A tragédia que se abateu sobre o jornal satírico francês Charlie Hebdo comoveu o mundo ocidental, numa proporção surpreendente. Que, como quase em tudo o que é explorado e mediatizado ao limite, caiu num mero lugar-comum. Fotos que se publicam, com mensagens subliminares, no mais das vezes porque sim e porque o vizinho, colega, também o fez. Massacre bem sucedido, presumíveis autores abatidos, o importante, ex post, é tirar as devidas ilações.
França. Uma das nações que mais se debateu pelo valor da liberdade, nascido da Revolução de 1789, exportada para o mundo através do constitucionalismo do século XIX. A operação terrorista teve um duplo efeito: silenciar, exterminando, um jornal e provocar o aparato num dos corações da liberdade. Na medida, se é possível fazermos aqui algum tipo de comparação, dos ataques de 2001 ao complexo do World Trade Center, em que se atingiu o vértice do mundo ocidental, Nova Iorque.
A liberdade que Paris deu a conhecer ao mundo manifestou-se em direitos, reconhecidos pela imensa maioria dos Estados de direito democrático. Portugal reconhece-os no seu extenso capítulo de direitos, liberdades e garantias da Constituição de 1976. A liberdade de expressão é um dos mais significativos. O que aqui está em causa, podendo nós discordar pontualmente dos limites que a cada um se devem impor, é a liberdade de poder expressar o pensamento através da escrita, da arte, com previsão legal. A liberdade de criação artística e intelectual, autonomizada na nossa Lei Fundamental, decerto se encontrará na Constituição francesa, implícita ou explicitamente. Nas palavras de Melo Alexandrino, ilustre professor de Direitos Fundamentais, um dos meus melhores mestres, só excepcionalmente a liberdade de expressão cede perante outros direitos, sejam eles quais forem. E a parte oposta tem o ónus da prova, de sustentar que houve, ali, uma violação clara dos limites que, porventura, existem em todos os direitos. Não há direitos absolutos.
Aqui tivemos um quadro que vai muito além de qualquer restrição ou intervenção restritiva do Estado no que toca aos direitos fundamentais. Houve um silenciamento pelo medo, reprovável a todos os níveis, inadmissível. Valores que propugnamos, os que enumerei no terceiro parágrafo, foram constrangidos. O direito não cede perante o terror. Sucedendo-o, podemos rasgar os nossos textos constitucionais; iria mais longe, suprimir todo o nosso ordenamento jurídico, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, e remetermo-nos à barbárie.
O que se retira destes infelizes acontecimentos, e que já vou verificando, é o agudizar da intolerância religiosa. O fundamentalismo, empunhe a bandeira religiosa que empunhar, leva à apreensão. A fobia ao Islão, que já grassava pelo ocidente, aumentou exponencialmente. As consequências virão, como em 2001, quando George W. Bush, aproveitando os ataques terroristas aos E.U.A, declarou a guerra contra o terror. A operação da polícia francesa, no dia de ontem, é um indício. Mobilizou-se um número de efectivos policiais absurdo. O país está em alerta máximo. Toda a Europa.
O muçulmano pacato, o homem médio que quer viajar, seguir a sua vida tranquilamente, encontrará obstáculos à livre circulação; deparar-se-á com o preconceito, a ignomínia, o desconhecimento, estimulados, promovidos por estes mártires do terror, suportados, também eles, pelas tradicionais organizações terroristas, como a Al-Qaeda e o mais recente Estado Islâmico.
A intolerância gerará mais intolerância e dificilmente sairemos deste circuito fechado de ataque / resposta. Caminhamos no sentido dos nossos antepassados, promovendo-se guerras entre cristãos e muçulmanos. Mil anos depois e aprendemos tão pouco com os nossos erros.
A religião, não obstante o respeito que nos merece, gera paixões destrutivas. Passaríamos melhor sem ela.
A liberdade que Paris deu a conhecer ao mundo manifestou-se em direitos, reconhecidos pela imensa maioria dos Estados de direito democrático. Portugal reconhece-os no seu extenso capítulo de direitos, liberdades e garantias da Constituição de 1976. A liberdade de expressão é um dos mais significativos. O que aqui está em causa, podendo nós discordar pontualmente dos limites que a cada um se devem impor, é a liberdade de poder expressar o pensamento através da escrita, da arte, com previsão legal. A liberdade de criação artística e intelectual, autonomizada na nossa Lei Fundamental, decerto se encontrará na Constituição francesa, implícita ou explicitamente. Nas palavras de Melo Alexandrino, ilustre professor de Direitos Fundamentais, um dos meus melhores mestres, só excepcionalmente a liberdade de expressão cede perante outros direitos, sejam eles quais forem. E a parte oposta tem o ónus da prova, de sustentar que houve, ali, uma violação clara dos limites que, porventura, existem em todos os direitos. Não há direitos absolutos.
