8 de janeiro de 2014

O Fascismo e o Nacional-Socialismo.


   Em linguagem popular, o fascismo abarca a Itália fascista, a Alemanha hitleriana, a Espanha franquista e ainda o Portugal de Oliveira Salazar. Não querendo quebrar com este costume arreigado por gerações, importa observar que a legitimidade deste hábito é muito duvidosa e discutível. Em verdade, assimila três sistemas: o nacional-socialismo, o fascismo propriamente dito e o autoritarismo conservador, que têm, sem dúvida, aspectos análogos, mas que surgiram em contextos histórico-espaciais diferentes. Será conveniente e correcto designar a Alemanha nazi como 'nacional-socialismo', a Itália de Mussolini como 'fascismo' e Portugal de Salazar como 'autoritarismo conservador'.

   O fascismo não pretende ser uma doutrina. Em 1919, num discurso, Mussolini diria mesmo que "a doutrina fascista é o facto", subentendendo-se de que no fascismo a acção precede a palavra e que a disciplina é preferível aos dogmas. Na sua defesa obstinada da Nação, Mussolini intitulava o regime fascista como aristocrata e democrata, revolucionário e reaccionário, proletário e antiproletário, pacifista e antipacifista, desde que o elo de ligação fosse a Nação.
    Hitler escusou-se a apresentar um programa durante a campanha eleitoral de 1933. Preconizava que todos os programas são inúteis e a vontade humana é o que verdadeiramente releva. Como atesta Mein Kampf, os discursos de Hitler são próprios de um homem de ideias fixas e pouco preocupado com doutrinas.

   Há cinco elementos que podemos encontrar no fascismo e no nacional-socialismo, pontos de convergência entre ambos. O fascismo é um 'filho da guerra'. Surge como um grito de revolta perante a humilhação da derrota. Os agrupamentos dos antigos combatentes formaram o primeiro núcleo das organizações fascistas e nacional-socialistas em Itália e na Alemanha. O fascismo e o nacional-socialismo não são apenas movimentos que exaltam o sentimento nacional; é um nacionalismo de vencidos e de humilhados. 

    Em segundo lugar, o fascismo e o nacional-socialismo nasceram da miséria e da crise, do desemprego e da fome. Surgiram num primeiro momento como movimentos de desespero e revolta contra o liberalismo do século XIX, opondo-se, contudo, ao marxismo. Goebbels, ministro do Reich, diria mesmo que o nacional-socialismo é o verdadeiro 'socialismo', ideia seguida de perto por Mussolini. Na prática, qualquer um dos regimes não ousou tocar na oligarquia e no grande capitalismo. As massas associativas do regime italiano e do hitleriano vêm das classes médias, da indústria e do comércio. São aliciados os subalternos, categoria mais ameaçada pela proletarização, condenados que estavam com o evoluir da economia. Apesar de apelar aos proletários, o fascismo seria um movimento da classe média, que forneceu os quadros, os traços principais da filosofia da doutrina.

    O fascismo e o nacional-socialismo fizeram o culto do chefe carismático. São uma mitologia. O estilo vale mais do que o programa. O espectáculo, as multidões, os cenários, as palavras acesas, os símbolos da Nação! Entre o chefe e o povo estava estabelecida uma comunicação como jamais se vira. Comunicação essa bastante íntima, a roçar o físico. Um verdadeiro histerismo colectivo, produzindo-se uma espécie de hipnose que gera o êxtase do povo. Ressalva-se, todavia, um carácter dúbio presente na obra A Revolução do Niilismo de Herman Rauschning: a pessoa do Führer deveria retirar-se para o mistério progressivamente, manifestando-se em actos inesperados  e em discursos pouco usuais, estimulando-se assim uma aura mística de Criador omnipresente e omnipotente.

