7 de janeiro de 2017

Mário Soares (1924 - 2017).


     Este será um dos obituários mais dolorosos. Faleceu Mário Soares. Todos contávamos com a sua partida, cedo ou tarde, pela idade e pelo quadro clínico melindroso. Da minha parte, pelas notícias que nos chegavam da família, dando conta de uma estabilização dos sinais vitais, não tendo sido necessário recorrer a qualquer suporte artificial, julguei que a recuperação poderia dar-se - fui um crítico às prematuras crónicas de homenagem e de despedida. Conquanto tivesse exacta percepção do risco que corria, acreditei até ao fim. Fui tomado por um pesar, que de resto não dissimulo, ao saber que nos havia deixado esta tarde.

     Todas as nações têm as suas figuras de proa. Mário Soares, pela sua militância política desde cedo, pelo veemente oposicionismo ao Estado Novo de Oliveira Salazar, que lhe valeu a prisão, penas físicas, a deportação e, por último, o compulsivo exílio, posiciona-se em lugar cimeiro quando é hora de evocar uma individualidade que desperte do colectivo nacional. Após o 25 de Abril, desempenhou os mais altos cargos do poder, enquanto ministro, primeiro-ministro e presidente da República. Esteve presente em momentos decisivos para o país, seja no conturbado processo de descolonização - onde, mais tarde, reconheceria terem sido cometidos erros - seja nos trâmites que envolveram a negociação com as instâncias comunitárias, que culminariam na adesão à então Comunidade Económica Europeia, ou nas sucessivas crises financeiras dos primeiros governos que liderou, nas quais duas delas levariam à intervenção do Fundo Monetário Internacional.

      Um combatente pela Liberdade, que sabia ser esse o caminho. O seu papel no PREC foi determinante, evitando-se a demanda à extrema-esquerda e a um regime ditatorial de inspiração soviética. Um homem que não temia o diálogo e o combate político (com 80 anos, sujeitou-se a um acto eleitoral). Em 1991, aquando da sua eleição para o segundo mandato à frente da Presidência da República, venceu por uma margem expressa e inequívoca, confirmando-se os índices da sua popularidade, certamente granjeados pela familiaridade no seu trato com as pessoas, reflectido nas bem conhecidas "presidências abertas". A longeva carreira política, desde os anos 40  até 2006, quando concorreu pela terceira vez à chefia de Estado, tornam-no na personalidade mais marcante da última metade do século XX, obreiro da democracia portuguesa, um dos pais fundadores do regime constitucional emanado da Revolução de '74.

      O Governou decretou três dias de luto nacional. Mário Soares terá um funeral com honras de Estado. Soube, desde o início, que esta seria a atitude que António Costa iria tomar. Todos os tributos que lhe possamos prestar não expressarão o justo agradecimento pelo muito que lhe devemos. Os grandes homens distinguem-se por feitos concretos, e só os que não têm a coragem e a firmeza em tomar decisões controversas conseguem lograr a trivial consensualidade. Recordá-lo-ei pelo sorriso bonacheirão, pelo estilo informal e cordial, pelo humor, pelas convicções ideológicas e pela sua assaz perspicácia e resistência.
      Diria ainda que morreu o mais internacional dos políticos portugueses, amigo de históricos como Olof Palme ou Mitterrand. Com ou sem o socialismo na gaveta, Soares soube munir-se do seu apurado faro político, negociando com vista a salvaguardar a paz nos conturbados tempos pós-revolucionários, encaminhando Portugal para a Europa comunitária e redimindo-nos assim de décadas de atraso social.

       O sentimento de orfandade é inevitável. Perdemos uma referência histórica de inestimável valor, o primeiro Presidente civil eleito democraticamente, e o que me provoca o maior desalento é saber que não mais será possível reunir todos os chefes de Estado que recolheram a aprovação do povo português nas urnas.
        Associar-me-ei, por imperativo de consciência, às cerimónias públicas fúnebres de segunda-feira, nos Jerónimos.

15 comentários:

  1. Revejo-me em todas e cada uma das tuas palavras.
    E mais não consigo dizer.
    Estou bem triste.
    Um grande abraço
    P.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Estou profundamente consternado com a sua partida, e é bem verdade que nunca estamos preparados para uma morte.

      um grande abraço.

      Eliminar
  2. Ter sido presidente, deverá ter todas as honras de Estado e creio que deverá ir para o Panteão.

    Lamento não partilhar da tua opinião, mas não poderia de te deixar um abraço num momento difícil como este para ti e para muitos portugueses.

    Paz à sua alma

    Grande abraço amigo

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. As "honras de Panteão", nomeadamente, não se merecem apenas pelo exercício do cargo de Presidente da República. As honras fúnebres de Estado, sim.

      Em qualquer caso, sim, por acaso. Mário Soares, pelo seu incontornável papel na instauração de um regime democrático em Portugal e na sua consolidação, bem como pelo seu activismo político anti-ditadura, em respeito pelos prazos estabelecidos em lei, merece ser sepultado no Panteão Nacional.