Aqui tivemos um quadro que vai muito além de qualquer restrição ou intervenção restritiva do Estado no que toca aos direitos fundamentais. Houve um silenciamento pelo medo, reprovável a todos os níveis, inadmissível. Valores que propugnamos, os que enumerei no terceiro parágrafo, foram constrangidos. O direito não cede perante o terror. Sucedendo-o, podemos rasgar os nossos textos constitucionais; iria mais longe, suprimir todo o nosso ordenamento jurídico, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, e remetermo-nos à barbárie.
O que se retira destes infelizes acontecimentos, e que já vou verificando, é o agudizar da intolerância religiosa. O fundamentalismo, empunhe a bandeira religiosa que empunhar, leva à apreensão. A fobia ao Islão, que já grassava pelo ocidente, aumentou exponencialmente. As consequências virão, como em 2001, quando George W. Bush, aproveitando os ataques terroristas aos E.U.A, declarou a guerra contra o terror. A operação da polícia francesa, no dia de ontem, é um indício. Mobilizou-se um número de efectivos policiais absurdo. O país está em alerta máximo. Toda a Europa.
O muçulmano pacato, o homem médio que quer viajar, seguir a sua vida tranquilamente, encontrará obstáculos à livre circulação; deparar-se-á com o preconceito, a ignomínia, o desconhecimento, estimulados, promovidos por estes mártires do terror, suportados, também eles, pelas tradicionais organizações terroristas, como a Al-Qaeda e o mais recente Estado Islâmico.
A intolerância gerará mais intolerância e dificilmente sairemos deste circuito fechado de ataque / resposta. Caminhamos no sentido dos nossos antepassados, promovendo-se guerras entre cristãos e muçulmanos. Mil anos depois e aprendemos tão pouco com os nossos erros.
A religião, não obstante o respeito que nos merece, gera paixões destrutivas. Passaríamos melhor sem ela.
Gostei de sua análise, Mark. A Presidenta aqui enviou as condolências aos franceses. Muito triste. Se mata e se morre por tão pouco.
ResponderEliminarPor cá também. É o protocolo próprio nas relações entre os Estados, além de ser um gesto piedoso.
EliminarMas isto terá que ter um fim, até porque se trata de uma minoria no imenso mundo islâmico, a quantidade de pessoas que aderem a este fanatismo religioso.
ResponderEliminarQual será a estratégia para eliminar este "terror" que, quer queiramos quer não, nos ameaça em qualquer lugar?
Não há fim à vista. Pelo contrário. Noto que estamos a perder ante o fanatismo. Já são muitos casos. Este conflito de religiões perturba-me.
EliminarUm facto é inegável: o Islão assenta em ordenamentos jurídicos que violam diariamente a dignidade humana. Com a excepção notável da Turquia, salvo erro, nenhum outro país islâmico é laico. Não podemos consentir que o medo, a intimidação, o terror vinguem na Europa. Temos de defender os nossos valores.
O problema não está na religião (eu até passo bem sem ela), porque tb aí deve haver liberdade de escolha. De resto concordo plenamente contigo.
ResponderEliminarAbraço.
Pela Europa, essa liberdade de escolha é inviolável. Somos o continente que, por excelência, mais respeita a dignidade humana, e muito tolerantes temos sido com estes ataques bárbaros e selváticos.
EliminarHá fundamentalismo em todas as religiões, o fanatismo independe de credos.
um abraço, Sérgio.
E, onde nasce esse fanatismo, deve acabar ali mesmo...
ResponderEliminarOs jovens ocidentais, não frequentaram mesquitas?!
Onde está a dúvida ou a questão?!
Engraçado dizer que os Mulçumanos na Europa são todos afáveis, mas os Europeus que estão no estado Islâmico passaram pelas Mesquitas no Ocidente.
Esta coisa do politicamente correcto. Quando é contra a Igreja Católica, é um atirar de pedras, porque sabem que os Católicos são Tolerantes. Já ouviste algum mulçumano dizer que não é Praticante?!
Em Portugal, o problema não está naqueles que já cá vivem e estão integrados. O problema está nos que chegam diariamente oriundos de África.
Abraço amigo
Francisco, sim. De facto, nós, cristãos, considero-me cristão, somos bastante tolerantes com os ataques à nossa matriz. Independentemente de sermos cristãos ou não, católicos ou não, "praticantes" ou não, a nossa matriz é a que é. Cristãos são perseguidos em países de maioria islâmica, não podem professar a sua fé, são assassinados, escorraçados, vítimas das maiores atrocidades.
