Teve lugar, entre o dia 29 e o dia de ontem, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, o IV Seminário Luso-Brasileiro de Direito Constitucional. Estimulado por um amigo e comentador brasileiro, que simpaticamente me lançou o desafio de dedicar algumas palavras ao seminário, fá-lo-ei enquanto jurista, tentando apartar-me da crise política pela qual o Brasil atravessa, que, pese embora as tentativas dos intervenientes, acabou por marcar o simpósio.
O Direito Constitucional é um ramo do Direito que me é caro. De entre todos os ramos do Direito, será o segundo que mais me suscita o interesse. Enquanto que o Direito Civil é, tendencialmente, o ramo que reúne a preferência da larga maioria dos estudantes, nos seus mais diversificados vértices, o Direito Público, nomeadamente o Direito Constitucional e, também, o Direito Penal, fica circunscrito a quem revela uma aptidão nestas áreas.
O Seminário que se realizou por estes dias é da maior importância. Portugal e o Brasil, a par dos laços históricos, culturais e linguísticos, partilham uma origem comum no seu direito civil e constitucional. Centrar-me-ei no último.
Com a independência do Brasil, D. Pedro I (IV de Portugal) outorgou-lhe a primeira Constituição, a Constituição brasileira de 1824, de cunho vincadamente liberal e progressista Por cá, em Portugal, vivíamos nos tempos da primeira Constituição, de 1822, tida por muitos como demasiadamente inovadora, promovendo um corte abrupto com a realidade anterior à Revolução de 1820. Urgia pacificar a sociedade portuguesa, encontrando um meio termo, um consenso. Com a morte de D. João VI, seu pai, D. Pedro I do Brasil herdou a coroa portuguesa. A Constituição brasileira de 1824 não lhe permitia reunir em si as duas coroas. Assim sendo, outorgou a Portugal a Carta Constitucional de 1826, abdicando da Coroa em nome de sua filha, D. Maria II. Não me alongarei nas considerações históricas. A Carta Constitucional, porventura o texto constitucional que vigorou por mais tempo em Portugal, encontrou no, seu carácter moderado, um compromisso entre o absolutismo e o liberalismo. O Rei detinha o poder executivo e o designado poder moderador, permitindo-lhe, este último, influir decisivamente na busca de uma harmonia entre os demais poderes públicos. A Carta Constitucional embebeu vários dos princípios presentes na Constituição brasileira de 1824.
Já no século XX, com o advento da Revolução de 1910, a Constituição de 1911, republicana e laica, foi fortemente inspirada na congénere brasileira de 1891, igualmente republicana. Assim como esta, a Constituição portuguesa previu a divisão tripartida dos poderes, que não era em si mesmo uma novidade, estando presente nos textos constitucionais liberais anteriores; a separação entre o Estado e a Igreja, constante na Constituição brasileira de 1891, encontrou acolhimento na Constituição portuguesa. Extinguiram, ambas, os privilégios de nascimento e os respectivos títulos nobiliárquicos. Os Estados, brasileiro e português, não mais adoptaram a religião católica como oficial.
Por inspiração da Constituição brasileira de 1891, a Constituição portuguesa de 1911 equiparou ainda os direitos de portugueses e estrangeiros; instituiu a figura legal do habeas corpus, bem como a cláusula aberta de direitos fundamentais. No controlo da constitucionalidade, e por influência do ordenamento norte-americano, a Constituição de 1911, na senda da Constituição brasileira, previu a figura do controlo incidental difuso da constitucionalidade, ou seja, qualquer tribunal passou a poder gozar da prerrogativa de controlar a constitucionalidade de uma norma jurídica num caso concreto.
Por inspiração da Constituição brasileira de 1891, a Constituição portuguesa de 1911 equiparou ainda os direitos de portugueses e estrangeiros; instituiu a figura legal do habeas corpus, bem como a cláusula aberta de direitos fundamentais. No controlo da constitucionalidade, e por influência do ordenamento norte-americano, a Constituição de 1911, na senda da Constituição brasileira, previu a figura do controlo incidental difuso da constitucionalidade, ou seja, qualquer tribunal passou a poder gozar da prerrogativa de controlar a constitucionalidade de uma norma jurídica num caso concreto.
Com o Estado Novo de Oliveira Salazar, Portugal teria a Constituição de 1933, corporativista, nacionalista. Contrariamente ao que paira entre o senso comum, a Constituição de 1933 dispunha de um catálogo apreciável de direitos fundamentais, mantendo a laicidade do Estado que vinha desde o texto constitucional que lhe precedia. Entretanto, o exercício de determinados direitos, como as liberdades de reunião, expressão, associação, manifestação, encontrava-se regulado por leis infraconstitucionais, limitativas. Sabemos que o país conheceu um regime autoritário e repressivo sob a égide da Constituição de 1933, com todas as revisões subsequentes ao longo dos seus quarenta e um anos de vigência. A Constituição brasileira de 1937, por sua vez, acompanhou a ex-metrópole no caminho rumo ao autoritarismo - o Estado Novo brasileiro, de Getúlio Vargas, tão próximo ideologicamente ao Estado Novo português. O carácter fortemente autoritário distanciava-os dos fascismos puros, como o italiano. As semelhanças ficaram-se por aí.
