesmo estar na base, incentivando-a, de uma guerra civil numa nação, que isso não consigo admitir a ninguém, pois aí a história passa a ser diferente.
    São milhares de pessoas inocentes que são atingidas pela loucura política da ambição despudorada e desmesurada de uma mulher sem qualquer sentido do dever perante quem a alimenta.
    Ultrapassa tudo aquilo que me permito admitir duma pessoa que ocupa o lugar de um trono e que, como tal, seria tradicionalmente a protetora de toda uma população sobre a qual reinava.
    Podemos ter, e é natural que assim seja, opiniões contrárias e é natural que as defendamos, mas não à custa do sangue de um "povo" (afinal, eu sou o "povo") que mais não fez do que nascer, sem que para tal fosse consultado.

    Mas claro que a história é aquilo que dela fazemos e tanto dá que gostemos ou não dos personagens dela, pois desapareceram de cena, no entanto ficamos com a capacidade de ter uma opinião sobre elas, e não me coíbo de a exercer, apesar da sua inutilidade.

    Em certa forma julgo que o percebo e tento entender o que tenta comunicar, mas, mesmo sem importância nenhuma (qualquer opinião hoje é irrelevante), continuo a pensar que as pessoas são aquilo que se pode publicamente provar que fizeram, sem que exista sobre isso um forte peso de julgamento proveniente da esfera privada, apesar disso ser quase inevitável.
    Gostei muito do seu texto, que denota algum distanciamento, como é saudável, mas eu não consigo sê-lo tanto. Sou mais intenso sobre as minhas opiniões
    Manel

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    1. Manel, meses depois, respondo-lhe.

      Carlota foi uma mulher de personalidade forte, ambiciosa, e se hoje ainda tempos dificuldade, falo enquanto sociedade, em ver com bons olhos uma mulher que se saiba impor, imagine naqueles tempos. Carlota, em suma, não se contentava com um papel subalterno. Quis reinar por direito próprio, por ser a única Borbón livre. Não nos esqueçamos, ainda, de que a História é escrita pelos vencedores. Carlota era absolutista. Recusou-se a jurar a Constituição de 1820 e esteve envolvida, com o filho, alegadamente o preferido, Dom Miguel, em golpes que visavam restaurar o Antigo Regime. É natural que a historiografia liberal e tenha demonizado, preferindo eu, claro está, que não o tivesse feito. Parece-me até abjecto que lhe queiram atribuir um romance incestuoso com o filho. É evidente que isso será falso. É uma ignomínia intolerável com a memória de alguém que não se pode defender.

      Depois desta crónica, que por acaso até tem ali uns errinhos de distracção, que prontamente vou corrigir, até li mais sobre Carlota, e refinei a minha opinião sobre esta mulher que, julgo, tem sido injustiçada.

      Cumprimentos.

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  13. Obrigado pelo seu comentário. Admiro o seu rigor em responder, mesmo que já fora de tempo.
    Manel

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    1. Fui-me esquecendo e esquecendo; ontem, após ter respondido ao comentário do Manel no meu último post, lembrei-me!

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