Eliminarum abraço.
John Lennon cantou o 'Imagine'. era um idealista. foi assassinado aos 40 anos.
ResponderEliminarnão me incomoda de todo que existam outros credos ou pessoas que nada acreditem. incomoda-me o radicalismo, mesmo disfarçado (não é preciso atirar uma bomba ou balas ou vandalizar a porta de um templo). deixo um exemplo que até hoje me marca: eu tinha 8 anos e brincava com uns vizinhos. éramos bastante amigos, companheiros de brincadeiras na rua. um sábado à tarde fiquei em casa deles e assisti a um serviço religioso. era o pai que exercia, tinha a bíblia, mas era diferente da missa católica. eu não achei mal, era uma criança, era divertido, havia cantigas, as pessoas estavam alegres, foi o que senti. em casa contei o sucedido à minha mãe e ela proibiu-me de assistir a mais serviços religiosos. e nem me recordo se voltei a entrar em casa deles. só então ela me disse que os vizinhos eram baptistas.
bjs.
A "Imagine", uma das minhas canções preferidas. Um hino à paz. Ainda há dias a publiquei noutro espaço.
EliminarQue episódio triste. Os adultos contaminam as crianças com os seus preconceitos. É um exemplo de extremismo. Adaptado ao quotidiano, mas é-o.
A avó paterna tem uma amiga que é testemunha de Jeová e que ia lá a casa (creio que ainda vai). Muito embora soubesse que a minha avó é católica, volta e meia mandava umas indirectas pelo facto de a avó ter uma imagem da Virgem Maria, da qual é devota. O que ela tem a ver com isso, não é? Enfim.
um beijinho.
Ai Mark, essa história da imagem da Virgem Maria.
EliminarÀ uma senhora jeová, aqui do campo, que diz que a mãe tem uma "boneca" lá em casa (é uma imagem de Nossa Sr.ª de Fátima).
Tristeza. Abstenham-se desses comentários. Não querendo generalizar, há pessoas dessa religião muito extremistas. Respeitem para serem respeitados.
EliminarEu diria mesmo: "Desculpe, tem noção daquilo que acaba de dizer? É uma falta de respeito e o bom senso deveria levá-lo/a a abster-se desses comentários!"
Mark, estamos a falar de pessoas que são analfabetas ou quase (no caso da senhora da "boneca"). E que se converteram já em idade adulta, às vezes para tentarem resolver problemas de álcool dos maridos (e neste caso, não sei como, mas ela conseguiu).
EliminarCompreendo, Horatius, mas o analfabetismo não legitima o desrespeito. Saberá perfeitamente que atacar a fé de outrem, aludindo aos seus santos como "bonecos", é ofensivo. :)
EliminarBelo texto! São tempos muito estranhos, tenho acompanhado toda a discussão e desdobramentos dessa situação e por vezes é meio preocupante ver como as coisas se encaminham.
ResponderEliminarCada vez mais nos vemos obrigados a rever conceitos e preconceitos... e me preocupa o uso que muitos tenta fazer a partir desses eventos.
Um Grande Abraço e ótima semana para você.
O mundo mudou bastante pós-2001. Recordo-me de que, à época, diziam que o mundo nunca mais seria o mesmo. E não foi. Ataques religiosos são uma constante, "guerras santas" idem.
EliminarMedo.
um grande abraço, Latinha, e boa semana! :)
Permite-me discordar contigo num ponto. Estas criaturas, que dizem matar em nome de um profeta, podem ser tudo, menos seguidores, pessoas com carácter, fé, etc. São seres que simplesmente sofrem de algum distúrbio bastante profundo e tem uma visão completamente deturpada da realidade. Recuso-me a acreditar que haja nos escritos do Islão original, alguma coisa que mencione este tipo de actos, que incentive a cometê-los em nome de Alá... *suspiro*
ResponderEliminarQuanto às testemunhas de jeová, também tenho conhecimento dessas intolerâncias. Tive uma colega no curso que estive a fazer e ela era mesmo uma pessoa irritante, sempre a mostrar-se superior aos outros e com um ar enjoadinho. Felizmente, não tentou pregar nenhum daqueles discursos típicos deles, até porque se o fizesse, por certo já sabia que eu responderia à letra! Como é possível não aceitarem as transfusões de sangue? Entre tantas outras coisas...?
Abraço :3
João, discorda de todos os pontos. :) Liberdade acima de tudo!
