18 de janeiro de 2014

A Democracia Representativa e os Direitos Referendáveis.


   Com a Revolução de Abril, o legislador de 75/76 optou por manter a tradição unicameral que nos vinha desde 1926, embora tivesse sido acolhida na nossa primeira Constituição de 1822. Inspirando-se nos moldes da Constituição do Estado Novo de 1933, manteve-se o propósito de concentrar num único órgão representativo de estrutura colegial a força decisória unitária. A Assembleia da República é o órgão de soberania colegial que representa todos os cidadãos portugueses, conforme o disposto no artigo 147º da Constituição. Os deputados são eleitos por círculos eleitorais, mas representam todo o país (artigo 152º, nº 2 da Constituição, doravante CRP). A vontade da Assembleia da República, nos termos do modelo de democracia representativa, é a vontade geral de toda a colectividade. Aferimos, daí, que não há democracia sem parlamento, nem podemos falar de um verdadeiro parlamento sem que haja uma representação plural de todas as sensibilidades políticas existentes na sociedade. Ora, a Assembleia da República demonstra essa confluência de sensibilidades.

   O parlamento, enquanto órgão colegial, funciona segundo o princípio maioritário, ou seja, o partido ou a coligação partidária que tenha maioria controla as decisões políticas e jurídicas da Assembleia da República. Se a CRP - e bem - nos diz que os deputados exercem livremente os seus mandatos, à luz do artigo 155º, nº 1, a verdade é que, frequentemente, estão sujeitos a disciplina partidária. Os deputados estão subordinados aos partidos políticos, sendo meros objectos fungíveis, obedecendo cegamente à liderança partidária. Os partidos condicionam quem vai ser deputado, definem as listas de candidatos a apresentar às eleições, e, através dos grupos parlamentares, controlam e sujeitam o exercício dos mandatos parlamentares à sua vontade. A tudo isto assistimos nos últimos dias quando vários deputados do PSD se viram obrigados a votar no sentido estipulado pelo partido na pessoa do seu líder, Pedro Passos Coelho, adulterando o espírito representativo patente na nossa lei fundamental e subvertendo a sua consciência a interesses partidários. O parlamento é, em cenários de maioria política, como o que vivemos, facilmente instrumentalizado pelo Governo.


   O referendo está previsto no artigo 115º da CRP. Pode ser proposto pelo Governo, pela Assembleia da República e ainda por iniciativa popular de cidadãos (116º). O Presidente da República, nos oito dias subsequentes à publicação da resolução da Assembleia da República, submete ao Tribunal Constitucional a proposta de referendo para efeitos de fiscalização preventiva da constitucionalidade e da legalidade, o que resulta também da Lei Orgânica do Regime do Referendo. O Tribunal Constitucional aprecia então da legalidade e constitucionalidade do mesmo, segundo o que dispõe o artigo 223º, nº 2 alínea f) da CRP. A esperança dos opositores ao referendo residem agora no Tribunal Constitucional, uma vez que Cavaco Silva, a julgar pelo seu carácter e conservadorismo, provavelmente concordará com a consulta popular. Todavia, Cavaco Silva pode considerar o momento inoportuno e inviabilizar o referendo. Isto partindo do princípio que as duas perguntas colocadas a apreciação do Tribunal Constitucional passam pelo seu crivo. Nesta situação, Cavaco Silva tem um papel decisivo na submissão das questões a referendo, sendo o seu exercício um direito absoluto (artigo 134º, alínea c)), competindo-lhe aceitar ou recusar as propostas dirigidas pela Assembleia da República (neste caso em concreto) ou pelo Governo. Não nos esqueçamos de que há um projecto de lei de coadopção apresentado pelo PS em cima da mesa, suspenso desde já pela aprovação no parlamento da proposta de referendo que incide sobre a mesma matéria. Convocando-se o referendo, o projecto continuará automaticamente suspenso devido à primeira pergunta que, eventualmente, será colocada. Em relação à segunda, que abrange a adopção por casais do mesmo sexo, não há qualquer projecto. Invoca-se ainda uma possível inconstitucionalidade por não existir um projecto de lei em curso sobre a adopção por casais do mesmo sexo. A doutrina diverge e não concordo com os argumentos invocados por António Filipe, deputado do PCP. Na minha opinião, e na de vários constitucionalistas, um referendo pode englobar matérias que não estão pendentes de apreciação parlamentar.
    Após a decisão de Cavaco Silva pela afirmativa, o projecto do PS mantém a suspensão; optando o Presidente pela não convocação, esta caduca e o projecto subirá ao plenário tarde ou cedo.

