21 de setembro de 2018

Marilyn.


   Antes de vos falar do filme a que assisti, hoje, no Queer, deixem-me abrir aqui um pequeno parêntesis para o meu direito de resposta. Não que já não devesse estar habituado a posts que me dedicam, mas, de facto, tantas manifestações de amor deixam-me comovido. Ontem, aqui na blogo, tive outra. Então, resumindo-vos, um tipo comprou uns livros, e eu, que até já tinha um deles em inglês, e na brincadeira, disse que tinha ficado com inveja dos dele. Uma piada minha, um desabafo sem qualquer significado. Ora, a criatura acreditou e tratou de me visar na sua última publicação. Se fosse inteligente, teria ficado satisfeita por terem “inveja” dela, ou, no máximo, rir-se-ia disso. Não. Ficou empertigada. Vamos lá então esclarecer: primeiro, não tenho inveja de ninguém. Segundo, jamais teria inveja de um tipo que, e podem confirmar tudo no blogue em questão, tem uma vida sexual do mais promíscua que há, gosta de ser agredido por homens que têm idade para ser seus pais, diz que é feio e escanzelado e mais um sem-número de disparates que leio para me rir. A ter inveja, não seria certamente de um fulano destes, que, a par de tudo o que citei, ainda garante que não gosta de mim. Sem me conhecer. Não admira que não me conheça. Sendo tão deprimente, não vai mesmo ter esse prazer.

   Dito isto, vamos ao que interessa e ao que vos traz aqui. Marilyn foi o filme escolhido para este sexto dia de Queer 22, e um dos melhores da vigésima segunda edição do certame. Um filme ambientado na Argentina rural, com um toque de western, numa família de pequenos criadores de cabeças de gado. Uma existência árdua, como verão, que raro é o dia em que não desaparece uma vaca. E é neste contexto que vive Marcos, interpretado por Walter Rodríguez, um miúdo especial, que gosta de se vestir com roupas femininas às escondidas. No meio que o envolve, é vítima de todo o tipo de agressões: verbais, físicas e sexuais. A morte do pai piora a situação económica da família, que também não o poupa a abusos. A mãe e o irmão dissimulam mal desconhecer a sua verdadeira identidade de género.



   É no Carnaval que Marcos se pode expressar. No hedonismo que nos liberta, traja-se a rigor e atiça o desejo dos rapazes da terra. A violação, porém, retira, do filme, a alegria da festa e o brilho do olhar de Marcos. A paixoneta que vive, no novo bairro, não sobrevive à pressão da mãe, que não se compadece do sofrimento do filho. O desespero e o sentimento de abandono não poderiam conduzir a bons resultados. O final é extremamente impactante. Baseado em factos reais.

  O realizador, que esteve no Queer e que respondeu às perguntas que lhe foram feitas pela plateia, jogou com o factor imprevisibilidade. Marcos é aquele rapaz que arde de desejo por homens - na cena da violação, a amiga parte em silêncio, e Marcos, no fundo, quer ficar ali, sem saber, claro está, que iria ser forçado. Um menino que mal consegue pegar numa arma, no qual não se vislumbra qualquer tendência agressiva.

  Quer-me parecer que o desfecho também foi aquele porque o pai morreu, e o pai seria mais amigo de Marcos; se tanto, afectivamente mais próximo, carinhoso e preocupado com o seu bem-estar, porque  a mãe, bem interpretada por Catalina Saavedra, era rigorosa na educação dos filhos, ou pelo menos na de Marcos, que ela sabe diferente do irmão mais velho. Não que não o amasse, que o amava, não suportando a ideia de o saber assim, delicado, feminino.

  Não podemos justificar a ruralidade com a intolerância, dado que o namoradinho de Marcos, Federico, vive a sua sexualidade sem a esconder, inclusivamente perto dos pais. Podemos, sim, em contrapartida, imaginar que alguns dos rapazes que atacaram Marcos seriam, eles mesmos, gays, mais do que no armário; verdadeiramente enfiados em sótãos e arrecadações.

   Um retrato cruel da vivência LGBT em ambientes rurais da América Latina. Sem liberdade, é certo (se virem o filme, entenderão o porquê), mas o Marcos é, finalmente, a Marilyn.
    Amanhã, que é como quem diz, hoje, haverá mais Queer.

