8 de novembro de 2021

A que lado pertences.

   

    Nisto das insónias -durmo sempre mal quando o M. está de plantão- ponho-me a divagar pelo Google, e dei com uma polémica com o Quintino Aires. O psicólogo, ou psicolinguista, como se denomina, fez questão de sublinhar a sua discordância face à comunidade gay, que considera um “gueto”, e às marchas do orgulho. Por isso, viu-se afastado da TVI.

   Não vou criticar o Quintino Aires. Vou procurar alertá-lo para o seu procedimento, porque eu incorri no mesmo. Durante alguns anos, fiz pandilha com os críticos da comunidade gay; considerei-a um gueto. Não gostava das marchas. Considerei-as um espectáculo de mau gosto. Fui, quiçá, mais longe que Quintino Aires: sendo LGBT, defendi a família tradicional, o Deus dos que me discriminaram na infância, adolescência e parte da idade adulta. Fi-lo a tudo, continuando a reconhecer-me como homossexual. Porquê? Nem eu o sei dizer.

   Até que, a determinado momento, procedi a um exercício de introspecção, recuei às minhas memórias mais primitivas e perguntei-me: “Quem és, afinal?” Aquele homem que não se revia na dita comunidade, que diabolizava as marchas, fora um menino delicado, que usava a maquilhagem da mãe e os seus sapatos. Mais, era um homem que não tinha nada que ver com aqueles que defendia, com os seus modelos de família, com as suas orientações políticas e considerações sociais. Apercebi-me a tempo, creio, a onde pertenço.

   O Quintino Aires, ainda que não o reconheça, e está no seu direito, pertence à comunidade LGBT. Foram elas, as travestis e os transexuais, os primeiros a dar a cara pela nossa visibilidade. A cara e o corpo. Sofreram todo o tipo de violência. Os gays também, nas suas marchas reivindicativas, que juntamente com as travestis e transexuais não se escondiam atrás de uma família tradicional e de um bom nome.

    Quintino Aires, com o seu discurso, está a alimentar os mesmos que nos odeiam: a extrema-direita e a direita conservadora. Não se pense que os direitos que a tanto custo conquistamos estão seguros, sedimentados. Foram-nos reconhecidos através de um processo político que levou um longo e prévio debate social. O mesmo processo político que nos reconheceu os vários direitos sociais de que desfrutamos pode, amanhã, ser desencadeado para reverter os nossos logros. Com isto, quero dizer que a luta se faz a cada dia, e que Quintino Aires e outros que partilhem das suas convicções ajudam a fortalecer o discurso dos que não duvidariam um minuto sequer a colocar-nos de novo nos anos negros da discriminação legal e do preconceito social. 

2 comentários:

  1. Se o mundo gay é um gueto, seguramente que muito desse comportamento se deve ao tempo em que a comunidade foi segregada, ridicularizada, rebaixada, sujeita a "bullying" e, em muitos países, criminalizada, como o ainda é hoje - todos o sabemos.
    Consequentemente, a comunidade considera-se fora da habitual, onde se inserem todos os outros, que, ironicamente, se consideram "normais", porque a isso foram levados, claro. E todos nós o sabemos, não vale a pena tentar "cobrir o sol com a peneira".
    Aquilo a que foram obrigados empurraram esta camada da sociedade para um submundo que persiste até hoje, se bem que, em alguns casos, e ao longo do tempo, sobretudo face a novos conceitos sociológicos e psicológicos que se vão estabelecendo, face à luta que a comunidade tem vindo a estabelecer por todo o mundo, os contornos tendem a confundir-se e a fundir-se.
    Não alinho em paradas, ou deixo que me releguem para guetos, é verdade, mas não pelas razões que o senhor que aqui mencionou referiu, ou que o Mark refere que eram as suas anteriormente.
    Tenho a minha posição porque sou um individualista incurável, porque me recuso a pertencer a ajuntamentos, sejam eles de que ordem forem, ainda que por vezes me veja a isso obrigado, pelas normas socialmente estabelecidas, e dou por mim a pertencer a este ou aquele conjunto.
    Nunca consegui pertencer a uma religião, recuso-me a congregar com outros porque não acredito em quaisquer dogmas; na minha profissão não congrego com os restantes membros dela, como é vulgar a maioria fazê-lo; dentro da minha família evito agregar-me a todos os seus membros, sinto-me isolado e até sujeito a um estado depressivo, no meio deles; apesar de gay, não frequento o mundo LGBT (que é um mundo, no qual me movimento mal, se alguma vez o fiz), pois não acredito nas coisas que é necessário fazer para lhes pertencer, no entanto reconheço que têm tido uma importância fundamental no reconhecimento destas orientações pela restante sociedade, e muitas vezes à custa de muito sofrimento, muita exposição e até serem vítimas de perseguição policial, social ou psicológica. Por isso lhes estou grato.
    Também julgo, mas sem certezas (pois nunca me vi nessa situação), que se me visse numa posição de confronto e defesa do conjunto social a cuja orientação sexual me incluo, talvez tivesse uma opção de luta junto de outros. Não costumo ser dos que ficam parados a ver, ou então ligam o telemóvel para filmar, sem mexer uma palha. No entanto, não tenho capacidades de liderança, teria que sentir-me dentro de um movimento para que pudesse agir conjuntamente.