   A pergunta que paira sobre muitos é a da legitimidade desta proposta de referendo. Serão os direitos individuais referendáveis? Importa fazer uma clara distinção: não há um direito a adoptar, nem por casais heterossexuais ou por cidadãos individuais. Há um direito constitucional a constituir família (36º, nº 1 da CRP), direito vago, sabendo-se que há famílias sem crianças. Há ainda um direito das crianças à protecção e à luta contra o abandono (69º, nº 1 da CRP), extraindo-se daqui um direito à família. O direito é, então, das crianças e não dos adultos. O bom senso diz-nos que, nesta luta constitucional contra o abandono, fará todo o sentido permitir que dois homens, ou duas mulheres, possam criar, educar, proporcionar um ambiente são a uma criança, assim preencham os requisitos comuns a qualquer adoptante. Jamais o Estado se substituirá a uma família e o conceito de família não pode por ele ser definido. Compete ao Estado, isso sim, proteger a família enquanto elemento fundamental da sociedade (67º, nº 1 da CRP), efectivando todas as condições que permitam a realização dos seus membros. Em parte alguma se fala de casais heterossexuais. O Conselho da Europa em 1988, na sua resolução nº 1074, reconhece a família como o núcleo onde as relações são mais densas e ricas, lugar por excelência para a educação das crianças.

    À luz da lei do referendo (Lei 15-A/98 de 3 de Abril), o mesmo só poderá versar sobre questões de elevado interesse nacional, onde poderemos incluir a adopção e coadopção. Materialmente, não me parece inconstitucional. Estão de fora todos os limites aos quais a lei se refere. No meu humilde parecer, a proposta seria inconstitucional por incidir sobre um direito à família previsto na Constituição. Nenhuma instituição estatal é uma família. Um jovem, ou criança, de sempre educado por pessoas que reconhece como seus pais, não pode ver referendado o seu direito a ter aquela figura como pai ou mãe. Não nos compete ajuizar sobre os vínculos que unem uma criança à sua família mais próxima. Na adopção, o direito à protecção e à luta contra o abandono não permite, a meu ver, que o Estado possa preterir um casal homossexual por um casal heterossexual apenas porque fundamentou o conceito de família com base em convicções ideológicas e pessoais. Apresentando-se um casal homossexual à adopção e havendo um adoptando, criança ou jovem carecendo de uma família e de afectos, nada poderá impedir o processo, em nome dos referidos direitos à protecção e à luta contra quaisquer formas de abandono. Por maioria de razão, as matérias da coadopção por um cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo e da adopção por casais homossexuais devem ser discutidas e aprovadas na Assembleia da República e não por consultas populares, dada a profunda delicadeza em causa.

   Ainda na lei do referendo, se o Tribunal Constitucional se pronunciar pela inconstitucionalidade ou ilegalidade da proposta de referendo, o Presidente não o pode convocar e tem de devolvê-la ao órgão que a formulou, no caso, a Assembleia da República. A Assembleia apreciará e expurgará a parte considerada inconstitucional ou ilegal. No prazo de oito dias após a publicação da proposta que tiver sido reformulada, Cavaco Silva terá de submetê-la de novo ao Tribunal Constitucional para segunda apreciação, repetindo-se o processo. O Presidente decide, então, no prazo de vinte dias, pela convocação ou não do referendo. Havendo referendo, só é vinculativo quando o número de votantes for superior a metade dos eleitores inscritos (115º, nº 11 da CRP).

    Estamos perante questões que dividem a sociedade portuguesa. Trata-se de um processo moroso, complexo, que envolve tempo que muitos não têm. Há famílias que precisam de certezas. No fim de tudo, convocando-se o referendo, seria necessário promover debates alargados e suficientemente elucidativos. Há muito em jogo e poderes ocultos...

     Veremos o que dita a sensibilidade de quem ocupa os órgãos de soberania.

