Reflectindo acerca do direito e da sua relevância prática, apercebi-me de que raras vezes abordei questões relacionadas com a normatividade. No mínimo estranho, sendo a minha área. Do pouco que escrevi, centrei-me sobretudo nas ideias políticas e na sua contribuição para o direito, fugindo consciente ou inconscientemente dos ramos, do âmago.
Ontem, procurando espaço na minha estante de livros para as aquisições que se aproximam, dei com alguns manuais de direito das obrigações. Na época, era uma das disciplinas que mais repugnância me causava. Sou publicista de raiz. Abomino o direito privado (ou detestava). Há um nexo de causalidade. O direito público e a história do direito têm pontos em comum e, de certa forma, têm uma relação. Porém, e passada que está a maioria das cadeiras privadas, decidi retirar de dentro o pouco de civilista que existe (e há bem pouco - asseguro-vos) para escrever algo com interesse.
Começarei por explicar o que é uma obrigação. Uma obrigação é um dever de prestar, de fazer algo ou ainda de não fazer (omissão). Nesta relação jurídica bilateral, temos um devedor e um credor. Em tempos, falava-se de direito de crédito, contudo, essa designação não está institucionalizada. O direito das obrigações está regulado no livro II do Código Civil, em cujo artigo 397º aparece a definição de obrigação. Obrigação é o vínculo estabelecido entre o devedor e o credor, sendo que o primeiro fica adstrito a cumprir a prestação perante este último. O direito das obrigações não é um ramo estanque: está intimamente interligado a outros ramos do direito, nomeadamente o direito da família, sucessões e até, inclusive, os direitos reais - a linha que separa o direito das obrigações dos direitos reais é bastante ténue. Há, aliás, obrigações de natureza real, conforme o disposto no artigo 413º do CC.
Há princípios básicos e fundamentais no direito das obrigações. Um desses princípios, porventura o mais importante, é o princípio da autonomia privada. O direito das obrigações é o direito dos particulares. É o direito que eu tenho de celebrar um contrato com outrem, por exemplo. É um direito que não está regulado pelo direito público. O artigo 405º do CC aborda precisamente essa liberdade contratual, estando o conteúdo da prestação, evidentemente, dentro dos limites impostos pela lei. Há uma vinculação à juridicidade, atenção. Um contrato que viole a lei injuntiva é nulo. Importa referir que há autonomia privada somente nos direitos disponíveis e jamais nos direitos indisponíveis. Num exemplo extremo: não posso vender o meu corpo a B, suponhamos, através de contrato.
Sendo uma relação jurídica entre particulares, afere-se daí que estão em pé de igualdade. Nem sempre é assim, daí a preocupação do legislador em proteger, de certa forma, a parte mais débil da relação contratual. Tenta-se proteger o contraente mais fraco. Logo, fala-se de uma limitação à autonomia privada, limitação essa que não consta do Código Civil, mas de legislação avulsa, como as Cláusulas Contratuais Gerais.
Outro dos princípios que rege este ramo do direito é o princípio da boa fé. Este princípio dita que se pressupõe - e exige - que as partes adoptem entre elas um comportamento correcto, como dispõe o artigo 227º do CC. A boa fé conhece-se à luz do artigo 612º do CC: tendo em conta o conhecimento que o autor tem do prejuízo causado. Dentro da boa fé, distingue-se a objectiva da subjectiva. Na primeira, há direito à resolução do contrato se houver uma alteração anormal que afecte o conteúdo do negócio jurídico, desde que seja afectado o princípio geral da boa fé (437º, nº 1 CC). A segunda, baseia-se em padrões de razoabilidade, éticos. Não importa tanto o conhecimento efectivo da possibilidade de lesar; importa a potencialidade desse conhecimento.
Por último, resta-me falar do princípio da responsabilidade patrimonial. No âmbito das obrigações, não há responsabilidade pessoal. Essa existe no direito penal, referindo um exemplo. No direito romano, existia. Muitas vezes, entrando o devedor em incumprimento, o credor, passado todo o processo executivo romano, enfim, fazia seu o devedor, como escravo, ou exigia a sua morte. Num cenário de pluralidade de credores, esquartejavam o corpo do pobre devedor e dividiam-no entre si. Bom, isto seria impensável num Estado de Direito. O que há? Responsabilidade patrimonial. Perante as dívidas, respondem os bens de cada um. Como sabemos, ninguém é preso por dívidas, simplesmente. Surge o dever de indemnizar constante no artigo 562º do CC. Com isto pretende-se que seja restaurada a situação que existiria caso não tivesse ocorrido o dano.
O normal que aconteça a uma obrigação é a sua extinção. As obrigações extinguem-se com o seu cumprimento. Tenho de prestar X a B, cumpro, terminou a obrigação.
