Ando a revisitar doutrinas que conheci há anos, chegando-me por livros que li ainda sem a bagagem cultural e a idade necessárias para compreender as suas essências. Uma delas é o existencialismo, não o de Sartre, embora coincida. Kierkegaard é um autor que me fascina pelas suas ideias. Fui surpreendido com a inclusão de parte da sua obra na disciplina de Direito Constitucional, inserida nos planos de estudo de um dos melhores professores que já tive e com quem pude aprender muito do que sei na área do direito público.
O contacto prévio com Kierkegaard, anos antes, ajudou a que estivesse familiarizado com as suas teorias, o que me permitiu certa ligeireza e à-vontade no modo com que o abordei nas provas escritas.
Somos livres. A liberdade implica responsabilidade, eterno chavão, e angústia. Por podemos escolher, vem a ansiedade. O homem é uma síntese de alma e de corpo sustentada pelo espírito. A angústia é o resultado da relação da liberdade com a culpa. Recusando universalizar os indivíduos na espécie, Kierkegaard defende que cada um de nós existe perante Deus e que foi por cada pessoa que Ele se deixou encarnar, sofreu e morreu. Dotados de liberdade ilimitada, somos uma fusão do infinito, do finito, de temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade. O Eu é a liberdade.
De facto, e tomando-me como exemplo, a escolha envolve angústia. Estamos condenados a ser livres. E há um medo que advém dessa liberdade total.
Sartre, Jean Paul, surge mais tarde. Houve uma evolução no meu pensamento. E se nunca pusera em causa a existência de Deus, o existencialismo de Sartre não mais é cristão como o de Kierkegaard.
Vi-me diante de uma areia desconhecida, movediça e cruelmente verdadeira. Sartre nega Deus, nega deuses, e coloca-nos num patamar de absoluta solidão, continuando a ser livres, talvez ainda mais livres do que na construção de Kierkegaard. Percebo que nascemos, vivemos e morremos sós. Somos livres num mundo desprovido de razão. Um gigante absurdo. Nem sempre o bem vence o mal, como nos ensinam nas fábulas. Retomo a angústia de se optar num mundo sem sentido. Não havendo deuses, não há a quem recorrer no limite. Seremos nós a dar um sentido sem sentido em corpos perecíveis, matéria que se degrada, sujeita às vicissitudes do tempo e das mazelas naturais às quais se somam as que voluntariamente, numa inconsciência consciente, causamos.
Recusava-me a aceitar o nada, o irracional, o ilógico. Não reconhecendo ao nada o valor da inteligência, que buscava no divino, tudo teria uma origem que não poderia jamais passar pelo surgimento casual e espontâneo do universo. Haveria uma força motriz, precedente, intencional, criadora de todos os mundos e espécies viventes que os habitam. Daí a nossa existência terrestre ser um elo com algo que viria, e que antecederia, latente no inconsciente. Cada vez vejo com mais clarividência de que não é assim. Tudo é o acaso, incluindo o ser humano. Estamos sós perante a não existência de deuses, sós entre nós, cada um consigo.
Caminharei a passos assustadoramente largos rumo ao ateísmo. Perder Deus será a derradeira etapa de uma descrença progressiva na humanidade e no sentido da vida. E talvez aí, sem o suporte de deuses, encontre o Eu no meio do vazio.
Tenho algumas reservas em embrenhar-me nas leituras de ensaios desse tipo; não porque não sejam eventualmente interessantes, mas porque me cansaria lê-los com a atenção devida e estaria a perder um tempo precioso e que muito prazer me dá na leitura de outros tipos de livros.
ResponderEliminarLi algo de Sartre quando era novo, e nada mais.
E para se chegar ao ateísmo, não é preciso cansar tanto o intelecto...
O saber não ocupa lugar e quando aprendemos com gosto não cansa o intelecto. Toda a leitura é meritória. Só o acto de ler o é.
EliminarHá quem acredite e há quem rejeite Deus só porque sim, ou porque não. A crítica tem de ser devidamente fundamentada ou então não ultrapassa a convicção infundada. Não serei ateu, ainda, mas pouco faltará.
Eu não rejeito Deus, nem sou ateísta, apenas me distancio muito dos dogmas da Igreja, por culpa da própria Igreja.
Eliminarvive o melhor que puderes, Mark, com deus, sem deus, contigo apenas, com algo que te faça vibrar, por... tu o saberás. estás aqui e agora e tens uma vida para viveres. depois, é uma incógnita. como dizem, ninguém regressou para contar como é :)
ResponderEliminarbjs.
Exacto, Margarida. É assim como dizes. Todavia, a humanidade vive na ânsia de se encontrar, de se explicar e, sobretudo, de se justificar. :)
Eliminarum beijinho grande.
«Caminharei a passos assustadoramente largos rumo ao ateísmo. Perder Deus será a derradeira etapa de uma descrença progressiva na humanidade e no sentido da vida. E talvez aí, sem o suporte de deuses, encontre o Eu no meio do vazio.»
ResponderEliminar...
Uma vez, no decorrer de uma aula de filosofia, a propósito de uma intervenção em que tentava defender o que julgava ser inatacável, o professor confrontou-me com esta pergunta praticamente definitiva: «- Tu até podes estar a percorrer o caminho que conduz à verdade, mas quem te garante que assim é?!»
