As aulas começam na próxima segunda-feira. A maioria dos meus colegas iniciou as suas no dia quinze. Optaram pelo mestrado profissionalizante, procurando aptidões para a aventura que é lançar-se no mercado laboral. Preferi seguir o caminho mais óbvio no meu caso, o mestrado científico, atendendo ao conselho de alguns professores e à minha intuição, que pende mais para a área da investigação, o que poderá proporcionar-me um futuro fora do mundo jurídico, contudo, aprofundando conhecimentos. Ainda me torno um penalista...
Estive, na sexta e ontem, na faculdade. Fui surpreendido, à chegada, com um odor a churrasco. Ocuparam um dos jardins para uma festa de horror. Uma multidão. Música alta. Os porcos eram assados no espeto, inteiros, à medida em que uns homens, que presumo contratados para o efeito, cortavam a carne e a serviam em bifanas. Os recipientes com sangue dos animais, ao lado dos grelhadores, induziram-me o vómito e o pavor. Somos assustadoramente selvagens.
Conversei com alguns colegas. Fiquei feliz por vê-los. Estarão quase todos juntos na saga que se inicia. Nunca tivemos uma relação próxima, de amizade. Por meados do segundo ano da licenciatura, afastei-me mais ou menos de todos. O contacto tornou-se circunstancial, casual. Não havia empatia. Desconheço quem estará no mestrado que escolhi. Não serão muitos. O número é reduzido. Desconfio de alguns/mas que tiveram um percurso em tudo semelhante ao meu. Estarei entre pares.
À saída, deparei-me com a S., uma colega invisual. Não raras vezes ficava só nos anfiteatros, pois a coragem, ou a falta dela, impedia-na de pedir a alguém que a acompanhasse até ao átrio principal ou mesmo à entrada. Demorando uma eternidade a arrumar os meus pertences na mala, quase sempre a ajudava no percurso, segurando-a pelo braço. Até que ela reprovou e, de certo modo, afastámo-nos. Mas, nos corredores, volta e meia via-a e lá trocávamos uns dedos de prosa. Como ontem à noite. Está feliz por ter mudado para o turno nocturno. "As pessoas são mais humanas", diz. Não deixei de sorrir, com manifesto desapontamento, perante as suas expectativas. Em boa verdade, um sujeito disponibilizou-se em ajudá-la, até que os interpelei e a levei pelo que faltava no caminho. Estava à espera da mãe.
Vi o casal de namorados cujo amor vi despontar. Dois rapazes. Percebi a cumplicidade quando não havia mais do que tímidos sinais, o ano passado, assistindo às aulas do quarto ano (noite).
Desceram a escadaria com visível encantamento. Se os sorrisos denunciassem, seriam detidos. Sob as luzes alaranjadas de uma avenida surpreendentemente cheia de vida, seguiram em direcção ao metro, lado a lado, indiferentes à chuva miudinha que se precipitava na calçada brilhante e húmida.
- Vejo duas pessoas juntas, S., mas, tal como tu, nada vejo. Ou não vejo porque os meus olhos são incapazes de ver?
- Vejo mais do que pensas. Eu sinto.
Fazia-se tarde. Ficaria em segurança no meio de tantas caras conhecidas. Beijei-a na cabeça e corri pela chuva, transformada em aguaceiro.
Porco inteiro no churrasco? O_o Que nojo! Eu teria a mesma reação que você teve. Acho nojento. Mas enfim, tem gosto pra todos nesse mundo. Em relação a sua colega, acho nobre seu gesto em ajudá-la no caminho. Essas pessoas são geralmente muito sensíveis, com os outros sentidos bem apurados, sabe. Eles sentem coisas que a gente nem sente ao longe. Eu sei que o ouvido deles é bem mais apurado que o nosso. Os rapazes enamorados. A paixão é assim mesmo. Sua frase é emblemática. Li duas vezes e acho que interpretei corretamente (vai saber, acho que só nós sabemos o que queremos dizer com as palavras às vezes).
ResponderEliminarAbraço!
A S. é uma menina muito especial. Muito meiga. Há invisuais que não gostam que sejamos solícitos. Ela, não. Estimo-a muito.
Eliminarum abraço.
Que tarde magnifica :)
ResponderEliminarPensei que tivesses visto algum amiguito :)
Abraço amigo
Uma tarde / noite. A partir de segunda chegarei a casa a horas "indecentes"...