Passemos aos tempos mais recentes, sem prejuízo, todavia, da instabilidade constitucional brasileira que perpassou o século passado. Em 1974, o Estado Novo português chegaria o fim. A Constituição actualmente em vigor, a Constituição de 1976, elaborada pela Assembleia Constituinte de 1975, tornaria Portugal um Estado de Direito Democrático, não obstante o mesmo não ter sido atingido na versão original. Portugal manteve-se sob tutela militar até 1982, e só apenas em 1989, com a segunda revisão constitucional, é que o socialismo foi expurgado, conquanto persista no preâmbulo da Lei Fundamental. O Brasil vivia, desde 1964, num regime de ditadura militar, servindo-se da Constituição de 1967 para o efeito. Em 1985, a Ditadura Militar terminaria, após uma decadência evidente desde o início da década de 80. A Constituição brasileira de 1988, assentando na dignidade da pessoa humana, encontraria na Constituição portuguesa um modelo a seguir. Ambas dedicam extensos capítulos aos direitos fundamentais e sociais do indivíduo, à pluralidade da vida política e à organização democrática do Estado.
Posto isto, percebemos como a história e a experiência constitucional, quer de Portugal e quer do Brasil, se cruzam. Não fomos e não somos imunes, reciprocamente, ao que do outro lado do Atlântico se cria, aos períodos de acalmia ou de agitação política. Os textos constitucionais são realidades políticas; exprimem conceitos políticos e ideológicos.
Os seminários congregam os conhecimentos, brasileiros e portugueses, em matéria constitucional. Aproximam-nos. Este seminário, como tive a oportunidade de referir no início do artigo, teve a particularidade de ocorrer num momento conturbado do quotidiano político e social brasileiro. Algumas personalidades brasileiras estiveram presentes, como Aécio Neves e José Serra do PSDB, bem como José Viana, petista; outras optaram por recusar o convite, como Michel Temer, o líder do PMDB, que entrou em ruptura com o PT de Dilma Rousseff. Também Gilmar Mendes, magistrado do STF, compareceu. Do lado português, Pedro Passos Coelho, líder do PSD, Paulo Portas, ex-líder do CDS-PP, e Marcelo Rebelo de Sousa, jurista, professor de Direito Constitucional e actual Presidente da República, decidiram recusar o convite, manifestamente por motivos políticos - temem ficar associados aos movimentos favoráveis à destituição da Presidente do Brasil. Apenas reputados juristas lusos e professores de Direito participaram.
A conferência esteve subordinada ao tema: «Constituição e crise: A Constituição no contexto das crises política e económica». As atenções, no entanto, recaíram nas personalidades envolvidas, algumas delas defensoras intransigentes do impeachment da Presidente Dilma (o clima de tensão foi notório, com manifestantes entoando frases provocatórias a José Serra), o que ofuscou, por assim dizer, o contexto académico de um evento que pretende agregar valores no âmbito do Direito Constitucional.
Já aprendi mais um pouco de história e de direito :)
ResponderEliminarGrande abraço amigo
Ora, isso é que é importante.
Eliminarum abraço, amigo.
Acompanhei par e passo por aqui. Importantíssimo este evento nos tempos q vivemos por aqui.
ResponderEliminarÉ. Lamento apenas que tenha sido bastante politizado.
EliminarBoa excursão histórica e jurídica. Gostei. E gostei que tivesse sido justo com a Constituição de Oliveira Salazar. Um documento bem elaborado, bem redigido. Na altura em que se sabia fazer leis!
ResponderEliminarDe resto, temos muito em comum com os nossos irmãos brasileiros, como sabemos.
Cumprimentos.
Efectivamente, o legislador de antigamente demonstrava um maior cuidado na produção legislativa.
EliminarNo que diz respeito à Constituição do Estado Novo, limitei-me a fazer uma análise imparcial.
Cumprimentos.
Vou ver muito sincero, quando estudei Direito fiquei frustrado quer pelos professores e pela forma como davam as aulas. Não me foi fácil passar às cadeiras, há tanta subjetividade nas Leis, que para mim deveriam de ser claras como a água. E não é, e quem é que cria as Leis?! Diria que é um ciclo vicioso.
ResponderEliminar«(...) quando estudei Direito (...)»
