25 de junho de 2014

A Viagem.


   Saber, afinal, do que se trata a morte não é tarefa fácil. Centenas de crenças e religiões explicam-na à luz dos seus dogmas, algumas com intolerância, outras com o sentimento de compreensão paternalista que é movido mais pelo respeito do que pela vontade séria em ouvir as demais verdades. Todavia, quase todas confluem num sentido: o de negar a sua existência. A necessidade que o ser humano tem de se perpetuar leva-o a não admitir, de forma alguma, que o perecimento da matéria seja a derradeira etapa da vida. Todas, absolutamente todas, defendem que há algo, ainda que não o definam, ainda que não o explicitem mediante a utilização de uma linguagem universalmente aceite.

   O pai nasceu em Moçambique no final dos anos quarenta. Educado numa família tradicional da época, cresceu enquanto católico, professando. A juventude apanhá-lo-ia nos anos sessenta e, numa das suas incursões pelo mato, com amigos, por brincadeira, assistiu a um ritual de exorcismo. Quem esteve em África sabe bem como o espiritismo é prática corrente. Perturbou-o, levando-o, mais tarde, a procurar informação que haveria de encontrar na doutrina espírita de Allan Kardec, livros que me passou e que li no início da adolescência. Sumariamente, a doutrina espírita não nega os valores cristãos, acreditando que o espírito sobrevive à morte corpórea, que é uma viagem, e que a reencarnação é o meio que utilizamos para nos aperfeiçoarmos. Importa dizer que é algo sério, que não envolve magias ou feitiços. Os centros espíritas sequer cobram qualquer valor monetário. É uma doutrina cristã.

   Imbuído nos tumultos da sua geração, o pai passou por um período de esquerda, que provocatoriamente dizia-lhe que caviar - esquerda caviar - dando lugar a um senhor de sessentas, actualmente, com um bom percurso profissional, de religião incerta. Será católico, eu diria, mas a crença na imortalidade da alma existe. A morte de um filho, o seu filho mais velho, aos vinte e nove anos, deve ter reforçado tais convicções.

   Pouco guardo em mim desse meio-irmão. Quando nasci, era um homem. Vi-o raras vezes. Tenho presente uma festa em que, carinhosamente, passou a mão pelo meu cabelo. Teria uns cinco anos. Era muito alto, o que vim a confirmar em todas as fotos que tenho e nas quais consta. Bonitão, olhos verdes, cabelo castanho claro, traços finos. A mãe, brasileira, que o pai conheceu quando, saindo de Moçambique, se radicou no Brasil, tinha, e tem, ancestrais holandeses muito comuns no nordeste brasileiro. A ocupação efémera dos holandeses não deixou rastos culturais ou linguísticos; deixou-os na genética.

   A sua morte foi motivo de grande consternação. Sendo pequeno, vejo o pai a chorar, desesperado, depois de receber um telefonema. Algures em dois mil e dez falei deste irmão por aqui. A recuperação, que nunca se dá, nenhum progenitor recupera da morte de um filho, originou uma dor adormecida, inactiva, com uma centelha que arde permanentemente. É certo que o acompanha.

   O mote para escrever sobre este meio-irmão que não amei, que não podia amar, que não conheci, em verdade, foi a trágica morte que se abateu no seio da família de um caro amigo que tem um blogue - o João - e que também ele perdeu um ente querido, o seu irmão, há dias. Vislumbro o sofrimento dos seus pais pelo sofrimento do meu, naquele fatídico dia de Agosto de mil novecentos e noventa e nove. Só o tempo amenizará uma dor tão pujante. 

   Morrer jovem, como disse num texto, há tempos, é injusto, imoral, inominável. Deveria ser proibido.

36 comentários:

  1. De facto, creio que é a Dor mais forte que um pai ou mãe pode sentir. Ficarem como de mãos atadas e não poderem ajudar aquele/a mais que tudo para eles.

    Não deve ser nada fácil viver com algo, que eles acham que deveriam ter e que não conseguiram evitar :(

    Abraço amigo

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    1. É contranatura ver partir um filho.

      O pai nunca fala sobre o Nuno - o nome do meu meio-irmão. É homem de poucas conversas.

      um abraço, Francisco.

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  2. Como diria Renato Russo : Os bons morrem antes.

