16 de setembro de 2018

Sauvage.


   Se, ontem, a sessão inaugural correu mal, este Sauvage arrebatou-me completamente, no segundo dia de Queer 22. Uma longa fantástica, duríssima, de uma crueza que nos deixa um misto de sentimentos: pena, desolação, raiva. A vida do Léo, o prostituto de rua, trouxe-me à memória um livro que li em miúdo, mas de uma densidade talvez não aconselhada para um décimo sétimo ano de vida: Puta de Prisão, escrito por Isabel do Carmo, em co-autoria com outras senhoras, quando todas estiveram detidas com prostitutas de rua portuguesas. Tudo isto antes da descriminalização final da prostituição, em 1982, ano em que o Código Penal deixou de a prever. Elas eram presas por outros delitos, claro, ligados à política; as suas companheiras, mulheres desgraçadas, que faziam as suas vidas em ruinhas e ruelas, deitando-se com todo o tipo de homens, num quadro de degradação inenarrável.

   Encontrarão o mesmo em Sauvage, com a diferença de que estarão perante um rapaz de 22 anos que se deita com homens. Destruído física e psicologicamente, a morrer tuberculoso, arrasta-se numa existência subhumana a troco de dinheiro para sustentar os seus vícios. Não se pense que é um criminoso, não. Aquele rapaz, malgrado tudo o que de mau lhe sucedeu, e antevemos um passado difícil, que nunca é desvendado, tem os seus princípios. É de uma candura impressionante e impressionável, como se houvesse um núcleo dentro de cada um de nós absolutamente blindado a todo o tipo de erosão externa.




  Atreve-se a viver como quer, como um condenado pela vida. Vida que já pouco lhe diz. A sua inocência chega a ser enternecedora. Com os companheiros de rua, sujeita-se aos maiores riscos. Apaixona-se. Implora carinho, abandonado que está por uma família que nunca conhecemos. Busca protecção, quiçá um abraço, que pode vir inesperadamente de uma médica que lhe cura as maleitas, que já são várias para a sua idade.

  Félix Maritaud tem em Léo um grande papel da sua carreira, que desconheço qual seja. Acompanhando-o, o realizador, Camille Vidal-Naquet, estreia-se em grande nas longas-metragens. Este Sauvage dói-nos por dentro. Invade-nos a sensibilidade com o retrato real de um mundo mau, miserável e impiedoso, onde a lascívia ganha à humanidade. Os lampejos de esperança surgem de gestos de altruísmo entre os rapazes. Às vezes, ou na maioria das vezes, mais dá quem menos tem.

4 comentários:

  1. O final poderia ter sido diferente, digo eu...

    XD

    Abraço amigo

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    1. Eu creio que é isso que o torna especial.

      um abraço, amigo.

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  2. Um filme que desejo assistir.
    Forte isto: "É de uma candura impressionante e impressionável, como se houvesse um núcleo dentro de cada um de nós absolutamente blindado a todo o tipo de erosão externa."
    Inteiramente meu estilo de filme.

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