Eliminarum abraço, Francisco. :)
Gostei muito da tua troca de impressões com a tua amiga.
ResponderEliminarAbraço :3
um abraço, João. :)
EliminarEmbora num outro contexto, os teus contactos com a tua colega invisual, fizeram-me relembrar o filme de abertura deste Festival de cinema que estou a acompanhar - o Queer Lisboa.
ResponderEliminarO filme chama-se "Hoje eu quero voltar sózinho" e é muito bom. Recomendo-o sem reservas.
Conheço o filme e até já o vi. É belíssimo, sim. Aliás, tive um contacto prévio com a curta-metragem, da qual a longa é um seguimento.
EliminarA S. é extremamente sensível. O rapaz da trama também. Ele encarnou um invisual na perfeição.
Quando andava na licenciatura também havia essa mania dos porcos no espeto... Era um cheiro insuportável naquela faculdade por dias!
ResponderEliminarO cenário que descreveste é amoroso :D
Boa sorte para as aulas ;D
Nunca tinha visto e fiquei... :x
EliminarObrigado, Rúben. :D
Este final...
ResponderEliminarFiquei tão sensibilizado.
Grande abraço e força.
um abraço, Paulo. :)
EliminarNossa que bonito, fiquei tocando pela conversa que você teve com sua amiga... sensibilidade é algo para poucos! E quanto ao casal, eu não sei... me encanta esses momentos!!! Durante um bom tempo eu tive fazer viagens frequentes, ao longo do tempo comecei a desenvolver a habilidade de observar as despedidas, os reencontros... nada muito declarado, mas os pequenos gestos que revelam alí, muito mais do que um momento de alegria.
ResponderEliminarBoa sorte para ti nesta nova fase, tenho certeza que fará um belo mestrado e uma ótima carreira! :-)
Abração.
Notei claramente que estavam enamorados. O engraçado é que vi esse "amor" surgir. Eles são alunos da noite e eu fiquei a assistir a aulas da noite para completar o estudo. Nos anfiteatros, reparei nos olhares que trocavam. Ver tanta cumplicidade, há dias, foi uma agradável surpresa. :)
EliminarMuito obrigado, Latinha.
um abraço grande.
Ah! Em relação ao teu comentário... e ao "sotaque"! kkk
ResponderEliminarAssim... por coincidência ou não, vai saber... as primeiras pessoas por quem me interessei, era portugueses (ou como no caso daquele garoto, descendentes diretos)... por isso meus amigos mais próximos costumavam brincar que eu tinha um certo "fraco" pelos "Tugas".
Em certa ocasião, conversando com um garoto pela internet, quando fomos nos falar ao telemóvel... ele todo constrangido veio me dizer que precisava dizer que tinha sotaque, pois era Portugues... mal sabia ele que isso garantia a ele vários pontos!!! kkk (Eu e ele damos boas risadas disso até hoje).
Mas falando sério, o português que vocês falam é muito bonito, e charmoso... Tenho alguns amigos portugueses, e sempre que tenho a chance de conversar com eles, adoro ouvi-los falar...
Grande abraço.
Ahahah, garantiu pontos o sotaque português. :)
EliminarDe certa forma, compreendo o interesse que o nosso sotaque suscita. Como fechamos as vogais, o dialecto português adquire uma faceta mais intimista, sóbria, discreta, o que é interessante para um falante de um dialecto bastante musical como o brasileiro (influenciado pelas línguas indígenas e africanas).
Tenho amigos brasileiros e vários sentem essa atracção pelo meu sotaque. Acham "fofo" (o meu sotaque é lisboeta, portanto, cheio de "xiados" e omitindo algumas vogais, ahah).
um abraço grande.
"Vi o casal de namorados cujo amor vi despontar. Dois rapazes. Percebi a cumplicidade quando não havia mais do que tímidos sinais, o ano passado, assistindo às aulas do quarto ano (noite).
ResponderEliminarDesceram a escadaria com visível encantamento. Se os sorrisos denunciassem, seriam detidos. "
Ainda tu dizes que não acreditas no amor... :)
Eu escrevi amor em itálico, Horatius. ;)
EliminarOh Mark, eu a pensar que o itálico era para dar destaque... afinal era só ironia. :(
EliminarO itálico pode ter vários significados. Neste caso, fui irónico. :) Às vezes dá destaque. Eu uso-o com frequência.
EliminarA S. percebe melhor as coisas que todas as pessoas com "visão"!
ResponderEliminarOra aí está!
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