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    1. Sem dúvida. E isso verifica-se com frequência.

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  3. Da minha experiência, aprende-se a lidar com a perda, passamos por fases. A dor lancinante, a tristeza, a amargura, depois há um dia que nos esquecemos e é como se tivesse acontecido naquele momento e sentimos tudo outra vez.

    Acredito profundamente na "viagem", faz parte da minha educação, faz parte do meu caminho espiritual, acredito que faz parte de um processo de melhoria constante.

    Um abraço.

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    1. Sim, eu sei que passaste por uma perda difícil. Crises cíclicas, imagino. Quando vem à memória, recordas-te dos bons momentos e tudo se repete.

      Eu ainda ando à procura de uma verdade. Quem conhece a doutrina espírita, sabe que faz muito sentido, contrariamente ao catolicismo, por exemplo, em que facilmente encontramos incoerências e imprecisões, salvo o devido respeito que todas as religiões me merecem.

      um abraço.

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    2. Eu conheço a obra kardecista e há um filme brasileiro lindíssimo baseado no livro de Chico Xavier, eras capaz de achar piada.

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    3. Oh, tão bom saber que a conheces! É tão raro encontrar alguém que a conheça.

      Ouvi falar desse filme, mas nem sei qual o seu nome.

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  4. gostava de acreditar que há algo para além desta vida aqui, mas o que sei é o que me foi ensinado pelo catolicismo, que vivi desde muito nova (catequese, comunhão). a minha Mãe era católica praticante, fervorosa, desde pequena que me habituei a imagens de santos, tinha um crucifixo enorme de madeira sobre a sua cama, rezava antes de se deitar. todos os domingos ia à missa. eu, aos poucos, afasto-me, mas gosto dos espaços físicos, das igrejas, dos santuários. encontro aí uma imensa paz, independentemente da religião.
    o que o João está a passar e os seus pais, a avó, é terrível, não há palavras de reconforto que minimizem o sofrimento. um jovem... o tempo não cura, amaina um pouco a dor, mas agora, nestes dias, é um choque. são dias muito tristes e ele tem que ter muita força.
    bjs.

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    1. O catolicismo não fecha a porta à imortalidade. Fala da ressurreição no dia do Juízo Final. Como referi logo no início, não há nenhuma religião que considere a morte terrena como o derradeiro fim - nem as Testemunhas de Jeová - que têm o mesmo conceito de ressurreição eterna. Defendem uma primeira, em que até os iníquos serão ressuscitados, que aproveitarão para desencaminhar a humanidade. No fim dos tempos, Jesus destruirá todos, incluindo Satanás e os demónios, mais os homens que desencaminharam, para todo o sempre. Sobrará um mundo idílico e de ventura. Só os ateus acreditam na morte - daí que não tenham religião.

      É natural que uma menina que nasceu nos anos setenta, no norte, tenha sido educada na religião católica. A maioria terá sido. Eu fui, pese embora muito superficialmente.

      Acredito que qualquer espaço é bom para chegarmos a Deus. Também me sinto bem em igrejas e não sou católico. São lugares de paz, de tranquilidade, independentemente do que acredito, tens toda a razão.

      um beijinho.

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  5. Bonitas palavras.

    Eu sinceramente também acredito na vida depois da morte, e a doutrina de Allan Kardec assemelha-se bastante a minha forma de pensar.

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    1. Eu não sei se acredito. Ainda procuro uma verdade. Morrerei sem chegar a lado algum. No escrutínio, a doutrina espírita parece-me lógica.

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  6. Mark! Tudo bom?

    Puxa! Sinto muito por isso. Deve ser difícil para o seu pai e mesmo para você.
    Lidar com a morte de alguém próximo é doloroso. O luto nunca termina, o tempo diminui a intensidade, mas as lembranças e as saudades são perenes...
    Legal saber que seu pai esteve aqui pela Terra.
    Imagino o que seu amigo está sentindo, desejo-lhe força e serenidade pra seguir em frente.
    Há controversas sobre os traços culturais advindos da ocupação holandesa no nordeste do Brasil, sobretudo em Recife mas... fica para outra ocasião ;-)

    Abração Mark! Td de bom ;-)

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    1. Olá Ti@go. Sim, tudo bem. Espero que contigo também.