28 comentários:

  1. Excelente Mark! Eu acompanho essa questão polêmica aí de Portugal e nossa, como fiquei esclarecido! Uma dúvida apenas. O Presidente não governa né? Porque eu li tem pouco tempo que o Presidente aí era como um monarca que não reina. É assim? Eu sei que vocês têm governo, parlamento e deputados. O Cavaco é tipo um rei?

    Abraços!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Em primeiro lugar, obrigado, Ty! Mesmo sendo brasileiro, dás-te ao trabalho de ler algo tão extenso que te diz tão pouco. Obrigado pela paciência e pela atenção. :)

      Respondendo à tua pergunta: felizmente, não é rei. LOL Mas, sim, eu entendi. :P Tem as competências de um monarca constitucional, sim. Não governa, é um facto, sendo o chamado 'guardião da Constituição'. Cumpre-lhe fazer respeitar a Constituição e defendê-la intransigentemente.

      Todavia, o seu mandato, que advém de sufrágio directo e universal, é limitado e não hereditário. Pode ser eleito por cinco anos e candidatar-se de novo. Ganhando, está outros cinco, num período que não pode exceder dez anos, ou seja, dois mandatos ininterruptos. É o caso do actual Presidente e de todos os seus antecessores pós 1976. Em todo o caso, após um período de cinco anos em que o órgão é ocupado por outro titular, pode candidatar-se novamente.

      Espero ter esclarecido as tuas dúvidas. :)

      um abraço.

      Eliminar
    2. Sim sim, esclareceu :) Obrigado!

      Abraços!!

      Eliminar
  2. Completa hipocrisia,

    Se as crianças forem todas adoptadas, todas com educação...

    Lá se vai o natal crianças e tudo associado.

    Afinal, segundo as más línguas e eu que não sou de intrigas, o maior local de engate gay é na missa ali para os lados da Lapa

    Abraço amigo Mark

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Não podemos julgar o todo pela parte. Há pessoas conscientes no PSD e ontem tivemos a prova disso mesmo. Até no CDS.

      O que me entristece é que coloquem interesses partidários e estratégicos acima dos direitos das crianças. Não devemos ser fundamentalistas e aqui não há um direito a adoptar: há o direito das crianças a terem um ambiente familiar onde cresçam de forma saudável. Nesse sentido, creio que casais homossexuais podem adoptar. A coadopção é mais simples ainda porque são famílias homossexuais que já existem. Querem recusar àquelas crianças a protecção legal que o estatuto de adoptado lhes confere, porque para elas, e destaco isto, o amor já existe, os pais ou as mães são aqueles e nada mudará isso.

      O que esta maioria tem feito é brincar com os sentimentos das pessoas.

      um abraço.

      Eliminar
  3. Caro Mark percebo perfeitamente a tua dissertação, contudo permite-me discordar face ao seguinte. Referes que o referendo tal como está proposto, não terá, ou não será, inconstitucional. Talvez porque não seja directo sobre o que pergunta, mas se pergunta se determinado grupo de população, não pode fazer determinado acto, parece-me a mim, uma atitude discriminatória, e se assim é, não cumprirá a constituição. Por paralelo, não me parece coerente que se pergunte se os casais, ou pares, de sexos diferentes podem adoptar ou co-adoptar. Existe essa ideia pré-definida de família, que esta é constituída por homem, mulher e crianças. E sobre esse aspecto também, me parecia idiota realizar-se um referendo. Há questões que não fazem sentido referendar. Outras há, que me parece urgentíssimas, como por exemplo, a permanência na União Europeia. Mas considero que o principal problema aqui, é mesmo o precedente que se abre. Hoje pergunta-se sobre isso que estamos aqui a trocar argumentos, amanhã iremos perguntar se os Judeus são da raça ariana? É assim que tudo começa.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Namorado, namorado, olá, leste bem o que eu escrevi? Não me parece. :D

      Eu disse que o referendo não é inconstitucional se invocarmos, por exemplo, que não é uma matéria que mereça ir a referendo, ou seja, MATERIALMENTE não é inconstitucional. LOL Logo a seguir defendo a inconstitucionalidade por outros motivos. E, pelo contrário, é muitíssimo claro no que pergunta. Eu tive acesso às perguntas e são claras como a água.

