28 de março de 2019

Moçambique.


   O meu pai nasceu em Moçambique, no final dos anos quarenta do século passado, na colónia de Moçambique, ainda antes da revisão constitucional de 1951 que tornou aquele território numa província ultramarina. A visão estratégica de Oliveira Salazar havia mudado. Com a nova ordem mundial estabelecida após o término da Segunda Grande Guerra, as duas superpotências que emergiram do conflito, EUA e URSS, bem assim como a recém-criada ONU, com objectivos diferentes, passaram a ver com maus olhos o colonialismo europeu. Salazar não cedeu um milímetro, alterando apenas o estatuto e promovendo uma rápida assimilação, tanto quanto possível.

  Foi já no início do período convulso que o meu pai veio ao mundo, ainda longe dos horrores da guerra, que nunca veria, na sua Lourenço Marques. O conflito, sobretudo a norte de Moçambique, em Cabo Delgado, começou em 1964. Dois anos depois, já adolescente, em 1966, e temendo os horrores da guerra, os meus avós e o meu pai regressaram, deixando quase tudo o que tinham para trás. Enfim, uma história igual à de tantos portugueses. Não foram retornados, é certo, e terá pesado mais o medo da minha avó, hipocondríaca, de morrer sem assistência médica adequada naqueles confins do que o  conflito armado. A minha avó ainda é viva. Completará 91 anos em Junho.


  O meu pai perdeu o contacto directo com aquela terra. Anos depois, por portas e travessas, conseguiu a nacionalidade. Foi uma conquista para si. Como forma de reclamar algo de que se viu expropriado. Quando falamos em independência e em direito à autodeterminação, esquecemo-nos dos moçambicanos brancos que perderam a ligação efectiva com a terra. Efectiva que se tornou afectiva, em muitos casos. No caso do meu pai, não foi assim. As memórias mantêm-se vivas. Foram dezassete anos. Dezassete anos iniciais, que abarcam a infância e a adolescência. Nada de despiciendo, portanto.

  O ciclone que devastou a Beira teve um efeito extremamente negativo no meu pai, como o vêm tendo todas as tragédias que assolam Moçambique. À independência, seguiu-se a guerra civil, a fome, a epidemia de HIV e de outras enfermidades pelo meio… Os moçambicanos são sofridos. Um povo que não tem sido bafejado pela sorte. Um povo quase esquecido por Deus. Figura, e continuará a figurar, infelizmente, como um dos mais pobres do mundo. E por se falar em pobreza, há atitudes de um altruísmo comovente: a Guiné-Bissau, há dias, anunciou que iria ajudar Moçambique com noventa mil euros. Um país também com inúmeros problemas estruturais. Uma ajuda verdadeiramente desinteressada, fundada apenas nos laços históricos que unem os dois países. A Guiné deu uma lição ao mundo dito civilizado. Portugal, claro está, disponibilizou-se a ajudar, enviando militares. Fora estes dois casos lógicos, vindos do seio da CPLP, nada se ouve. O mundo vira a cara para o lado. Faz como se nada fosse.

   Na minha faculdade, há uma recolha de mantimentos para os moçambicanos. No átrio principal, pede-se que cada um, dentro das suas possibilidades, colabore com produtos básicos de alimentação e higiene e algumas roupas. Nada de dinheiro. Alguém tratará de fazer chegar o que resultar da angariação aos moçambicanos. Mui meritório da parte de quem propôs a ideia. Portugal, aqui, e os portugueses, em geral, têm de ocupar lugar cimeiro e dianteiro na ajuda. Sem querer entrar em juízos de mérito sobre a independência, e ainda menos na política, os nossos povos estarão perpetuamente ligados. Um vínculo indefectível, que em momentos como este mostra o seu fulgor.

8 comentários:

  1. Não ajuda em nada, o Orgulho Negro que se manifeste e a CM de Pedrogão

    Não acredito que nada que eu possa dar, lá chegue...

    É o meu sentimento

    Tenho pena das pessoas sofridas, mas o Planeta mostra quem manda

    Abraço

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    1. Não me parece plausível que queiram ficar com comida e mantas. Francisco, não sejas assim…

      Um abraço.

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  2. Cade Trump e Bolsonaro para enviar ajuda humanitária? AHH esqueci em Moçambique NÃO tem petróleo como na Venezuela. Parabéns a Portugal e os portugueses por estarem ajudando!
    Nick

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    1. Por acaso, o Trump até mandou ajuda, e o Bolsonaro disponibilizou-se para o fazer. Eu referi que a comunidade internacional não quer saber porque não vejo uma forte mobilização internacional. As ajudas têm surgido.

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  3. Sabe, infelizmente os moçambicanos, à semelhança de outros povos mártires, parecem que nasceram sob uma péssima estrela. Apesar da beleza paradisíaca do país, esta é enganadora, pois a vida não é fácil.
    Durante o tempo que vivi em Moçambique nunca assisti a nenhuma tragédia desta magnitude, mas tive ocasião de passar por situações muito complicadas, quer derivadas à falta de água, como à sua abundância letal. Lembro-me de ter ficado algumas vezes isolado durante semanas, e uma vez ficámos a viver em cima do telhado até as águas baixarem, o que não levou muito tempo, é verdade, mas o pavor era imenso ... comia-se o que havia, e não havia muito, mas o problema maior era a água potável.
    Uma vez, quando, descuidado, e durante um período de seca severa, bebi água que não era proveniente do grande depósito colonial, de fabrico inglês, equipado com filtro interior, que vivia sobre uma banca na cozinha, levei umas quantas palmadas, uns quantos berros e por pouco não fui esbofeteado, pois afinal trata-se da diferença entre a vida e morte. Quando se vive no interior do país, como me aconteceu durante vários anos, pois o meu pai era colocado onde calhava, e era necessário, e acabámos por ficar a habitar num aglomerado de casas nas margens do rio Limpopo, a muitas centenas de quilómetros de qualquer centro com hospital ou centro de saúde, ficar-se doente de bilharziose (esquistossomose), como ficou o meu pai, diarreia infecciosa (como uma vez apanhei eu em Marrocos) ou cólera, implica uma viagem por caminhos intransitáveis que demoram demasiado tempo, o qual se traduz em doenças muito graves ou mesmo morte.
    Viver nestes países requer uma resiliência muito grande, pois acabam por sobreviver os mais fortes, e, se se adicionar a falta de apoio ou ajuda, venha ela donde vier, então a situação torna-se insustentável.
    Sobressaem os olhos, enormes, das crianças e as caras quase apáticas e esquálidas da população, como se tudo fosse um karma, de quem já se habituou a viver do nada e com nada, porque nada existe e a morte está ao virar da esquina.
    Muitas vezes é uma sorte quando se morre logo, pois o sofrimento sequente é muito pior!
    Fico sempre muito deprimido quando reparo que é sobre os mais pobres que recaem os piores tormentos.
    Manel

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    1. Olá, Manel.

      O meu pai sempre me falou nas trovoadas ensurdecedoras, que iluminavam o céu, e, claro está, teve uma hepatite A devido à ingestão de água imprópria. Mas é incrível em como todos vocês se recordam daqueles tempos com carinho.

      O meu pai cresceu em Lourenço Marques, mas teve umas incursões pelo interior. Chegou a ir a caçadas com o meu avó e os nativos.

      O seu penúltimo parágrafo é assombroso. Uma descrição fiel dos tormentos pelos quais aquele povo passa.

      Cumprimentos, Manel.

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