      Sim, para o pai foi muito difícil. Para mim, nem tanto. Era criança e conhecia muito, mas mesmo muito mal esse irmão.

      O pai ainda está pela Terra, felizmente, ahah (eu entendi - referias-te ao Brasil). Morou aí durante uns anos, anos setenta, oitenta, inícios.

      Tu conheces. É o João que comenta pelo teu blogue.

      Bom, a primeira esposa do pai é do nordeste (ou tem origens nordestinas), de tez muito clara, e é comummente aceite que há património genético holandês no nordeste. Testes realizados revelaram isso. Aliás, esses genes só podem vir dos Países Baixos, visto que os portugueses são latinos e, que se saiba, não houve influência de outro povo europeu. Foram mais de duas décadas de ocupação, Tiago. Tempo suficiente para deixar vestígios genéticos que perduraram.

      um abraço. :)

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  7. Não sei o que é perder um filho, porque não tenho filhos. Já vi várias pessoas perderem filhos, e a minha experiência (uma vez que vivo numa terra pequena, em que toda a gente se conhece, logo sabemos a vida das pessoas) é que quando se trata do resultado de uma doença prolongada - um cancro, por exemplo - as famílias e os pais acabam por se preparar para essa tragédia. É doloroso, sim, claro que é. Mas é esperado que aconteça, mais dia menos dia. Passado algum tempo, a feriada continua lá, mas já se fala naquela pessoa sem grandes problemas, ainda que com um sorriso triste.

    Quando se trata de um acidente, uma coisa inesperada, aí sim, há fortes implicações nos pais. Pessoas que podem ficar emocionalmente frágeis, e que desenvolvem certos comportamentos estranhos. Tenho uma vizinha a quem morreu um filho de AVC (do nada), e que hoje não vai a funerais, e vai sempre ao cemitério de manhã super cedo, para não se encontrar com ninguém! Além disso, tem um neto, para quem está a olhar de vez em quando, e lhe chama o nome do filho que morreu (eles são super parecidos). Não consegue lidar com a morte do filho. É como dizes, anti-natural.

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    1. Tratando-se de uma doença prolongada, seja que grau de parentesco for, há sempre um tempo de preparação, é certo, mas eu creio que o choque, o desespero, são inevitáveis. Há quem não chore - cada um reage de forma distinta à dor da perda.

      Não sei se se falará "naquela pessoa sem grandes problemas". Há pais que nunca mais recuperam. O pai não fala do assunto. Como disse, não há um padrão de dor, de reacção, de recuperação. Pessoas há que lidam mal com a morte de familiares próximos.

      Pai ou mãe alguns equacionam a morte de um filho - a esposa que perde o marido é viúva; a filha que perde a mãe é orfã, a mãe que perde a filha não tem nome.

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  8. “Há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia.” (William Shakespeare)

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  9. Já mal me recordava desse teu meio-irmão que faleceu.
    A morte é algo que eu, por puro comodismo, me recuso a falar, embora saiba que as pessoas que baseadas em teorias acreditam na felicidade eterna, para além da morte, vivam mais felizes e estão muito mais bm preparadas para aceitar a morte dos entes queridos.
    Claro que custa sempre a aceitar uma morte de um jovem e percebo todo o drama que o João e a sua família estão a viver.
    Eu já perdi o meu Pai, o que é natural, perdi uma irmã, não nova, mas também não era idosa - 64 anos, e vi, pelo que a minha Mãe sofreu com a morte da minha irmã, o que representa para os pais, a perda de um filho - eles não a aceitam, será antinatural e extremamente doloroso.

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    1. Normal, João. Eu mal me recordo dele...

      É, a religião ajuda a suportar a dor, aliás, as dores. Há quem diga que o Homem crê porque não suporta a ideia de estar só, de não ter alguém a quem recorrer. Faz sentido. Há tanto que faz sentido...

      A senhora tua mãe tem já uma provecta idade. :) O pai é quase da tua idade e também tem a sua mãe, a avó paterna, viva. É uma sorte ter pais até tão tarde.

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  10. este texto é tão tocante, lamento muito ambas as mortes! Concordo com a última frase.

    r. tens toda a razão, afinal se estamos onde estamos agora e se temos o que temos, enquanto homossexuais, foi muito graças a essas pessoas.