    Não escondo a minha orientação dentro do meu núcleo próximo de amigos e família, no entanto não me sinto obrigado a divulgá-lo aos "quatro ventos", como não sente necessidade de o fazer uma pessoa "dentro da norma". No entanto, no passado, escondi-o cuidadosamente, por sentir que necessitava de aprovação de terceiros.
    Julgo que passamos por estas fases ao longo da vida - e não estou a tentar desculpar-me, mas a constatar um facto.
    Por isso acho interessante este seu escrito, pois sinto que colocou o seu cérebro a funcionar e recusou-se a seguir estereótipos. Um bem haja.
    Sinto que, progressivamente, a situação das pessoas com orientações sexuais que não se conformam com a "norma" irão adaptar-se e ajustar-se ao entorno e esse é o objetivo.
    Quando não for necessário lutar por uma causa, é porque ela deixou de fazer sentido, e isso é um objetivo que se vai instalando nas sociedades atuais, só que a uma velocidade maior que no passado, apesar de pensarmos que ainda falta muito.
    Olho para o mundo em que movimentei e para o de hoje, e dou conta que a mudança foi mesmo notável.
    Hoje em dia dou conta que, muitas vezes, ando na rua de mão dada, ou de braço dado, com a pessoa de quem gosto, ou nos abraçamos quando nos encontramos ou nos despedimos na rua, e isso seria impensável na minha juventude, sob pena de não chegar inteiro a casa, ou então com a minha identidade achincalhada e ridicularizada.
    Continue e felicidades
    Manel

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    1. Olá, Manel.

      Eu, como sempre fui muito delicado, nunca consegui esconder a minha verdade, mas ainda bem que assim o foi. Felizmente, tenho uns pais que nunca me censuraram ou oprimiram; pelo contrário, deixavam-me ser como era. Parecendo que não, ajuda muito a consolidar a personalidade. Por volta dos dez anos, já sabia que sentia atracção por rapazes. Nunca senti o mesmo pelas raparigas.

      Esse meu lado feminino acabou por ceder perante o masculino, sem qualquer intenção da minha parte. Passou-se naturalmente, e nos últimos tempos tenho-o vindo a recuperar com muito gosto e orgulho.

      Essa minha mudança acompanha a sensibilidade política e social, que também mudou. Estou mais consciencializado para os problemas da comunidade LGBT. Reconheço-a como minha, porque aquelas pessoas são iguais a mim. Passámos pelo mesmo, pensamos da mesma forma. Se não sofri preconceito em casa, sofri muito fora da protecção que o lar me conferia. Estar do lado dos que achincalharam foi uma estupidez. Dei-me conta disso.

      Cumprimentos, e muito obrigado pelo seu testemunho.

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