      Lê lá melhor o que escrevi, vá! LOL

      Eliminar
    2. Caro menino Mark

      Eu li bem o que escreveste, pese embora o "direito" da "coisa"! O que discordo é mesmo com a tua parte que defendes que é constitucional porque "materialmente" considerar um tema de "elevado interesse nacional" parece-me excessivo e descabido. E não. Não é clarissímo como água porque mistura dois temas que apesar de semelhantes, não substancialmente diferentes, quiçá com a esperança que as pessoas menos instruídas "caiam na armadilha". A juntar a isso, as perguntas são redigidas de forma a que nem todos os portugueses percebam. A isto chama-se engodo.

      E pelo sim, pelo não, reli o teu texto. LOL

      Eliminar
    3. Então, peço desculpa pelo equívoco. :)

      Podemos considerar que é uma matéria que não merece ir a referendo. Mas, pela natureza estruturante, eu diria que sim. Acabo por concluir que não por verificar que é um tema delicado que não pode ficar arbitrariamente nas mãos do povo. Porque se tiver adesão superior a cinquenta por cento, é vinculativo! :(

      Concordo contigo quando dizes que a proposta de referendo envolve duas matérias distintas. Sem dúvida! A coadopção é uma coisa; a adopção outra. Tens toda a razão, toda mesmo. Fizeram-no com o intuito de confundir as pessoas. Quanto à redacção, considero até clara e objectiva. Percebe-se bem. Também não podiam redigir algo como: "Acha que um homem/uma mulher que vive com outro/a ou é casado/a com outro/a deve adoptar o/a filho do/a outro/a?" ou "Acha que dois homens/duas mulheres casados/as um/a com o/a outro/a ou que vivem juntos/as devem adoptar?". LOL

      Leste isto de novo? Gabo-te a paciência. :P

      Eliminar
  4. esclareceste-me várias dúvidas, mas acho que o mais importante a referir é mesmo isto: "O direito é, então, das crianças e não dos adultos."
    Creio que nestes últimos tempos Portugal se tem esquecido disso, deixa que interesses partidários se sobreponham ao direito das crianças viverem felizes e seguras e isso entristece-me e faz-me lamentar o país em que vivo.
    Por outro lado, na altura do referendo sobre o casamento homossexual, o meu país surpreendeu-me e tornou-se dos primeiros do mundo a permitir a união de facto entre pessoas do mesmo sexo. Quem me diz que não vou ser novamente surpreendido (pela positiva), se realmente esta proposta avançar?
    Abraço Mark.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sim. Nos últimos dias, temos assistido a fundamentalismo de ambas as partes: por um lado, dos conservadores e religiosos; pelo outro, dos activistas LGBT. E, como sempre, as crianças são meros objectos arremessados conforme dá mais jeito.

      Ninguém tem direito a adoptar. E isto não é uma opinião; é um facto. O interesse é único e exclusivo das crianças! E acho patético quando, na Comunicação Social e até mesmo pela net, leio opiniões que defendem um hipotético 'direito dos homossexuais a adoptar'. As crianças é que têm direito a ser adoptadas, nomeadamente por homossexuais, claro. E muitos gays, diga-se de passagem, querem adoptar para mostrar que têm esse direito, que podem. Lá estão as crianças, de novo, usadas. Inquieta-me.

      Estás a ver as coisas pelo lado certo e isso é óptimo! As crianças, sim, têm todo o direito ao desenvolvimento feliz num lar com dois homens ou duas mulheres. :)

      um abraço.

      Eliminar
    2. R: desculpa, ando meio adoentado, mas fizeste-me alguma pergunta? x) É que ando meio despistado!

      Eliminar
    3. Não, não fiz, estava a brincar contigo. :D

      Eliminar
    4. ah ok :) é que como ando adoentado, comentários que não tenham perguntas explícitas não respondo, mas pronto, fico feliz que os teus pais aceitem a co-adoção :) isso é ótimo!

      Eliminar
  5. Ganda texto eheheh xD Mas também concordo contigo nisso das crianças e que muitos gays querem adoptar para se exibirem. Esperamos que os juízes saibam o que fazem e analisem caso a caso. Eu gostava de ser pai mais daqui a uns anos, sinto-me ainda não-preparado para tamanha responsabilidade. :D
    Abraço Mark.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Não tenho experiência alguma em processos de adopção, mas, ao que sei, são morosos e envolvem imensos requisitos por parte dos adoptantes. A adopção está vedada a menores de 25 anos, por exemplo.