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    1. Sim, e não há nada pior do que preconceito "dentro" da família.

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  11. lindo texto sobre a morte, mas ela confirma a frase que diz "só morremos quando a ultima pessoa que lembrava da gente morrer", com certeza este seu irmão ainda não morreu em muitos corações! abraços!

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    1. Conheço essa frase e, realmente, é tocante. De facto, só morremos fisicamente, nunca no coração dos que nos amam. Se a doutrina espírita for correcta, nem morremos. :)

      Certamente. Ele sobreviverá no coração dos seus pais e demais familiares.

      um abraço!

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  12. Lindas palavras. Não consigo descrever o que sinto depois de lê-las.

    dentrodabolh.blogspot.com

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  13. Nossa... que texto lindo! Eu conheço um pouco da doutrina espírita e me identifico bastante com alguns dos seus princípios, gosto da ideia de que a morte é apenas "uma curva na estrada"...

    Já tive a oportunidade de ouvir mais de uma vez, que talvez a maior dor que um pai ou mão possa passar é a perda de um filho... Mas muito tocante a forma como conduziu tua reflexão! Parabéns.

    (A cachorrinha é bem simpática mesmo, já conquistou a todos por aqui e já está se sentindo em casa! Muito linda ela... )

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    1. A doutrina espírita faz muito sentido. Advoga a paz.

      Dizem que é a maior de todas as dores. Nenhum pai ou mãe está preparado para tamanha prova.

      A sua cachorrinha é linda. :')

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  14. Querido Mark, gostei muito do teu texto. A morte é algo que se segue à vida, é por muitos chamada a próxima fronteira. A única coisa que realmente é incompreensível, é o facto de alguns cruzarem esta porta demasiado cedo...

    Obrigado pelas palavras a respeito do meu irmão. Curiosamente, ele também se chamava Nuno. Estarão em paz a olhar por nós.

    Beijinho e abraço muito grande. Obrigado pelo teu apoio. :)

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    1. É verdade! Nem havia reparado nesse pormenor - ambos com o mesmo nome próprio, se bem que o meu meio-irmão ainda viveu mais uns anos. Faleceu com quase trinta, não os completando.

      um beijinho e um abraço!

      Há perguntas para as quais não encontraremos respostas, aqui.

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  15. A morte... que irônico eu ler esse seu post somente hoje... Acho que a morte nada mais é que um momento, do qual retornaremos, não sei de nada, não tenho como provar nada... só sei que quem morre pelo menos está descansando desse caos que é a "realidade" em que vivemos

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    1. Sim, e cada vez mais é um enorme "desprazer" passar pela Terra. Bom, os séculos idos, em termos de direitos humanos, não foram muito bons. Não sei que diga.

      O engraçado é que, há dias, já depois de ter escrito este texto, morreu um rapazinho que era filho de uma jornalista portuguesa muito conhecida. Tinha a idade deste meu meio-irmão, vinte e nove anos.

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  16. Apesar de hoje em dia não acreditar em reencarnações ou juízos finais, a minha fase Kardeciana (pois, também tive uma) ajuda-me hoje imenso quando tenho de contactar com essa realidade. Durante anos fui acólito, e acompanhava todos os funerais da paróquia, o que me tornou mais resistente à dor da perda. Ainda assim, não consigo imaginar a dor que a perda de um irmão ou um filho possa representar.

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    1. Também tive essa fase Kardeciana, bem mais do que agora. O que restou foi a coerência da doutrina. De todas as que conheço, entre doutrinas e religiões, é das que faz mais sentido e a mais coerente com os ensinamentos.

      As religiões têm a pretensão de nos ensinar a aprender a lidar com a nossa finitude, com os revezes da vida e com a perda de entes próximos. Se trazem conforto a algumas pessoas, tanto melhor. O pior é quando a pretensão é a de controlar a vida das pessoas, submetendo-as aos seus juízos morais. O que vem acontecendo por milénios.

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  17. A perda de alguém é sempre dura. Nem sei se alguma vez nos recuperamos totalmente desses episódios. Pela minha experiência não. Mas recordamos com sorrisos todos os momentos que passámos e é isso que nos conforta.

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    1. Sim. As pessoas só morrem verdadeiramente quando ninguém mais se lembra delas.

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