Eva nunca fora uma mulher decidida. Enfermiça desde criança, a má nutrição não a permitiu ir além do metro e cinquenta de altura. Habituada a que tudo cuidassem por si, Eva sujeitou-se ao arranjo que os pais fizeram em troca de doze cabeças de gado e trabalho seguro nas vinhas de um velho emigrante. Por entre as videiras, acostumou-se a ver o seu futuro marido nos encontros fortuitos com moçoilas da terra. Jurara que jamais cairia no engodo; a aparência não a tornava, também, numa mulher sensual aos olhos dos catraios.
Enganada pela crença obstinada em que a sua fealdade evitaria problemas de maior, aprendeu a amaldiçoar a Deus e aos homens pelo estupro de que foi vítima em adolescente e pelo útero seco, condenada que estava em fazer a aletria dos anjos, receita de sua avó Esperança. A canela que acreditava vir da Índia, resultado de uma leitura em pequena, encontrou a origem pela troca das letras mal aprendidas, enfiadas à força na cabeça, porque um oficial da guarda passou lá por casa e obrigou a mãe a matriculá-la na escola.
O seu sistema nervoso atraiçoá-la-ia por décadas, quando, de noite, sentia os passos do marido, borrachão inveterado, má índole, subindo as escadas de madeira. Nunca sabia se quando ouvia o tilintar das partes metálicas do cinto seria amada, forçadamente, na cama de lençóis que engomava às terças-feiras, ou espancada até à exaustão. As manchas amarelecidas na fronha do travesseiro não foram do chá que entornara, mesmo repetindo-o para si vezes sem conta.
Sobraram duas taças da sobremesa. O negócio tivera melhores dias e a dona Dolores quase morreu de um ataque da diabetes, sua melhor freguesa. O que principiou por ser uma brincadeira tornou-se num modo de subsistência. Não por ela, pelo marido. Ricas as vizinhas que compraram aquelas máquinas engenhosas onde lavam a roupa, jamais lá confiaria a sua. Tudo em si, o pouco, era dor.
A ideia seria enfraquecê-lo para cuidar. Um homem do campo, viril, não admitiria precisar de alguém. A ignorância aguçou-lhe o instinto. O seu homem nem gostava da canela...
Sobredose! Ante as convulsões do marido, Eva caminhava desesperadamente, arruinara a sua vida, que vida? A consciência doía-lhe. A mesma que a atormentara quando julgou que seduzira o pai, a mesma que a tornara numa criatura horrenda a seus olhos, ela mesma, que a condenou à resignação durante todo aquele tempo. Pegou na outra taça, juntou-lhe os pós e comeu. Agora era a sua vez de estrebuchar no chão, agonizando, o homem estava aos berros no telefone. Chorava. Amou-a, ao menos na morte. A morte que conjecturou para ele, mas que decidiu antes escolher para si. Soube o que era o amor. Valera a pena viver.
Lembrei do fado da Amália "Lágrima"
ResponderEliminarGostei muito mesmo :3
Abraço
Obrigado. :)
EliminarMeu Deus, Mark; começas o ano "a matar"...
ResponderEliminar:)
EliminarWow, genialidade!
ResponderEliminarObrigado. :)
Eliminarque história fantástica! espera, mais que fantástica! agora sou eu a perguntar: mas a Maria do Rosário Pedreira não te lê?
ResponderEliminarbjs.
Obrigado!
EliminarA Eva penou como todas as suas congéneres em sofrimento. E são tantas as Evas neste mundo, vivendo entre o paraíso, idílico, e o quotidiano, demoníaco.
bjs.
Ok, há algo que não percebi. A história é verdadeira? Ou seja, a Eva existe/ existiu mesmo?
ResponderEliminarOu é apenas uma alegoria das mulheres que vivem essa situação? (hoje, felizmente, cada vez menos, apesar de ainda existirem...)
Trata-se de um conto, uma peça literária. :) A Eva poderá ter existido, poderá existir, ou poderá vir a existir. Quantas Evas o mundo concebeu?...
Eliminar:3
Muito bem escrito. Gostei muito. Parabéns.
ResponderEliminarObrigado. :)
EliminarQue texto lindo. Conto forte. Adoro sempre como escreves e lendo esse texto consegui ver algumas muitas Evas por aí. Quantas Evas será que existem no mundo? Saudades de suas visitas lá no meu blog.Tem texto novo, quando puder volte, a casa será sempre sua.
ResponderEliminarBeijos.
http://www.venenosemacas.blogspot.com.br
Obrigado. :)
EliminarPassarei, sim! Com todo o prazer! :)
beijinho.
Belo texto, não pude deixar de me lembrar dos escritos de Clarice Lispector, em a A hora da estrela.
ResponderEliminarGrande abraço rapaz!
Obrigado. :)
Eliminarabraço.
gostei muito deste teu texto **, continua
ResponderEliminarPS: http://youleave-me-breathless.blogspot.pt/ este é o meu novo blog, segue e dá opinião, sigo de volta *
Credo Mark, é o segundo dia do ano e puseste a fasquia altíssima! Deve ser o meu texto preferido.
ResponderEliminarObrigado. :)
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