EliminarQue me cai tudo ao chão... Estudaste Direito? Frequentaste a licenciatura? o.o
Idealmente, as leis deveriam ser redigidas por forma a que qualquer um as compreendesse e ao seu alcance. Todavia, dada a complexidade técnica de alguns diplomas legislativos, nem sempre é fácil ser claro e objectivo, daí a necessidade dos juristas, já que a produção legislativa do Estado se encontra disponível, como não poderia deixar de ser, para todos os cidadãos, através do Diário da República.
Quem é que "cria" as leis? No caso das leis, a Assembleia da República. No caso dos decretos-leis, o Governo. São diplomas com o mesmo valor jurídico.
Gente, o que tá acontecendo comigo? Rs
ResponderEliminarThe Sexualizator
http://thesexualizator.tumblr.com/
Desculpe???
EliminarA publicidade paga-se, amigo.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarSim, o catálogo dos direitos fundamentais precede a organização do Estado, o que é naturalíssimo em Constituições assentes na dignidade da pessoa humana. Nas Constituições liberais do século XIX, geralmente sucedia o contrário. Primeiro vinha a separação de poderes, a religião do Estado, o direito à propriedade privada, etc., e só no final surgiam os direitos fundamentais. Isso também se reflectia nos códigos penais: os crimes contra o património precediam os crimes contra as pessoas. Até os crimes contra o Estado.
EliminarSim, eu estava ao corrente do plebiscito, realizado, salvo erro, no início da década de noventa do século passado, em que se confirmou o presidencialismo.
Sim, tem. A Constituição republicana portuguesa inspirou-se sobremodo na brasileira, nomeadamente na laicidade do Estado e na abolição dos privilégios de nobreza. Também a influenciou, devo acrescentar, na equiparação nos direitos de portugueses e estrangeiros, na instituição da figura legal do habeas corpus e da cláusula aberta de direitos fundamentais. Quanto ao controlo da constitucionalidade, e por influência norte-americana que, por sua vez, teve reflexos na Constituição de 1891, a Constituição de 1911 previu, pela primeira vez, o controlo incidental difuso da constitucionalidade, ou seja, qualquer tribunal pode controlar a constitucionalidade das normas jurídicas nos casos concretos.
Meu querido Mark,
ResponderEliminarSinto-me culpado por dar a idéia desse artigo e voltar aqui só muito tempo passado. Ocorre que minha vida está um pouco atribulada ultimamente. Irei me corrigir. Afinal, a leitura do seu blog é um prazer que devo me garantir.
Quanto ao Seminário e ao Direito Constitucional, concordo com suas colocações. Na verdade, sou especialista em Direito Tributário aqui no Brasil o que implica, necessariamente, em também ser especialista em Direito Constitucional. Nenhuma outra garantia é mais fundamental no capitalismo que o vil metal...
Mas lembre-se que o Direito é uma invenção. Diferentemente das ciências exatas, que podem ser provadas e comprovadas empiricamente, o Direito é uma ciência que tem, apenas, de ser coerente com os princípios que adota como premissa. O Direito Constitucional é a principal de suas premissas, donde irradiam todos os outros ramos do Direito. É a lei fundadora do Estado e, portanto, do Direito em si.
E, nesse ponto, é muito interessante notar que o Direito Constitucional Brasileiro e o Português romperam-se de forma muito clara quanto o Estado Português ingressou na Comunidade Européia abrindo mão de uma parte de sua soberania. A premissa básica de que a Constituição é a lei “maior” do Estado, no caso Português, passou a ser relativa enquanto que no Brasil ainda é uma verdade absoluta.
Mas isso é uma discussão que interessa a poucos. E, como aceitou meu primeiro “desafio”, vai um segundo: como estão os amores? Nem só de doutrina e jurisprudência vive o homem; temos de ter acórdãos também...
Grande abraço, do seu amigo do Brasil,
Marcelo B. Pires
Querido amigo Marcelo,
EliminarO desafio foi aceite com um enorme prazer. Mentiria se dissesse que não aguardava expectante pela sua reacção. :)
Sim, a soberania do Estado português está mitigada. Estamos inseridos na União Europeia, sendo que muitas das competências atribuídas originalmente ao Estado, ocorrendo-me, por ora, e num exemplo, a emissão de moeda, passaram a estar sob a alçada de organismos internacionais.
É curioso que muitos amigos civilistas recusam dar a primazia ao Direito Constitucional, alegando - e com razão - que o Direito Civil remonta ao tempo dos romanos e que o Direito Constitucional tem uns duzentos e alguns anos. Claro está que nunca senti um apelo pelo direito privado. O direito público sempre resgatou o meu coração, por assim dizer.
Hmm, cada vez escrevo menos sobre mim e sobre a minha vida sentimental. Irei pensar em se deva ou não aceitar esse desafio. :) Tratando-se do caro amigo, prometo que pensarei com carinho.
um abraço enorme para si, amigo Marcelo, e muito obrigado!