   Estes regimes defendem o primado do irracional. Hitler diria mesmo, noutro dos seus discursos, que só interessa acreditar, obedecer e combater, refutando a ideia de que a inteligência tirou a Alemanha de maiores apuros. Este primado da irracionalidade traz consigo uma concepção anti-igualitária. O fascismo e o nacional-socialismo são hostis à democracia participativa e ao sufrágio universal. Mussolini falaria da 'lei do número'. Em suas palavras, o número que se obtém numa eleição, por esse facto, não é admissível que controle a sociedade. Vai mais longe, admitindo que a desigualdade é útil, fecunda e irremediável nos seres humanos. Hitler concretiza esta ideia, num dos seus discursos, proferindo que, e transcrevo, "é mais fácil fazer passar um camelo por um buraco de uma agulha  (aqui inspirando-se na Bíblia em Mateus 19:24, Marcos 10:25 e Lucas 18:25) do que descobrir um grande homem por meio de uma eleição". É assim que Hitler e Mussolini desvendam a élite: enquanto que para Mussolini esta trata-se essencialmente da superioridade dos governantes, para Hitler a superioridade do povo alemão a justifica, defendendo o domínio dos fortes sobre os fracos.

   O Estado, como tal, é a última das grandes preocupações do fascismo e do nacional-socialismo. O fascismo faz a exaltação do Estado: instrumento dos fortes, garantia dos fracos, o Estado todo-poderoso, o Estado é tudo e nada existe fora dele. Os indivíduos encontram-se subordinados ao Estado. Rejeita categoricamente a teoria da separação de poderes de Montesquieu ou Tocqueville. A verdade do Estado está patente na sua propaganda, na mobilização da juventude. Mussolini e Hitler subordinaram a economia à política. Nas palavras de Hitler, o Estado não é uma "organização económica". Aqui, fascismo e nacional-socialismo divergem em certa medida: na concepção do Duce, o Estado é uma realidade anterior e superior à nação. A grandeza de Itália deveria ser obra do Estado fascista. Completamente oposta é a noção de Hitler, para o qual o Estado é um mero instrumento de mecanismo. O fundamento é o povo. O povo alemão numa realidade que remonta ao passado da Alemanha e à superioridade biológica dos alemães. Mussolini forjou o Estado italiano; Hitler mistificou-o.

    Diferenças a assinalar entre os dois regime incluem a existência de corporações no fascismo: as corporações estavam ao serviço do Estado; e a doutrina do Espaço Vital na Alemanha nazi, diferente em Itália. Hitler movia-se pela pureza da raça (se bem que também defendesse o espaço essencial para os alemães viverem), ao passo que as investidas de Mussolini no norte de África tinham subjacente as reminiscências de um passado glorioso de Roma e o desejo de alargar o poder italiano (ao jeito da expansão romana).

     O fascismo italiano teve início com a ascensão ao poder de Benito Mussolini em 1922, terminando no final da II Guerra Mundial. Por seu lado, o nacional-socialismo foi a fórmula do regime nazi de 1933 a 1945.

41 comentários:

  1. Amei!! Nossa Mark essa dissertação tá ótima! Demorei um tempão pra ler mas amei de verdade! Eu não havia entendido direito as diferenças entre esses regimes, entre o Hitler e o tirano da Itália, esse tal de Mussolini e agora fiquei bem mais esclarecido mas te fiz uma pergunta no seu email :)

    Abraço!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Tenho de ir ao email do blogue. Vou pouquíssimas vezes por mero esquecimento e distracção. :| Depois do jantar, passo por lá. ;)

      Diferenças entre os dois regimes porque quanto a quem os personificou, enfim, a diferença é pouca. :s

      um abraço.

      Eliminar
  2. Já viste as declarações da neta dele? Cada vez que a vejo na televisão não sei se ria, se chore.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Nunca vi! Nem sabia que ele tinha deixado descendentes. Realmente, a vida destes tiranos não me suscita qualquer curiosidade. :)

      Eliminar
    2. Ela aparece muitas vezes na TV italiana que é o que se vê lá em casa.

      Eu também não fazia ideia de quem ela era mas depois disseram-me e é ridícula. Também não me suscitam curiosidade nenhuma e tenho alergia à II Guerra Mundial, é que nem filmes e afins vejo.

