Em primeiro lugar, quero justificar, por assim dizer, esta ausência. Não costumo ficar oito dias sem nada escrever. As aulas começaram. Não tenho feito nada mais do que: levantar-me, almoçar, comprar livros, assistir às aulas e estudar. Só em livros, já vão umas dezenas de euros.
Esta sexta, aproveitando que ainda não tive aulas práticas de CAT - Contencioso Administrativo e Tributário - fui ao cinema, ao El Corte Inglés, ver um filme há muito aguardado: Snu. Claro que saberão a quem me refiro. À mulher de Francisco Sá Carneiro, primeiro-ministro de Portugal. Mulher, não esposa. Aliás, Sá Carneiro e Snu Abecassis, de seu nome verdadeiro Ebba Merete Seidenfaden, protagonizaram dos romances mais escandalosamente comentados à época, quatro anos após o 25 de Abril de 1974. Nas palavras de Natália Correia, que vemos, no filme, na pele da polémica e irreverente escritora e poeta (não poetisa, que Correia era feminista), com os seus célebres discursos e declamações d'O Botequim da Graça, Sá Carneiro e Snu Abecassis foram a segunda maior revolução ocorrida em Portugal após a de 25 de Abril.
Se há crítica que lhe possamos fazer, é uma: tratando-se de um filme, aparentemente, sobre Snu, a verdade é que é sobre Sá Carneiro, porque a primeira queda relativamente eclipsada por um homem da envergadura do líder do PPD. Não sei até que ponto a realizadora, Patrícia Sequeira, o terá feito deliberadamente, por qualquer correspondência com a realidade. Ainda assim, não me será claro que Snu, esperta, em sueco, a alcunha que a avó lhe dera, se resignasse a um papel subalterno. Veio para Portugal em 1962. Encontrou um país atrasadíssimo, « o mais atrasado » que conhecera - palavras suas. Fundou as publicações Dom Quixote e deu algum trabalho aos censores, o que vemos logo na cena inicial, que não queriam cá as modernices do norte da Europa. Já a Sá Carneiro, não conseguiu Snu resistir muito tempo. Ele e os seus encantos conseguiram amolecer uma aparentemente intransponível muralha dinamarquesa.
A realizadora quis mostrar esse atraso social e cultural. Os pais de Snu divorciaram-se e mantiveram a amizade. O divórcio era uma realidade banal na sociedade dinamarquesa. Por cá, a esposa legítima de Sá Carneiro ia ter com os cardeais para que não consentissem, de forma alguma, com o divórcio. Temos essas duas curiosas perspectivas, a social-democrata do norte da Europa, que unira Sá Carneiro a Snu nos ideais, e a devota sociedade portuguesa da década de 70. Ao mesmo tempo, Patrícia Sequeira foi inteligente em não nos permitir perder o fio à meada: volta e meia, alterna entre o actor, Pedro Almendra, e o próprio do Sá Carneiro, em comícios e discursos. Sá Carneiro que era de uma rectidão de carácter inabalável. Negou-se a alterar a lei do divórcio, o que lhe foi aconselhado, para que ninguém pensasse que daí iria retirar vantagens pessoais, ou seja, o seu próprio divórcio. Isso custou-lhe, como se sabe, a não oficialização da relação com Abecassis, interrompida na noite de 4 de Dezembro de 1980.
Snu e Sá Carneiro passaram um mau bocado. Mário Soares terá atraiçoado vilmente a amizade da primeira. A relação extranconjugal do primeiro-ministro também foi fonte de alguns engulhos entre este e o então Presidente da República, o General Ramalho Eanes, e a sua mulher, Manuela Eanes, que publicamente não concordavam com a situação de ambos, de Snu e de Sá Carneiro. Tudo isto podemos ver brilhantemente retratado no filme. Aliás, a actriz que faz de Manuela Eanes tem uma aparição fugaz, mas marcante.
Por se falar em actores, eu destacaria dois, melhor dizendo, duas: Inês Castel-Branco, claro, a nossa Snu, incrível, e Ana Nave, que encarna Natália Correia. Castel-Branco finge exemplarmente não dominar bem o idioma português. Imagine-se a dificuldade. Nave, por sua vez, brilha enquanto Natália Correia, a espevitada contestatária.
É um filme muitíssimo bom, que aconselho, como não poderia deixar de ser. Sá Carneiro, sobretudo, continua a ser uma figura enigmática, quarenta anos após a sua morte. Muito se fala sobre o que teria sido Portugal caso não tivesse morrido. É futurologia, é certo, legítima, quando sabemos o que se lhe seguiu, a podridão da classe política até então, e devido à qual ainda hoje nos ressentimos. E Snu, claro, cuja morte abrupta impediu de continuar a colaborar para um Portugal mais próximo da sua terra-natal, como editora, com livros revolucionários para a sociedade portuguesa, ou, quiçá, numa carreira política, encorajada por Sá Carneiro. Nunca o saberemos.
Fiquei curioso
ResponderEliminarAbraço
Outro, amigo.
EliminarSuas ausências são sempre sentidas. Melhoraste de vez?
ResponderEliminarBeijão
Sim, melhorei, meu amigo. Obrigado!
Eliminarum beijão.