Com o passar dos anos, a minha posição em relação ao 25 de Abril foi mudando, ao cambiante do amadurecimento, também das novas leituras, já escolhidas por mim, que me afastaram da retórica que nos impingem desde pequenos. Quando julgamos que o revisionismo histórico é algo que só acontece lá fora - e há dias, na publicação sobre o fascismo e o nacional-socialismo, alertei para isso -, esquecemo-nos de que nós também fomos envolvidos na lavagem cerebral.
É indesmentível que o Estado Novo era um regime atávico, que já ninguém queria defender, que terá caído por si próprio. Os capitães limitaram-se a dar um empurrão. Creio mesmo que até o Presidente do Conselho, o Prof. Caetano, não acreditava naquilo. O homem era um académico, não um político talhado para resistir a tanta pressão. Queria uma verdadeira evolução, que não lha permitiram. O Spínola também fantasiou um Portugal diferente, federal.
Ninguém de bom senso põe em causa que ganhámos nas liberdades individuais. De facto, em nome da autoridade, que nem sempre se compagina com a livre opinião, livre imprensa, por aí, o indicador liberdade é aquele que mais frequentemente é invocado pelas pessoas. A partir daí, as mais instruídas saberão que os alicerces do estado social, da previdência, e até do serviço nacional de saúde, bem assim como o sufrágio feminino, vieram já no consulado de Marcello Caetano. Quer dizer, parece claro que a mudança estava iminente. Entraríamos, certamente, num período de transição que nos levaria à democracia. Não tenho dúvida alguma. A Ala Liberal é mais uma demonstração de que, politicamente, na Assembleia Nacional, se admitia um vislumbre de pluralismo político.
O radicalismo que se lhe seguiu nada veio permitir. Aqui, claro está, entra a guerra colonial, um enorme disparate - e determinante para a ocorrência do golpe -, quando a solução sempre foi política e não militar. É um chavão que partilha lugar com a verdade absoluta. O que se fez em 1971, com a Lei Orgânica do Ultramar, elevando-se Angola e Moçambique ao estatuto de Estados, devia ter sido feito antes, décadas atrás, ou seja, falhou uma visão de futuro. Em rigor, Salazar tinha-a, porque revogou o Acto Colonial e procurou, tanto quanto possível, agilizar o processo de identificação, que prefiro ao de assimilação, que acarreta um tom pejorativo que me desagrada. O tempo foi-lhe escasso. A partir de 1945, com a bipolarização, tudo se foi sucedendo de forma extraordinariamente rápida, e o regime não foi capaz de acompanhar as novas percepções, os novos valores. Seguiu-se o isolamento e, mais tarde, pouco mais, os cuidados paliativos de Caetano.
No meio de tudo, sobra a ideia de que o corte de 25 de Abril de 1974 não trouxe nada de bom. A democracia viria muito mais tarde, em 1982, finda a tutela militar, e porque os partidos se entenderam quanto ao destino a dar ao país. O período que medeia 1974 - 1982/3 foi trágico para os portugueses, para os africanos, para os asiáticos (Timor), para a economia portuguesa. Imagino que tivéssemos conseguido o mesmo em liberdade, lá vem a liberdade, e em desenvolvimento, se, sabiamente, o que não fomos, tivéssemos conseguido contornar aqueles terríveis anos de caos social e institucional. E provavelmente teríamos saído, todos, numa posição bastante mais vantajosa. Sim, eu acredito que tinha sido possível um Portugal pluricontinental, talvez com menos do que aqueles territórios, só com alguns, não se sabe. Sim, eu acredito que podíamos ter evitado a deriva à extrema-esquerda, com nacionalizações, perseguições pessoais, saneamentos, etc. E sei que estávamos no caminho para mudar. Torno ao bom senso. Ninguém, ninguém, admitiria uma conjuntura pensada para 1933 - 1945 em 2019. Os regimes, as leis, as ideias, os homens têm a sua época. Contudo, há diversos caminhos para se chegar ao mesmo resultado, e o caminho que seguimos foi, no meu entendimento, profundamente errado, e sentimo-lo todos os dias: somos um grande nada num mundo cada vez mais global - curioso, tão curioso, quando nós inventámos a globalização. Somos, convém lembrá-lo ciclicamente, uma marioneta nas mãos de interesses superiores. Não somos soberanos. Não vale a pena insistir nessa ideia de soberania. Abril conduziu-nos tragicamente para a dependência, para o sacrifício, para as crises cíclicas, para a pequenez (territorial e não só), para a subserviência. Obrigou-nos a entrar numa espiral da qual não sairemos, ou dificilmente sairemos. O que resultou daquele quadro precipitado pelos revoltosos foi isto. Hoje em dia, efectivamente, não temos um partido único, mas temos uma multiplicidade de partidos que fazem refém a nossa democracia. Não há democracia sem a ditadura dos partidos, que, como tão bem sabemos, depois servem fins vergonhosos, como o proveito pessoal e o favorecimento familiar.
Nada mais haverá a fazer quanto ao passado. Ele está lá. Estático. Mas podemos, até para tocar na ferida, procurar mostrar como teria sido. A pessoas têm o direito a saber o que também lhes foi negado. A multiplicidade de vantagens que teríamos tirado de uma evolução, ou transição, mais gradual, que escapou ao poder de Caetano, claro, mas que decerto não à sua vontade. E, se há algo a comemorar, será a certeza do que poderia ter sido e não foi.
Tal e qual aconteceu por aqui no chamado processo de redemocratização do país após 1964.
ResponderEliminarLamentável!
Acredito, porém, Portugal teve de abrir mãos das suas possessões africanas e asiáticas. Milhares de portugueses deixaram lá as suas vidas. Vieram sem nada.
EliminarBelo texto, gostei
ResponderEliminarAbraço amigo
Obrigado. Foi uma análise honesta, concordando-se ou não com ela.
Eliminarum abraço.