Durante muito tempo, os últimos dias de Agosto desapareciam do calendário no lado paterno da minha família. Uma apatia reinava, misturada num desconforto latente que era visível nos rostos do pai, dos avós, dos tios e de todos os membros que, pela idade e pela consciência da perda, não conseguiam disfarçar o incómodo.
A bisavó, verdadeira matriarca, partiu nos finais de Agosto do longínquo ano de 1997, era eu uma criança pequena. Porém, é fácil recordar-me do seu afecto quando sentia que eu estava com as vias respiratórias inflamadas, perguntando à mãe se já telefonara ao pediatra; das suas carícias no meu cabelo quando, por algum motivo, deixava de lado a bicicleta das duas rodinhas pequeninas de lado depois de percorrer os trilhos do jardim da avó de um lado para o outro; de quando, no meio de uma terrível tormenta de chuva e vento, afastou o medo com os seus braços envelhecidos, pegando-me na pequenina mão com a sua mão cansada e enrugada.
Da sua morte, pouco ou nada resta na minha memória. Um dia de calor, uma tarde entediante, a mãe que recebe uma chamada e que depois pede a uma amiga que me leve para a sua casa. A tenra idade não me permitiu qualquer sofrimento. Lamento não ter chorado a sua partida, pois hoje sei que, acima de tudo, era uma pessoa extraordinariamente dócil e bondosa.
Em 1999, a dois dias de se completarem os dois anos sobre a morte da bisavó, o pai recebe uma chamada no telemóvel. Alguém (que mais tarde vim a saber tratar-se da sua primeira esposa) dá-lhe uma terrível notícia, algo para o qual nenhum progenitor se sente preparado. Um choro repentino assustou-me. A mãe prontamente pediu que fosse para o quarto, mas, manifestando o desrespeito típico de crianças, fiquei a espreitá-los de longe, movido pela curiosidade. O pai chorava copiosamente. Falecera o seu filho mais velho, meu meio-irmão, pouco depois de completar vinte e nove anos.
Vi-o poucas vezes. Duas ou três, salvo erro. Guardo algumas imagens dos parcos momentos que passámos juntos: lembro-me de um afago no meu cabelo, de um sorriso numa festa, da sua altura e nada mais. Umas sombras, pouco nítidas, é tudo o que resta.
Não chegou sequer a entrar na casa dos trinta. Ficou por perto. Esse terá sido um dos motivos que levou à perplexidade dos familiares que lhe eram mais chegados. Deveria ser proibido sujeitar um pai ou uma mãe à morte de um filho. Dizem que é a maior das dores - concluo pela veracidade dessas afirmações.
Na altura da morte de ambos, a mãe não deixou que fosse aos respectivos funerais. Compreendo, aceito e até agradeço as suas sensatas decisões. Sempre fui demasiado impressionável para estar à altura de ver tanta dor e sofrimento. Redimi-me mais tarde, em jovem adulto, com visitas ao jazigo de família. Para alguns não fará sentido; para mim fez bastante. Como se me deslocando, despendendo algum tempo, significasse uma merecida homenagem. Era como algo que desse por eles. Sentia-me bem ao fazê-lo.
Com o tempo, apercebi-me de que o melhor que podia fazer seria lembrar-me deles, não necessariamente da ocasião das suas mortes.
Lembrar-me, tão somente, de que existiram.
Adoro o teu blog e aquilo que escreves.
ResponderEliminarEste é o meu blog novo :) podes seguir? http://desistir-nao-e-falhar.blogspot.pt/
É como eu sempre digo, a vida só terá valido a pena, se formos lembrados após a morte.
ResponderEliminarMark, bonito se recordar de seus familiares mesmo sendo ainda uma criança na época. Eles marcaram você de algum jeito muito especial. Isso que importa verdadeiramente. Bonita homenagem.
ResponderEliminarAbraços!
Ribatejano: Só morremos quando não somos recordados por ninguém, é verdade.
ResponderEliminarTy: Obrigado.
abraço :3
Que bom, Mark reler-te "terapeuticamente". Faz tão bem soltar estes "fantasmas" da nossa mente. E tu, estiveste muito bem.
ResponderEliminarForça.
Um grande abraço
Paulo: Obrigado.
ResponderEliminarabraço grande :3
Mark,
ResponderEliminarDeixo-te um grande abraço de amizade e concordo que não deveria ser permitido a nenhum pai ou nenhuma mãe ver um/a filho/a partir...
Acredito que seja a maior dor de todas...
Não sei se te ajuda em alguma coisa, mas tens duas estrelas no céu que gostam muito de ti :)
Sangue é sangue :)
Forte abraço
Francisco: Obrigado.
ResponderEliminarQuero acreditar que sim, que me observam d'algum lugar. :3
abraço forte!
Mark:
ResponderEliminarÉ tão forte este teu post que me 'obrigaste' a vir aqui deixar-te um abraço.
Como sempre é excelente o modo como nos transportas para a tua narrativa.
Cresces sempre no apreço que tenho por ti.
Qualquer dia volto à blogosfera...
Para já fica um forte abraço.
Pedro: Oh, muito obrigado. :3
ResponderEliminarabraço forte!
É importante lembrarmos de quem já passou pela nossas vidas, mesmo que por poucos momentos. Isso nos ajuda a entender o quanto a vida é um bem precioso, e sermos gratos por compartilhar de experiências com pessoas que, de alguma forma,deixou uma marca da sua passagem aqui na Terra.
ResponderEliminarUm grande abraço do Brasil.
os teus pais foram sensatos naquela altura, eras demasiado pequeno.
ResponderEliminaras recordações da tua bisavó e do teu irmão permanecem, embora desvanecendo-se no tempo, resta sempre algo, um carinho, um sorriso ou um afago.
os outros momentos, os da perda, do choro e do sofrimento, esses ficam para sempre também e, não são raras as vezes que se sobrepõem aos outros.
bjs.
Recordar é viver!
ResponderEliminarCitizen: Não poderia concordar mais contigo.
ResponderEliminarabraço grande :3
Margarida: Não tenhas dúvidas de que guardamos mais facilmente as más memórias às boas.
As imagens que tenho de ambos marcaram-me e, talvez pela idade e pelas suas mortes, dificilmente serão esquecidas. :3
beijinhos :*
O meu reflexo: É verdade. :3
"Conservar algo que possa recordar-te seria admitir que eu pudesse esquecer-te."
ResponderEliminarWilliam Shakespeare
Hughie :333
Horus: Não há mesmo nada a dizer. :)
ResponderEliminarhughie :333