4 comentários:

  1. Não quero aqui arvorar em mais velho, nem parecer que o estou a tratar com condescendência. Se parecer que é este o caso peço-lhe desde já desculpa, mas não é de todo o meu objetivo, tanto mais que não faço nem ideia a quem se refere no seu comentário. E, afinal, ao longo destes anos que o leio, acabei por desenvolver alguma admiração por si!
    Claro que tem todo o direito de resposta, mas também sei que tem uma qualidade moral (e estou seguro que o Mark sabe isso), que lhe permite ignorar pessoas cujo intento é menosprezar ou desvalorizar.
    O facto das pessoas terem a vida que quiserem, é um direito delas, desde que não prejudiquem terceiros, mas quando cometem o erro de se incomodar por ninharias ridículas, quando são completamente falhas de sentido de humor (sempre pensei que a falta de humor é uma das piores falhas que se pode encontrar numa pessoa) e, com isso, ofenderem outros que não foram ofensivos, isso é algo que significa que essas pessoas estão rodeadas de negatividades, rodeadas por sentimentos inúteis, possivelmente com vidas ocas e, pior, talvez se sintam perseguidas e infelizes (repito que não faço ideia a quem refere no seu comentário, deduzo no entanto que poderá ser alguém com problemas importantes por resolver).
    No conjunto, creio que já é sofrimento suficiente! E o pior é que, muitas vezes, essas pessoas nem sequer se dão conta, e quando isso acontece já será tarde demais!
    Se, no topo de tudo, as votar ao silêncio, como se não existissem, que, afinal, não existem mesmo no seu mundo, então ...

    Mais uma vez lhe peço desculpa se com todo este arrazoado parecer que estou a ser simplesmente condescendente, mas acredito que está bem acima das opiniões de pessoas que se encontram em locais que, se elas se dessem conta, não quereriam mesmo estar. Talvez já seja triste suficiente lá se encontrarem, que sei eu?! Poderei enganar-me, claro!
    Talvez seja preferível não editar este meu comentário, talvez seja mesmo inconveniente.
    Um resto de boa semana
    Manel

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    1. Manel, pelo contrário; gosto imenso dos seus comentários, já lho disse, e estranhava não ter palavras suas há uma imensidão de dias. Pensei: "Bom, o Manel não deve gostar do cinema que vejo, e por isso não diz nada".

      Tem toda a razão. Ainda me sujeito a responder a este tipo de gente. Ser-me-ia mais fácil ignorar, mas, às vezes, não consigo ser superior. Custa-me, de certo modo, encher o blogue com estas tricas, estas energias más, mas fico completamente possesso com tanta estupidez. Creio que, no fundo, e o Manel não levará a mal, têm é inveja de mim.

      Não é nada inconveniente. Eu peço-lhe desculpa por não ter publicado nada que seja mais do seu agrado. Com as aulas e com a falta de assunto, acabo por me dedicar mais ao cinema. O estado actual da blogosfera também me desanima. Sei que tenho quem me leia, mas perdi algum fulgor.

      Um resto de boa semana,
      Cumprimentos.