      Eliminar
    3. Eu gosto da História do século XX, mas não se compara ao carinho que tenho pela Idade Moderna. Há dias vi no 'Quem Quer Ser Milionário' um concorrente, professor de História, a dizer que não gostava da parte do colonialismo porque foi um período negro da humanidade. E não está a História repleta de períodos negros? Argumento risível da parte dele.

      Não ligo muito às guerras. É pesado demais. Gosto, sobretudo, das ideias políticas do século XX. :)

      Eliminar
  3. Adorei,

    já fiquei mais rico :)

    Abraço amigo Mark

    ResponderEliminar
  4. Parece que assisti a uma aula de História haha, dei estes regimes (e o regime comunista da URSS) no primeiro período e se no início achava tudo uma confusão, fui começando a entender aos poucos as diferenças. Só te digo uma coisa, pena não teres escrito isto antes, dava cá um jeito ;)
    Keep going!
    Quando precisar de explicações já sei, sem dúvida, a quem recorrer :p

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sim, é matéria do 9º e do 12º anos. Não é dado de forma tão aprofundada como eu expus aqui. :) Isto já são pormenores de nível universitário e superior. Com certeza farias um brilharete. :D Numa pergunta sobre os regimes alemão e italiano, escrevesses isto e terias muito perto de 20. :)

      A minha nota mais baixa a História, em todo o Secundário, foi um 16. E toda a turma desceu. No 10º, 11º e 12º anos, fui sempre o aluno com os melhores testes e as melhores notas a História. Nunca o disse no blogue porque achei que não faria sentido, mas recebi um diploma de honra do colégio por figurar entre os melhores alunos de sempre! LOL

      Ora essa, dispõe. :)

      Eliminar
    2. ahaha eu vou-me contentando com a minha média de 16 a História no público e vou bem, tendo em conta que o meu professor dificilmente dá notas acima de 15 xD
      É bastante exigente, mas gosto dele. :)

      Eliminar
    3. Sim, Kyle, mas não penses que temos a vida facilitada só porque o privado tem a 'fama' (mas, no caso do meu colégio, não o proveito) de ser menos exigente.

      A minha professora de História do 10º ano e a minha professora do 11º e do 12º anos eram exigentes e imparciais. Os meus testes corrigidos por um professor do público seriam cotados da mesmíssima forma.

      Sim, tens uma média muito boa. :)

      Eliminar
    4. não penso assim de todo! Eu acho que os privados (pelo menos na minha zona a ideia que se tem é esta) são muito mais exigentes, eu já lá andei, vi como foi.
      A verdade é que mexem em algumas médias, mas não nas disciplinas obrigatórias como Português ou História, mas sim naquelas opcionais/educação física que são "mais fáceis" e que só servem para subir a média.
      No público isso é raro acontecer, temos que lutar pelas notas todas, sejam quais forem, mas pronto, vai-se conseguindo e só se o professor das opcionais for muito mau, é que faz de tudo para lixar a média aos alunos xD
      Como disse no início o privado para mim pauta pela exigência e isso é bom, porque faz com que os alunos aprendam melhor, estando os resultados à vista :)

      r: quanto à questão da carta, parece que me compreendes, pelo que vi também dispensas conduzir, mas sabes que é fundamental :) enfim! Já estou a tratar disso, obrigado amigo :)

      Eliminar
    5. Odiei Educação Física. :x Nunca fiz devido à asma. Ficava muito cansado, logo, dispensei. As opcionais no Secundário são iguais às da faculdade: tendencialmente são mais fáceis e é onde se consegue tirar as melhores notas. :)

      No privado, visto que pagas, há um outro acompanhamento, é mais isso. São igualmente exigentes porque despendem mais tempo com os alunos.

      Pois, eu infelizmente não levo é muito jeito com os automóveis, ahah. :D É mesmo fundamental. Eu consegui tirar a carta (vi-me aflito no exame de condução; no teórico passei com 0 erradas :D).