      Pois, é de lamentar que assim seja. Adoptar uma criança não é um acto leviano.

      um abraço.

      Eliminar
    2. Excelente explanação,Mark! Espero que o Tribunal Constitucional declare o referendo inconstitucional. Direitos individuais,no caso das crianças e adolescentes,não podem ser matéria de referendo. A maioria não pode decidir sobre os direitos das minorias. Pelo menos eu acho isso.

      Um abraço apertado do Brasil :)

      Eliminar
    3. Tens toda a razão, Tiago. Os direitos das crianças e dos adolescentes não podem ser alvo de referendo.

      Tal como disse ao Ty, obrigado pela atenção que dás ao meu texto, dado que és do Brasil e que isto te diz tão pouco. :)

      um abraço.

      Eliminar
  6. Boa explicação! Confesso que estes pormenores técnicos e legais muitas vezes me escapam...
    Pessoalmente não sou a favor deste referendo, não vejo mal algum na adopção por casais do mesmo sexo desde que se tenha o cuidado de escolher bem os candidatos e de proteger as crianças.
    Mas ver as cenas dos próximos capítulos para ver que rumo isto toma!
    Abraço ;-)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. O referendo não faz o menor sentido. Parece-me claramente inconstitucional, mas aguardemos com serenidade o veredicto dos senhores juízes conselheiros. De momento, e não apenas em relação a esta polémica da adopção e da coadopção, são a nossa última garantia...

      um abraço.

      Eliminar
  7. Um texto como eu gosto, consistente e de indiscutível interesse e o qual suscita diversificadas opiniões.
    A Lei é a Lei mas há várias formas de a interpretar...
    No que aqui referes e que reporta ao triste espectáculo do final da passada semana na AR com a votação da proposta do referendo sobre o projecto de lei da coadopção, apresentado pelo presidente da JSD, ressaltam quanto a mim algumas referências do processo: ele ficou a dever-se a uma tentativa, (conseguida) do PSD, por intermédio da JSD de obstruir a aprovação na especialidade de um projecto de lei sobre a coadopção por parte de casais do mesmo sexo, projecto esse que já tinha sido aprovado no plenário, onde, e muito bem, não tinha sido imposta a disciplina de voto, já que em matéria de direitos, essa deveria ser sempre a regra.
    Claro que a manobra só resultou porque desta vez os dois partidos do Governo impuseram a disciplina de voto, o que levou a atitudes hipócritas de alguns deputados da maioria, com uma ridícula tentativa de desculpar o seu voto com declarações sobre o mesmo; se queriam estar de bem com a sua cosciância, ter-se-iam ausentado do plenário, para não desrespeitar a determinação dos grupos parlamentares, como fez Teresa Leal Coelho e suponho que mais um/a deputad/a. Mas enfim, foi conseguido o que se pretendia e que é maquiavélico, pois além de se pedir um referendo sobre um direito e os direitos não são referendáveis, este teve o cunho pérfido de englobar a pergunta sobre a coadopção com uma outra sobre a adopção, que já havia sido reprovada em plenário, e que, segundo tenholido, torna um referendo nestas condições, incostitucional, o que o invializará, se bem que isso é precisamente o que pretende o PSD.
    O PSD não quer o referendo, este serviu apenas de meio para não ser aprovada uma lei, esse é qu é o ponto.
    Foi um actoignóbil que poderá pôr em risco crianças o que em nada demoveu os mesquinhos interesses partidários.
    Agora, nem o silva de Belém escusa de se estar a preocupar para explicar a sua eventual decisão porque o TC se encarregará disso.
    Só tenho uma dúvida, mas que infelizmente parece já me terem esclarecido; no final desta trapalhada, e sem referendo, cessa o projecto lei que estava em cursona especialidade ou ele é retomado no ponto em que foi suspenso? Parece que terá que cessar, que é o que o PSD pretendia,
    E terá que haver uma nova proposta de lei que duvido seja apresentada nesta legislatura, pois decerto os mesmos partidos voltarão a impôr a disciplina de voto aos seus deputados.
    É caso para se dizer: puta da política quando interfere com aspectos fundamentais como são os doreitos humanos, quer sejam ou não apenas de minorias.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Em primeiro lugar, obrigado, João. :)

      A lei é lei. Compete-nos retirar de lá uma norma sem fugir ao sentido da lei, claro. Mas o papel do intérprete é essencial.

