23 de março de 2016

De Havana a Bruxelas.


    São três, de entre vários, os assuntos que marcam a actualidade nacional e internacional, em dias particularmente profícuos em acontecimentos. E se anteontem todos tínhamos motivos para sorrir, com a reaproximação entre Cuba e os EUA, esbatendo-se a barreira de décadas que se interpôs entre os dois países, esta terça-feira trouxe a dor, o pesar. O luto.

      Comecemos pela visita histórica de Barack Obama a Cuba, o primeiro Presidente dos EUA a fazê-lo em perto de noventa anos. Após o reatamento das relações bilaterais, no final de dois mil e catorze, a administração Obama tem vindo a estimular os contactos entre os países desavindos. Estivesse Fidel Castro à frente dos destinos cubanos e, provavelmente, não teríamos a oportunidade de visionar a belíssima foto, que certamente ficará nos arquivos históricos da humanidade, de Obama, em sentido, com a imagem do guerrilheiro Che Guevara à sua retaguarda. Um dos últimos bastiões do socialismo dá sinais da abertura ao Ocidente e, quem sabe, à economia de mercado. Obama foi explícito ao reconhecer que a mudança caberá ao povo cubano, e somente ele terá a responsabilidade dessa empreitada. Washington e Havana não serão os melhores amigos a partir de agora. As divergências persistem, mas um primeiro importante passo está dado. Vislumbra-se o levantamento do embargo comercial, imposto desde os anos sessenta do século passado, para muito breve. Não obstante, foram assinados alguns acordos de cooperação em áreas específicas.

    Cuba terá um longo caminho a percorrer. Conhecemos as fragilidades no respeito pelos direitos humanos na terra de Fidel. Não há qualquer liberdade de participação cívica e política. Os cubanos desconhecem os direitos à livre expressão, à livre opinião, à livre manifestação. Ainda que Raúl Castro o evite, há presos políticos. No dia da chegada de Obama, ironicamente, uma manifestação foi reprimida, desanimando todos aqueles, onde me incluo, que se regozijam com estes tímidos avanços.
       Em todo o caso, Obama finalizará o seu mandato, que está a meses de findar, com uma viragem de página nas relações que se querem fraternas entre os povos.


       Gostaria ainda de reservar umas palavras para a polémica em torno da celebração da missa, um ritual religioso católico, em escolas públicas, com alegadas repercussões negativas aos alunos que se recusem a participar. Não me parece correcto que em estabelecimentos de ensino oficiais se realizem cerimónias de culto, sendo, contudo, sensível ao argumento da tradição católica enraizada nas comunidades. O Estado não pode, por dispositivo constitucional, programar a educação dos alunos segundo directrizes religiosas. E a Constituição consagra, sem equívocos, a laicidade do Estado.
      Incomoda-me, também, saber que as homilias têm lugar durante o horário lectivo, o que se me assemelha inaceitável. Vivemos num Estado que não é confessional, que não pode impor aos alunos a submissão a rituais com carácter religioso. Não veria com maus olhos que fosse facultada aos alunos católicos a possibilidade de participarem na missa fora do horário escolar, e que o mesmo não implicasse qualquer desvantagem para os demais que optassem por não se associar.


       A Europa acordou, na manhã de ontem, com as notícias dos hediondos atentados em Bruxelas, já reivindicados pelo Daesh. Será prematuro avançar com informações, é tudo muito recente, sabendo-se, porém, que estará pelo menos um autor a monte. As mortes ascendem a mais de três dezenas; os feridos são às centenas. Impressionou-me imenso os gritos assustados das crianças enquanto abandonavam as carruagens e se encaminhavam para o recinto, que presumo ser o da estação de metropolitano.
        Estes homens vivem indiferentes ao sofrimento alheio, agindo em nome de um deus que decerto rejeita tais banhos de sangue; que não é o deus dos cristãos, nem dos muçulmanos ou dos judeus. O deus desta gente é o deus do terror, da barbárie. Um deus sanguinário que existe nas suas mentes perversas.

          Nós, europeus, vamos perdendo a longa guerra contra o terrorismo. Não nos acostumámos a viver em assombro, teimando em encarar os dias com naturalidade. O inimigo não está à porta; ele habita entre nós. Tornámo-nos mais securitários, mas como conjugar as liberdades individuais com a necessidade que o Estado tem de a todos controlar? É um exercício que temos de encarar com seriedade: se preferimos prescindir um pouco mais da liberdade em prol da segurança. Estamos na defensiva. Lidamos com homens e mulheres que agem sorrateiramente, que estão dispostos a perder a vida por uma guerra que dizem santa.
          Não quero acreditar que este será o nosso dia a dia daqui para a frente. Não nos reconhecemos nesta Europa. Desde o início do século, com os atentados em Nova Iorque, a maior ameaça à paz global é este fenómeno que vai deixando de ser tão novo assim. Actos isolados, cobardes, perpetrados por verdadeiros facínoras.
          Os palcos da instabilidade deixaram de ser aquela realidade distante dos confins do Médio Oriente. Como François Hollande diz, «estamos em guerra». Eu acrescentaria mais: desorientados, cheios de medo, sem saber o que fazer. Eles conhecem o nosso medo e o que temos a perder. Já ganharam. Estamos, desde há muito a esta parte, permanentemente em sobressalto.