      De nada. :)

      Eliminar
    6. r: amiguito, se te deixa feliz hoje vou comer um balde de pipocas aqui em casa no cinema com as amigas xD

      Eliminar
  5. Gostei muito Mark, até porque essa acaba por ser uma discussão muito frequente para quem tem amigos a militar no CDS e no PCP, o que de facto é fascismo e o nacional socialismo, porque para os de direita... Hilter era de esquerda... LOL :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Ui, esquerdíssima. Um marxista-leninista convicto. xD

      Eliminar
  6. Respostas
    1. Eu não lhe vou responder a isso, como calcula. Entretanto, a sua razão, se a tiver, responder-lhe-á.

      Passe bem.

      Eliminar
    2. É. Ele diz sempre: "fachóvô" de ficar calado lolol E diz, porque é uma pessoa educada. LOL

      Eliminar
    3. ... ai, Namorado, afinal, os blogues são como os estabelecimentos públicos: entra qualquer um. LOL

      Eliminar
    4. Tens que melhorar a clientela Mark LOL

      Eliminar
    5. LOOL, a clientela é das melhores, como sabes, mas às vezes entram assim uns indivíduos esquisitos. xD

      Eliminar
  7. Alguma black friday que fazes aqui no espaço comercial... LOL

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. LOL, que medo! Não me fales em espaços comerciais que trazes-me à memória Direito Comercial e todas as más recordações inerentes. Odiei essa cadeira, aliás, x2: Direito das Sociedades Comerciais. (Ugh, sim, é tão pavorosa quanto o nome LOL).

      Eliminar
  8. Lembro-me de ter estes dois regimes como semelhantes e há uns anos atrás, quando me dediquei ao tema, percebi que são muito diferentes, apesar da personificação dos seus líderes os aproximar.
    Por outro lado, é curioso como algumas palavras assumem significados pejorativos após determinados regimes políticos, e o seu real significado ser desconhecido da maioria das pessoas. O caso mais flagrante é o 'fascista', adjectivo tão em voga hoje em dia (lol) mas que poucos (mas agora mais) saberão o que significa. :D

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. São regimes que se aproximam no extremismo e na intolerância, mas que têm substanciais diferenças, sim. :)

      'Fascista' passou a ser adjectivo de acusação contra qualquer regime de direita, não se atentando nas diferenças. O caso mais paradigmático é o português, onde nem tivemos um verdadeiro 'fascismo', mas sim um regime autoritário e conservador com alguns traços do fascismo, é verdade. E espero que nenhum comunista leia isto ou acusar-me-ão de branqueamento do fascismo no ano do 40º aniversário do 25 de Abril, ahah. :D

      Eliminar
    2. Lol, pelo menos um já o fez...

      Eliminar
    3. Salazar foi execrável e só trouxe atraso a este país. Consigo vislumbrar mais obra no despótico governo de Pombal do que no de Oliveira Salazar. Isso, todavia, não basta para que defendamos que foi um fascista aos moldes de Mussolini ou Franco. Houve diferenças. Poderão ser pontuais e apenas ao nível da nomenclatura, mas houve. Deve ter sido isso que o senhor ali em cima não entendeu. :)

      Eliminar
  9. Excelente, como é hábito nas tuas "lições"...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigado. :) Ainda bem que gostaste, João. É importante esse feedback!

      Eliminar
  10. muito bom. o Kyle já o referiu por outras palavras, este texto é um bom auxiliar de memória para o secundário. :)
    bjs. bom fim-de-semana.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Está muito além do Secundário, muito, mas obrigado. :)

      um beijinho e bom fim de semana.

      Eliminar
  11. Nossa, tu escreves que é uma coisa louca :o
    Parabéns!

    ResponderEliminar
  12. Bacana a informação e a história...
    Seu blog também é cultura...rs
    Abraços!

    ResponderEliminar
  13. Mais um brilhante texto ... parabéns!!

    Abraço ;-)

    ResponderEliminar