      Obrigado, amigo.

      um grande abraço.

      Eliminar
  3. Definitivamente uma perda inestimável. Ele me faz lembrar Tancredo Neves aqui no Brasil. Aliás, os dois eram grandes amigos.

    Beijão e um feliz 2017.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Eram, efectivamente. Foi um histórico líder português e europeu.

      um grande abraço, amigo, e votos de um excelente 2017.

      Eliminar
  4. Engraçado como hoje recordei palavras do actual PR quanto à educação sexual nas escolas. Antes de mais acho que deveriam ensinar às crianças o porquê de hoje se poder falar desse assunto abertamente, sem tabus. Foram pessoas como o Mário Soares que nos deram essa oportunidade, que lutaram pela Liberdade que tanto evocamos actualmente, sofrendo por isso vicissitudes várias, físicas, psicológicas, familiares.

    Falar de Mário Soares é quase fundir o homem com o país.

    Bom texto Mark... como sempre.


    PS: A questão do luto nacional é uma imposição que está prevista na Lei de Precedências do Protocolo do Estado Português (lei 40/2006). É claro que neste caso seria sempre declarado.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Não entendi a pertinência desse post scriptum. A prerrogativa pertence ao Governo, e a extensão dos dias de luto também. E o que eu referi foi que o Governo decretou três dias de luto. Nada obrigaria a ser três dias. Se querias referir-te às "honras de Panteão", a que o Francisco aludiu, não tem nada que ver.

      Obrigado, Ribatejano. :)

      Eliminar
    2. Faltou algo ao meu comentário, em virtude de estar na rua: quando referi que tinha a certeza de que esta seria a atitude que António Costa tomaria, referia-me aos três dias, e não apenas a um, bem como a toda a solenidade das cerimónias, que não seria possível em apenas um dia e que não consta em nenhum diploma. Esclarecido? Espero que sim. Convém não fazer deduções levianas. Fica para futuro.

      Eliminar
    3. A palavra "imposição" pode ter sido mas aplicada, mas efectivamente está previsto em lei o luto nacional por morte dos antigos presidentes. E concordei contigo quanto à declaração por parte de António Costa, nunca duvidei disso (por acaso tinha escrito algo sobre o número de dias mas acabei por apagar, não faria sentido). E acrescento ainda que há algum tempo falei entre amigos que qualquer antigo presidente deveria ter "direito" à declaração de luto nacional, mesmo sem saber que tal estava legislado.

      Eliminar
    4. Que está previsto na lei, é público.

      Eliminar
  5. Estive na dúvida em escrever este comentário, pois, de certa forma não tem grande sentido, vai contra a maré, e talvez dê de mim uma opinião mesquinha, mas esta última situação não me afeta muito, no entanto, se julgar que não se coaduna ao sentido do seu post, poderá sempre não o colocar online, pois será perfeitamente compreensível.

    Confesso não ter grande apreciação por Mário Soares em algumas das suas dimensões, mas por razões que aqui não se justificariam explanar, pois levaria a um arrazoado inútil de palavras.
    Como não há homens consensualmente "gostados", eu devo pertencer à exceção.
    Não obstante, e como o seu texto reflete, reconheço-lhe o prestígio, a importância como político de primeira linha, além de que teve a sua quota parte na institucionalização daquilo que hoje se denomina liberdade em Portugal, em suma, o contributo para a formação do Portugal que existe hoje. E eu votei nele bastas vezes, no entanto, era o mal menor ...
    Por tudo isto acredito ser justa toda a pompa e circunstância que rodeia o seu falecimento, mas não tomarei parte
    Uma boa semana
    Manel

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá, Manel.

      Não, não seria compreensível. O Manel tem todo o direito à sua opinião, e agradeço-lhe que o faça, que contraste com as suas palavras o coro de elogios. Até porque o Manel é respeitoso. Discordâncias políticas de lado, sabe respeitar a memória de alguém que faleceu, que cometeu erros, certamente muitos - quanto mais poder se tem, mais se erra - mas que foi um estadista, para o bem e para o mal, tendo lutado pela Liberdade, não mais pela sua do que pela dos outros, quando havia nascido em berço de ouro e mais confortável lhe teria sido deixar-se ir.

      Uma boa semana, e obrigado.

      Um caloroso cumprimento.

      Eliminar
  6. Na verdade os elogios coincidentes que leio/ ouço em relação a Mário Soares por quem o conhecia melhor, e de diversos panoramas políticos, era que : "Era um homem com qualidades e defeitos. Que acertou bastantes vezes e errou outras tantas".
    Um padrão humano claro está. Julgo que em política não existirá melhor característica.
    Gostei de ler o seu texto Mark :) .
    Beijinhos

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Depois, para ver qual o prato da balança que pende mais, pesamos as virtudes e os defeitos.

      Obrigado, Magg.

      um beijinho.

      Eliminar