Muito, mas muito mais haveria a dizer sobre o direito das obrigações. Foi uma brevíssima introdução que espero e desejo útil. No dia-a-dia não temos noção das implicações práticas que este ramo do direito tem nas nossas vidas. A par do que escrevi, quando vamos a uma pastelaria e compramos um bolo, estamos a celebrar um contrato. Teremos consciência disso?
Pena! É o Devedor e o Credor pensarem que só tem Direito a... Esquecem-se que ambos tem a obrigação de... Devedor tem a Obrigação de pagar o Bolo. O Credor que vai receber o dinheiro, tem a Obrigação de o entregar nas condições que o Devedor aceitou fazer esse contrato. Tanto texto para comprar um bolo e celebrar um contrato :D
ResponderEliminarAbraço amigo Mark
Muito bem, Francisco! Estiveste muito bem! :D Mesmo sem teres noção, tocaste num ponto essencial dos direitos reais (a compra do bolo foi realmente à parte do meu texto). Quando compras algo, tens o dever de pagar, claro, e a outra parte tem o dever de entregar. :)
EliminarEssa 'obrigação' que referiste é a do senso comum, mas esconde mais de verdade do que à partida se possa imaginar...
abraço, Francisco, e olha que levas jeito! :P
Boa noite, eu tenho uma dúvida e tomo a liberdade de lhe perguntar visto que me pode ajudar. Uma pessoa deve-me dinheiro e estou a pensar ir a tribunal. disseram que não pode haver penhora porque ela não tem bens. Fica tudo assim? Se não tem bens não pode ir presa? E eu fico a arder com o dinheiro? Obrigado. JC
ResponderEliminarBoa noite, JC.
EliminarVai aí uma grande confusão... Se é credor de uma dívida que não foi paga e se o devedor não tem bens, pode ainda assim haver lugar a penhora. O devedor trabalha, aufere rendimentos? Pois bem, arranje um advogado e avance com o processo. Se houver salário, há lugar a penhora (de uma parte, evidentemente - a pessoa não fica sem salário).
Quanto a ir presa, não, de todo. Seria engraçado. LOL
Espero ter ajudado. :)
não sei se os julgados de paz aqui não entrariam. não fui pesquisar, confesso. bjs.
EliminarDepende da quantia envolvida, Margarida. :)
Eliminarbeijinhos.
flashback: ano lectivo de 1982-1983, aulas nos Gerais da faculdade de direito, com o Rui Alarcão, sebenta do Varela. acho que a única coisa de que me lembro é esta: nemo plus iuris ad alium transferre potest quam ipse habet.
ResponderEliminarOlá Miguel. :)
EliminarOh, o Antunes Varela, um dos 'monstros sagrados' do Direito em Portugal. Clássico!
Essa expressão é mítica também. :D
Olha é caso para dizer...
ResponderEliminarMUITO OBRIGADO, MARK!
:P
Obrigado de quê? :)
EliminarNão me digas que também és credor de uma dívida e eu ajudei com aquele comentário acima? Lol :D
Não tens mesmo consciência da origem e semântica do 'Muito obrigado!' ou 'Obrigado' coloquial do dia-a-dia?
EliminarSignifica que, pela explicação e post, estou em dívida para contigo. Ao dares-me algo eu podia dizer 'estou grato', mas o comum na nossa língua é oferecer como gratidão um compromisso de obrigação para retribuição - daí ficarmos 'obrigados'.
Como deves calcular, desconheço a origem semântica do 'muito obrigado' e do 'obrigado' coloquial. LOL
EliminarEu perguntei "Obrigado de quê?" porque não sabia se te referias ao texto ou a qualquer outro assunto, nomeadamente em relação ao nosso debate no Whynotnow ou até mesmo acerca do meu último comentário no teu espaço.
Aliás, pela minha última frase dá para perceber que entendi esse sentido de gratidão para com algo que tivesse escrito. Não consegui deduzir se era em relação ao que escrevi aqui ou a qualquer comentário noutro lugar.
Precipitas-te muito nas tuas análises. :)
Não percebeste foi o trocadilho.
Eliminar-_-'
ò precipitado.
:P
O meu obrigado era um remate ao teu post.
Só o percebi depois, admito, não foi imediato. :D
EliminarEntão, de nada. Espero ter sido útil. :)
Foste sim.
