Há dias, perdi um amigo. Zangámo-nos. Um amigo que não conheço pessoalmente, que mora do outro lado do Atlântico, no Brasil.
Não subestimo as amizades virtuais. Tenho amigos que o começaram por ser através de redes sociais. Isso não me causa qualquer problema de maior. Considerava-o um amigo. Partilhávamos um pouco da nossa vida, chegámos a conversar através da cam, acompanhávamos a rotina um do outro. Brigámos devido a divergências históricas e ideológicas. Há aquela velha trilogia, "futebol, política e religião", que periga muitas amizades. Assim foi.
A História não é uma ciência exacta. Os factos, esses sim, são exactos. As perspectivas são divergentes. Pela Europa, tendemos a romantizar a ocupação que efectuámos, assumo, mas pela América, nomeadamente, tendem a diabolizar os europeus, sobretudo pelo ensino escolar, que fomenta estes rancores. Ambos estão certos e errados, simultaneamente. Eu não isento os portugueses de erros. Claro que os cometemos. Mas não fomos, nem de longe e nem de perto, os vilões. Não chegámos ao paraíso. Os ameríndios praticavam a antropofagia. Na América espanhola, faziam sacrifícios humanos. Não há melhores e nem piores. Somos todos homens e somos imperfeitos, independentemente da nossa procedência. Se por cá aprendemos a vermo-nos como os grandes civilizadores, por lá somos os terríveis invasores que trouxeram o caos a um mundo de beatitude, salvo raras excepções: conheço brasileiros que têm, quanto a esta matéria, uma visão esclarecida.
Procuro adoptar uma postura justa. Sim, tomámos terras alheias, mas fomos os obreiros do Brasil. Expandimo-nos para lá do que nos pertencia por direito, conforme o delimitado em sucessivos tratados com os espanhóis, e deixámos, em 1822, o Brasil com praticamente a sua configuração actual (o Acre viria depois, já após a independência). Deixámos um país com uma massa geográfica que o torna no quinto maior do mundo, com uma língua que o une e evita a desagregação, com uma cultura que o torna distinto. Não haveria Brasil sem os portugueses. Ponto final. Por mais que à esquerda revolucionária custe, assumamos a verdade sem medos. Haveria outros países, com outras línguas, com outras culturas. Basta observar a miríade de países que resultaram das independências dos vice-reinados espanhóis. Os neerlandeses não fariam melhor. Ocuparam o território que hoje compreende o Suriname e que é um dos países mais pobres da América, independente apenas em 1975.
No que concerne ao Brasil, de pouco a consciência me acusa enquanto português. Fomos bem piores, sim, com Timor, que deixámos ao abandono, proporcionando a invasão e posterior anexação da Indonésia, num genocídio que durou 25 longos anos; com Goa, Damão e Diu e os seus habitantes, que não puderam escolher entre a independência ou a integração na União Indiana; com Angola, Moçambique e a Guiné-Bissau, tardiamente independentes, envolvidos numa guerra colonial e em posteriores guerras civis de décadas, ficando sem infraestruturas, sem profissionais qualificados nos mais diversos domínios. Aquando da independência de Moçambique, num território sete vezes maior do que Portugal, ficaram três magistrados. Três.
Estes ressentimentos de pouco adiantarão. Só poderão obstar a que nos possamos entender melhor. Não esperem que me associe ao coro de vozes odiosas. Os portugueses já têm quem os ostracize e procure anular o seu legado. Como diria um amigo meu, espanhol, seriam capazes de dinamitar os aquedutos romanos porque simbolizam o imperialismo romano. E fico com aquele sentimento de que houve colonialismo de primeira e de segunda. O colonialismo inglês é tido, por muita da historiografia brasileira, como de ocupação, sendo bom, por isso; em contrapartida, o colonialismo português (e o espanhol) foi de exploração. Um absurdo só explicado pelo preconceito. Se condenamos a ocupação europeia, condenamo-la unânime e coerentemente. Os ingleses cometeram das piores atrocidades na América, mas a sua hegemonia, a anglo-saxónica, cultural na América Latina leva a que se branqueie o extermínio de indígenas. Os espanhóis são bastante acesos quando relembram, e bem, que os ingleses propagaram uma odiosa lenda negra sobre a ocupação espanhola.
Nem aprofundo a discussão acerca da incorrecção histórica e jurídica na terminologia associada. O termo colónia é anacrónico. O Brasil começou por ser dividido em capitanias, passou por ser o Estado do Maranhão e o Estado do Brasil, posteriormente unificados, até ser um Principado (com a criação do título de Príncipe do Brasil, atribuído ao presuntivo herdeiro da Coroa) e um Reino (unido a Portugal). Nunca por nunca, repito, em qualquer documento da época, surge a expressão "Brasil Colónia", que é utilizado, não ponho em causa se bem ou mal, para designar uma realidade que lhe é anterior, daí que opte pelo termo "ocupação", que me parece menos politizado e parcial. Os portugueses ocuparam, e não em número substancial, o território brasileiro. Fomos poucos em mais de trezentos anos. Não levávamos mulheres nas embarcações. Miscigenámo-nos com os locais e com os africanos, deixando descendência. A cultura brasileira é o somatório de várias, inclusive da portuguesa.
Doravante, ainda que não deixe de expor as minhas posições, pensarei duas vezes na pertinência de se alimentar uma discussão infrutífera, que só trará mágoas. Afinal, ninguém ganhou. Ambos perdemos.
* Na medida em que não quero trocas de palavras desrespeitosas, reservo-me o direito de não publicar comentários xenófobos que visem o Brasil ou Portugal, ou que sejam passíveis de suscitar confrontos.