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  2. Digamos que a última vez que assisti a um conjunto de filmes sob a temática gay foi há mesmo muitos anos (esqueci quantos), nunca mais o fiz até hoje, apesar de os ver ocasionalmente.
    Nessa última vez que os vi, andava o público português entusiasmado com Derek Jarman, e na altura assisti aos Sebastiane (de 1976) e Caravaggio (de 1986), ambos filmes que não me agradaram de todo, e os restantes, que confesso não terem sido muitos, foram filmes extraordinariamente depressivos e desagradáveis por várias razões.
    Estava na altura completamente apaixonado por um alemão que, por milagre, tinha encontrado no momento certo da minha vida, em Barcelona, e vivíamos uma relação fantástica, que durou muitos e muitos anos. Não queria saber de coisas deprimentes! E éramos monogâmicos, pelo que as histórias de grandes orgias e situações de muitos parceiros não tinham nada a ver connosco, nem tivemos sequer curiosidade sobre o assunto.
    Descobri posteriormente que existiam filmes sobre a temática que considerei bem mais interessantes.
    Mas confesso que não fiquei fã, e cinema que retrata a problemática da SIDA, pura e simplesmente me deprime, visto que vivi de muito próximo, em direto, e na totalidade todo esse processo.
    Vivi no terror da doença, deixei a minha vida sexual toda em suspenso durante uma quantidade de anos, com receio de contágio, claro, pois só num período relativamente recente é que esta doença se tornou crónica (é crónica nos países mais avançados, pois no resto do mundo menos desenvolvido continua a ser fatal), pois era mortal e de uma forma catastrófica para muitos dos que me rodearam, inclusive um dos meus companheiros.
    Vivi todo esse período de muito próximo, demasiado próximo para o meu gosto.
    Fiz algum trabalho de voluntariado com doentes, e isso, não me destruindo psicologicamente, afetou-me seriamente.
    Assisti ao desaparecimento de amigos e conhecidos que acompanhava, e que foram cobaias das novas drogas que iam aparecendo - os coquetéis formados por uma quantidade aflitiva de fármacos, tomados diariamente - que, em vez de curar, pareceu-me que matavam mais rápido, e no meio de agonias pouco agradáveis de assistir.
    Hoje em dia evito cuidadosamente ver filmes em que a temática é abordada, pois tudo por onde passei vem à tona, e não quero mais repetir essa fase da minha vida. É passado e quero que lá continue.
    Não foi nada fácil para a minha geração, e nesta presente só o é mais nos países do 1º mundo, pois nos outros ... prefiro não pensar na mortandade que continua a causar - li algures, não estou certo que assim seja, mas a SIDA parece que foi uma das doenças com maior índice de mortalidade, só suplantada pela tuberculose, creio.
    E a vida das pessoas com esta orientação continua a ser criminalizada em muitos países do mundo, e, mesmo nos ditos civilizados, existe uma forma de "bullying", camuflado ou não, que continua a afligir a vida de muitas pessoas, sobretudo jovens, altura da vida em que são, e estão, mais vulneráveis.
    Não me esqueço que a homossexualidade só foi descriminalizada na Inglaterra em 1967, creio eu, em 1980 na Escócia e 1982 na Irlanda do Norte e em Portugal!!!!! E trata-se da Europa!!!!!
    Não admira que as histórias contadas no cinema estejam cheias de situações deprimentes, pelo que prefiro evitar vê-las, pois passei por lá, sei como foi, e vivi-o em primeira mão.
    Mas creio que todas estas mostras são importantes para a educação e entretenimento das novas, ou velhas, gerações, e oxalá que tais filmes sejam concorridos e apelativos, para não afastar os públicos.
    Eu prefiro manter-me afastado, se bem que, de vez em quando, veja o meu filme (sobretudo com final feliz, que nestas coisas, faço como a avestruz e enterro a cabeça na areia!), mas sem sair de casa :-)

    Mais uma vez, desejo-lhe boas semanas de aulas, pois parece-me que a situação de regressar ao ensino o entusiasma. Fico encantado com o facto
    Manel

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    1. O HIV / SIDA é um enorme flagelo. Os primeiros coquetéis só surgiram em meados dos anos 90, e eram drogas poderosíssimas. Até lá, morreram milhões. Era uma sentença de morte a ser cumprida em meses. Aos seropositivos, restava morrer, isto quando já se sabia do que morriam. O Manel deve conhecer o cantor Klaus Nomi, que misturava a ópera e a pop. Foi das primeiras vítimas a morrer, em 1983. O relato do amigo, único, que o acompanhou nas últimas horas, é assustador. Hoje em dia, tudo mudou, mas mesmo assim há um enorme estigma social.

      Repare, Manel: a SIDA nem é uma doença; é uma síndrome. A tuberculose é que mata, justamente, muitos doentes de SIDA, visto que já não possuem defesas suficientes no organismo.

      A monogamia é sempre, permita-me, um "pau de dois bicos"; nós sabemos que o somos, no entanto não podemos confiar a nossa saúde em mãos alheias. Cabe-nos zelar por ela. Ainda bem que tudo lhe correu… bem.

      São filmes deprimentes, sim, que nos mostram a realidade daqueles rapazes, naqueles anos.

      Sim, a homossexualidade deixou de estar prevista no Código Penal em 1982, exactamente o ano da elaboração do código; todavia, os actos homossexuais com adolescentes, criminalizados, tinham previsão legal distinta dos actos sexuais com adolescentes, o que motivou a uma pronúncia do Tribunal Constitucional pela sua desconformidade com a Lei Fundamental. O legislador fazia impender sobre o acto homossexual com adolescentes maior gravidade, talvez amparando-se na censura social.

      Obrigado pelas dicas dos filmes. Implicitamente, deixou-mas. :)


      Em relação às aulas, muito obrigado! Será o tema da próxima publicação.

      Cumprimentos, Manel.

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