      Quanto ao que referes relativamente à proposta de referendo incidir sobre matérias diferentes (a coadopção e a adopção), vai depender da sensibilidade (como sempre) dos juízes, neste caso do Constitucional, porque tanto a Constituição como a lei do referendo obrigam a que os referendos recaiam sobre uma mesma matéria. Ora, a coadopção e a adopção não são a mesma coisa, é verdade, mas a coadopção não deixa de ser adopção. Foi um ponto que por acaso não mereceu a minha atenção, mas, de facto, ainda podemos defender a inconstitucionalidade com base nesse argumento. Muito bem visto!
      Invoca-se, como referi no texto, outro argumento que é o facto da adopção por homossexuais ter sido 'chumbada' no parlamento o que inviabilizaria a segunda pergunta. Aqui, os juristas também se dividem. Há quem entenda que sim; há quem entenda que não. António Filipe do PCP entende que sim; Bacelar Gouveia entende que não e também entendo que não. Em Direito não há uma verdade. Há a lei e há as várias interpretações possíveis. A lei do referendo, aqui, não é explícita se tem de haver um processo legislativo anterior, se não.

      Quanto à segunda questão, João, eu refiro no meu texto: o projecto de lei da coadopção está suspenso e a suspensão terminará se a proposta de referendo não vingar. É o que resulta da lei do referendo. Portanto, a meu ver, o PSD não quer inviabilizar o referendo porque o projecto de lei que está pendente na AR volta à sua eficácia normal. Segundo li, o projecto do PS nem caduca no final da actual sessão legislativa. Se a proposta de referendo tiver alguma ilegalidade ou inconstitucionalidade, a AR terá de a sanar; se não, e Cavaco Silva optar por não convocar o referendo, o projecto do PS sobre a coadopção pode ser votado. O artigo 4º, nº 2 da lei do referendo diz, e transcrevo: " Se a Assembleia da República ou o Governo apresentarem proposta de referendo sobre convenção internacional submetida a apreciação ou sobre projecto ou proposta de lei, o respectivo processo suspende-se até à decisão do Presidente da República sobre a convocação do referendo e, em caso de convocação efectiva, até à respectiva realização. " Entretanto, terminará a sessão legislativa (ou o ano legislativo), mas o projecto do PS não caduca.


      :)

      Eliminar
  8. Fiquei muito mais elucidado com o teu texto e com os comentários, também. Este referendo é uma manobra claríssima para tentar inviabilizar lei de coadopção apresentada pelo PS. Vamos ver no que dá, mas não me cheira que o bom senso vá prevalecer. Espero estar enganado.

    Abraço, Mark.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Ainda bem, Arrakis, o objectivo foi esse: o de esclarecer. :)

      Sim, esta proposta de referendo está pejada de más intenções, nomeadamente arrumar a coadopção e a adopção com uma só machadada. Valha-nos o TC!

      um abraço. :)

      Eliminar
  9. Eu acho que o que se devia discutir [nem precisa de ir a referendo, lol!] não é quem adopta, mas o processo em si...como disseste e muito bem, o processo é moroso, lento e provoca imenso sofrimento tanto a quem quer adoptar, como a quem quer ser adoptado...

    Isso também devia ser considerado um atentado aos Direitos das Crianças, sinceramente.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. De facto. Se agilizassem os processos de adopção em vez de despoletarem polémicas sem sentido é que fariam melhor...

      Se há crianças que necessitam de uma família e se há casais, eventualmente homossexuais, disponíveis, e se o Estado lhes nega uma família com base num conceito de família que não reconhece, certamente viola os direitos à protecção e à luta contra o abandono.

      Eliminar
  10. Este e o post do Namorado foram os primeiros que vi sobre o tema da coadoção aqui na 'nossa' blogo. É um texto muito claro e esclarecedor, escrito por um expert. Há pouco mais a dizer. Estamos todos de acordo, infelizmente.

    ResponderEliminar