EliminarFaz muita falta alguém, ou um programa de TV, por ex., que pudesse elucidar-nos enquanto cidadãos comuns dos principios do Direito, das nuances, dos paradigmas, dos conceitos existentes nas leis. Afinal uma parte substancial dos noticiários e das nossas vidas encontra-se intrincada diariamente com estes conceitos que muito mal percebemos. Eu admito que ao ouvir aquele jurista explanando com exactidão os enquadramentos e seus significados aquando do debate sobre a co-adoção, pela primeira vez recuei da minha posição segura - porque ele mostrou que a justiça tem já muitos enquadramentos possíveis para situações diversas, e que não só os desconhecemos como nem sobre eles refletimos, antes de partirmos para o debate, por exemplo, de uma co-adoção por casais do mesmo sexo. Isto a título de exemplo. Ou seja, andamos em guerras ideológicas sem qualquer conhecimento empírico de Direito. E os debates são, assim, pobres e histéricos.
Subscrevo cada palavra.
EliminarA RTP deveria ser a primeira a dar o exemplo. Verdadeiro serviço público faria ao criar um programa que elucidasse os cidadãos acerca das questões legais, pelo menos as mais elementares. É provável que não estejas a par, mas a lei tem de ser clara e redigida de forma a ser perceptível por todos. Actualmente, assistimos ao inverso: a lei é feita para ser entendida apenas por juristas! Os preceitos legais são de tal forma complexos que até para quem lida com a lei diariamente, como eu, se torna difícil.
Sabes, há um conluio de interesses por detrás: a classe política não quer, nunca quis, que o povo conhecesse dos seus direitos. Não foram apenas os 'decretos-leis' que o regime democrático herdou do Estado Novo; a ideia de que um povo informado é perigoso, é algo enraizado nesta cultura política dominante.
Oh, o célebre debate da co-adopção... Marinho Pinto destilando a sua verborreia típica. Vá lá que estava presente a Isabel Moreira, jurista e professora de Direito, para contrabalançar o que aquele senhor dizia.
mais simples é impossível. obrigada :)
ResponderEliminarlidamos com direitos e obrigações diariamente. outro exemplo, eu compro o passe, tenho o direito de andar na fertagus e a fertagus de 'oferecer' um serviço de qualidade, pelo rol de dinheiro que custa. é bom, sim, mas é caro.
bjs.
Tentei ser sucinto e objectivo. :)
EliminarAo comprar o passe da Fertagus, contratas com ela, sim. :) Contratas um serviço que tem de ser devidamente prestado. Pelo que contas, prestam bem, antes isso. :D
beijinhos.
Muito elucidativo e simples. Eu que sou adverso a este tipo de questões, fiquei bastante esclarecido. :)
ResponderEliminarAbraço Mark.
Ainda bem, Arrakis. O objectivo era esse e, pelos vistos, foi atingido. :)
Eliminarabraço. :)
Um dia faço Direito! Não será nos próximos anos, mas lá chegarei!
ResponderEliminarClaro, Inefável (Johnny xD). Está sempre a tempo. Nunca é tarde para voltar a estudar e, quem sabe, tirar uma nova licenciatura. Eu, por exemplo, pretendo tirar História (a minha grande paixão...). Não sei quando, mas irei, certamente. :)
Eliminarabraço.
Muito esclarecedor! E muito mais interessante que as minhas aulas de direito... lol... Verdade seja dita que também não foram muitas... XD
ResponderEliminarAbraço
O Direito exige, sobretudo, muito esforço e muita dedicação, além de se gostar realmente. Como não gosto lá muito, tento compensar nos outros itens. :)
Eliminarabraço e obrigado. :)
Sabes que no meu segundo ano de Económicas tive uma cadeira com este nome e que era a sequência da cadeira de Direito Civil, do 1º.ano. Como o professor dessa cadeira de Direito Civil era o Dias Marques a quem os alunos de Económicas e suponho também os de Direito pois ele era também professor da tua Faculdade, suponho, chamavam "Didi", o professor de "Obrigações" (era assim que abreviávamos o nome da cadeira), era um tipo fisicamente muito especial, parece que o estou a ver, muito alto, magro, careca, com uns óculos muito marcantes, era novo. uns trinta e tais, vestia bem e andava sempre impecável, era chamado de Pelé. Didi e Pelé eram ou tinham sido jogadores da selecção de futebol do Brasil.
ResponderEliminarGostaria muito de saber o nome verdadeiro desse professor...Por acaso gostei da cadeira e passei com uma nota razoável, melhor que a Direito Civil, mas eu não gostava nada do Dias Marques (Didi).
Ainda funciona assim, João. :) Na minha faculdade, Direito das Obrigações vem no 2º ano na sequência de Teoria Geral do Direito Civil, 'cadeira' do 1º ano.
EliminarDias Marques... esse nome não me é estranho, de facto. Irei averiguar. :)
Eu gosto mais agora das disciplinas de direito privado do que na época em que as fiz. LOL 'As fiz', ponto e vírgula; ainda tenho direito privado este ano. Refiro-me aos bastiões sagrados do direito civil. :)