10 comentários:

  1. tristeza, tristeza, como ser um liberal num mundo destes, que se esfacela sob o terror de uma lei religiosa... não sei!

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    1. A religião está em todo o lugar: homilias nas aulas, nos atentados terroristas... Marx tinha muita razão. Ainda se mata e se morre em nome de Deus.

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  2. Vi parte da visita de Obama e gostei.
    O mundo deve unir-se por causas justas e que nos enobreçam.
    A religião é uma vida que deverá tornar as pessoas melhores,mais humanas, mais justas e tolerantes.
    Missas só vai quem quer. Rezar todos devemos desde que isso nos ajude a ser melhores.
    Bombas. Assunto muito sério. Algumas bombas são vendidas num negócio lucrativo.Depois o feitiço volta-se e os inocentes sofrem as represálias.

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    1. Apenas vi fotos da visita de Obama a Cuba.

      Exacto. Não considero que seja correcto celebrar rituais religiosos em escolas públicas. O Estado não perfilha qualquer religião, violando-se a sua separação das igrejas.

      Eu diria que nós, ocidentais, temos responsabilidades. Semeámos o caos no Médio Oriente. Colhemos alguns maus frutos das políticas belicistas, ainda que estas "guerras religiosas" tenham milénios.

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  3. Boa noite.

    Eu vou começar no assunto que me é mais caro. Acho muito bem que eduquem as crianças na fé católica. A laicidade do Estado foi uma inconsequência dos republicanos. Portugal é um país católico. É a fé que os portugueses professam. A missa deve constar nos currículos escolares. Quem quer vai, quem não quer não vai.

    Cuba... Um regime atroz que está nos suspiros finais. Acredito que caia de vez quando Fidel desaparecer da face da terra, o que devia ter acontecido há muito tempo. O povo cubano não teria passado pelo que passou. Morre o bicho e acaba a peçonha do comunismo. É uma questão de dar tempo ao tempo.

    Os ataques terroristas são a consequência da abertura da Europa a tudo o que cá queira entrar. E da política belicista, como respondeu aí num comentário, pois claro. Quantos e quantos assassinos desses virão com os refugiados? Disso ninguém fala porque é politicamente incorrecto. Não me importo de ser o que me queiram chamar. A Europa é uma gigante Síria e ninguém faz nada para mudar. Perturbam-nos o sossego, tiram-nos o sono, põem em causa a segurança dos nossos Estados. Vejo o António Costa a dizer que por cada ataque bem sucedido, conseguem evitar outros tantos. É tudo o que o primeiro-ministro português tem a dizer.

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    1. Boa tarde, Gabriel.

      Encontra a explicação no seu primeiro parágrafo: «A laicidade do Estado (...)». É aí que reside o cerne da questão. Vivemos num Estado laico, que não pode programar a educação segundo directrizes religiosas, nem pode favorecer determinada religião. Isso violaria ainda o princípio da igualdade, na medida em que os alunos católicos seriam favorecidos em detrimento dos alunos que professem outra religião. O Estado não toma partido no que diz respeito à prática religiosa. Ao consentir que as escolas públicas contemplem homilias em horário lectivo, implicitamente assume-se como um Estado confessional, que a Constituição não lhe permite ser.

      Aguardemos pelo desenrolar da situação em Cuba. Não acredito, por ora, numa abertura do regime. A médio/longo prazo, sim, é quase certo, quando as chefias do país mudarem. Não será no tempo de Fidel e nem de Raúl Castro.

      O Daesh é o extremo dos extremistas. Tem planos expansionistas. Fazem ameaças veladas à nossa segurança. Claro que as políticas belicosas do Ocidente, favorecendo conflitos no Médio Oriente, fomentaram um sentimento generalizado de revolta que, acrescendo ao milenar espírito de guerra religiosa, culminou neste quadro terrível, que se traduz em atentados terroristas.
      Se me perguntar qual o caminho a seguir, sinceramente não lhe sei responder. Duvido que a diplomacia conseguisse surtir algum efeito.

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  4. Mark acho que nestes últimos dias, o mundo teve tanto de bom como de mau, se por um lado a esperança apareceu para os lados de Cuba para melhores condições de vida e não só, para os nossos lados Europeus, uma nuvem (que teima em estar por cá) de terrorismo e medo alastra-se.

    Não sei bem o que esperar, vejo as coisas a acontecer e os resultados são o que temos visto.

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    1. É verdade.

      Infelizmente, não te posso encorajar para que esperes por dias brandos. Espera-nos tudo menos paz. Aqui, em Portugal, ainda vamos gozando de alguma tranquilidade...

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