A verdade acaba por ser uma abstracção, independentemente da posição que cada um de nós assume perante ela.
É-me difícil acreditar no que quer que seja apenas por uma questão de fé. Não sei que coisa é o sentido da vida e, por outro lado, não me parece que a humanidade seja "O" compêndio mais adequado para entender o significado da evolução.
Não sou aquilo a que, vulgarmente, se chama crente. Não sou ateu. Não sou, sequer, agnóstico. Não pretendo situar-me no mundo como se a religião fosse o princípio e o fim das coisas, mas não desisto de me encontrar pelos meus próprios meios. Creio, contudo, que essa é uma tarefa que me ultrapassa. Falta-me tempo!...
Seja como for, suponho que sem oposição não há vida possível.
Não há verdades absolutas. O que é considerado "verdade", no seu tempo, facilmente é desmentido décadas depois. Foi assim com Copérnico, por exemplo, quando a sua teoria heliocêntrica veio desconstruir a pirâmide de certezas da época. A humanidade viu-se confrontada com o facto de não estar no centro do universo; a Terra é um dos planetas que gira em torno de uma estrela entre infinitas estrelas da Via Láctea, por sua vez uma galáxia ínfima quando comparada à vastidão do universo.
EliminarBusco incessantemente a verdade, sabendo que jamais a encontrarei. Chegarei a pequenas verdades que poderão não o ser.
Deus era inquestionável. Era. Olho em redor e percebo a absoluta solidão de cada ser humano. Nascemos sós e morremos sós. E o mundo segue e avança.
Vou ser bem sincero com você, eu cada vez acredito menos em Deus, e olha que o peso da religião no Brasil é bem grande, não só da Igreja Católica como também de evangélicos, etc.. Eu acho assim como você, estamos sozinhos nesse mundo. Eu vejo tanta injustiça e me pergunto: cadê Deus, ele não vê isso? Depois eu vejo as religiões explicando isso e aquilo apenas pra que acreditemos que Deus existe mesmo. Acho esse "deus" mau demais e injusto.
ResponderEliminarAbraços!
Sim, e é um Deus omisso. Outro detalhe que nunca entendi é o motivo pelo qual Deus deixou de ser tão interventivo na Terra. Lemos o Antigo Testamento e deparamo-nos com uma Entidade que fala aos homens, que interfere no quotidiano, que escolhe profetas e transmite ordens e regras de conduta, leis em muitos casos. Por que motivo deixou de fazê-lo? Desde que Jesus veio à Terra (para a Igreja Católica, o Deus encarnado), Deus "desapareceu". Os judeus ainda esperam o seu messias, é verdade...
EliminarA ingerência de religiosos na política, no Brasil, é preocupante. Em Portugal, a Igreja Católica tem um tratamento privilegiado, até a nível da Concordata, que rege as relações entre Portugal e a Santa Sé. Não me incomoda. Seria hipocrisia negar o contributo do catolicismo na formação de Portugal. Ele faz-se presente ao longo dos séculos de história deste país, além de ser a fé da maioria dos portugueses, com mais ou menos impacto no dia a dia. Estamos embrenhados em valores cristãos.
um abraço.
*é um deus omisso
EliminarKierkegaard o meu Filósofo preferido. Verdade! Tive Filosofia até ao 12º
ResponderEliminar"A função da oração não é influenciar Deus, mas especialmente mudar a natureza daquele que ora"
A fé é a mais elevada paixão de todos os homens.
For you with love :)
Grande Abraço amigo Mark
Não dei Kierkegaard no colégio. Conheci-o através de leituras extra-curriculares, por iniciativa própria. Bom, só tive Filosofia até ao 11º ano, verdade.
EliminarÉ uma citação dele? Interessante. Faz sentido.
Oh, tão querido. :')
um abraço grande, amigo Francisco.
Sim, são frases dele :)
EliminarE, também era o filósofo mais giro daquela época ;)
Tudo agregado numa só pessoa e eu a nascer anos depois LOLOLOLOLOLOLOL
Abraço amigo
És demais. Se não tivesses nascido, terias de ser inventado. :) Ahah
Eliminarum abraço.
Não é nada difícil progredir para o ateísmo, eu mesmo me encontro nesse limiar, apesar da rígida educação católica e dos sacramentos todos que passei (falta-me o casamento, lol, estou à espera que 'eles' facilitem isso).
ResponderEliminarEm Roma conheci um geneticista, que descobri depois que é um dos investigadores mais promissores do mundo. Falávamos de ciência e religião, e ele dizia-me "Acredito no que os meus olhos vêem. Se não compreendo o que vejo é porque ainda não investiguei o suficiente". Revi-me completamente naquela resposta.
É mais fácil do que pensamos progredir para o ateísmo (ou regredir...). Tive uma educação embuída em valores católicos, sim, embora só tenha o baptismo. Os pais não praticam. O catolicismo não teve qualquer peso na minha formação, felizmente. Até agora, sempre distingui claramente a entidade "Deus" de qualquer religião, que rejeito, embora respeite.
EliminarBoa resposta. :)
Haverá sempre alguém que te irá segurar. Nem que seja um amigo desconhecido.
ResponderEliminar:)
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