EliminarEu já li o Corão. Pois, tal como a Bíblia, no Antigo Testamento, tem passagens violentas. O Deus de Abraão é substancialmente do Deus que Jesus nos deu a conhecer na sua pregação. É um Deus vingativo, que se arrepende, que aniquila. A religião está pejada de violência, nos seus escritos e na prática. Impusemos o catolicismo pela força, nos territórios que descobrimos, os islâmicos também o foram fazendo... É intrínseco ao Homem.
Bom, conheço algumas testemunhas de Jeová e, como em tudo, há pessoas tolerantes e menos tolerantes. Como levam a sua religiosidade com muito fervor, tendem a exceder-se; acredito que a maioria não o faça por mal, mas alguns conseguem ser bastante invasivos e até, diria, extremistas.
um grande abraço!
Permita-me ter uma opinião não-europeia da questão.
ResponderEliminarBom, em primeiro lugar acho que a liberdade de expressão e a laicidade do estado são marcos mais que importantes que os países ocidentais conquistaram através de muita luta contra a religião e a velha ordem vigente, conquistas do iluminismo e das revoluções liberais. Não só pode como devem ser garantidas e protegidas pelos estados democráticos.
O jornal era conhecido por fazer uma crítica satírica ao fanatismo religioso, à extrema-direita francesa e a política em geral, o que lhe garantia muitas críticas e elogios.
Como eu costumo dizer, fanáticos religiosos só querem uma desculpa para atacar, atacaram o jornal por fazer charges contra seu profeta. Algumas pessoas disseram que o jornal não deveria fazer tal coisa,pois isto era intolerância religiosa etc. Eu já acho que o jornal não tem obrigação de fazer-se rogado para criticar nada e nem ninguém, desde que se respeite a liberdade do outro e que se respeito o direto ao contraditório, o direito à resposta e que não se pratique calúnia, injúria e difamação. Todos nós estamos sujeitos à críticas, nenhuma instituição e ninguém podem ser blindados de receber crítica.
O fanatismo religioso me assusta muito, principalmente porque o fanatismo aqui no Brasil tá cada vez mais forte e ganhando terreno dentro de estado. O fanatismo tem várias faces e vertentes. Aqui no Brasil, o fanatismo é cristão, nomeadamente de alguns grupos evangélicos que atacam religiões alheias e direitos fundamentais de mulheres e minorias. Tudo através dos meios de comunicação que dispõe e do poder de barganha política que possuem.
Mas voltando ao caso recente,o que eu acho curioso é que a própria Europa e EUA financiam esses grupos terroristas e lhes fornecem armas, a al qaeda nasceu do financiamento dos EUA na época da guerra fria. E mais recentemente, o estado islâmico, que recebeu financiamento dos EUA e dizem até que recebeu armamento da França para tentar derrubar o regime do Assad na Síria. Esse tipo de política de armar o inimigo do meu inimigo não é nova e tanto Europa e EUA a praticam sistematicamente, inclusive fizeram o mesmo na Ucrânia quando decidiram derrubar o governo local, armando grupos e partidos publicamente neonazistas para derrubarem o governo pró-Rússia...
O problema dessa política de armar o inimigo do meu inimigo é que ela é uma faca de dois gumes e gera consequências graves. O que vimos na França é um exemplo disso. Como disse, os fanáticos só querem a oportunidade para atacar. E não adianta, pra eles o ocidente precisa ser destruído, aniquilado e vão fazer de tudo para que isto aconteça, inclusive fazendo acordos armamentistas e políticos com os países do centro do capitalismo para depois lhes darem um bote. Isso que eu digo não é novo, sempre aconteceu. No fim, quem sofre as consequências são as populações desses países que nada tem a ver com as falcatruas dos governos e elites econômicas, mais preocupados em seus ganhos com territórios conquistados cheios de petróleo e outros recursos naturais.
Eu sou uma pessoa que sou laica e chego até ser antirreligioso, não gosto de religiões e por mim, todas deveriam sumir da face da terra,mas respeito o direito de cada qual ter suas crenças e obviamente não vou atacar ninguém por isso. O meu direito termina quando começa o do outro. A religião tem um peso bastante forte em todas essas questões já citadas, mas ela sozinha não explica tudo.
não podemos reduzir o que aconteceu na França como uma questão puramente de fanatismo religioso, tem muito mais coisas envolvidas, principalmente política... Vc, como um bom historiador que é, sabe que política e religião quase sempre se misturam quando se quer dominar sociedades e grupos humanos.
Bom, é isso. Espero que tenha compreendido o meu ponto de vista.
Até, meu querido Mark.
Que belo comentário, Tiago. Muito obrigado pela tua participação, sempre atenta e pertinente.
Eliminarum grande abraço, meu querido amigo!