6 de outubro de 2020

Memórias de Adriano.

 

   Ontem à noite, terminei um livro que me fora dado há dez anos pela minha professora de língua portuguesa do secundário: Memórias de Adriano. Ofertar um livro a alguém que está prestes a entrar no ensino superior, para mais em Direito, é o mesmo que assumir que esse livro ficará numa prateleira à espera de um momento oportuno. O bom dos livros é que nunca passam de moda. Foi o que aconteceu com este clássico da literatura mundial da escritora belga Marguerite Yourcenar.

   Memórias de Adriano consiste num desafio extraordinário de Yourcenar, procurando recuperar uma autobiografia perdida no tempo do imperador romano Adriano. É uma biografia ficcionada, não sabendo nós até que ponto Adriano nela se reveria caso a pudesse ler.

  Adriano, aqui, relata-nos a sua vida na primeira pessoa. É o narrador. Não há diálogos. É a retrospectiva de um homem que se aproxima do final e que faz um balanço sobretudo dos quase vinte anos que reinou em Roma, desde o início conturbado, com uma adopção polémica e a eliminação de dissidentes políticos, criando-se-lhe dissabores insanáveis com o Senado. Melhor dizendo, pouco em Roma. Adriano foi o imperador que mais tempo despendeu viajando e instalando-se pelas várias províncias do Império. Interessou-se mais por assegurar o que os romanos haviam conseguido do que em expandir as fronteiras, ao contrário do seu antecessor e pai adoptivo, Trajano. Foi o imperador das artes e do mundo helénico. Nascido na Hispânia, venerava como nenhum outro a Grécia e a sua cultura. Tentou o mais possível recuperar o prestígio de Atenas, tornando-a a capital cultural do Império. Era um homem letrado, poeta. Na sua personalidade, oscilava entre uma capacidade de fazer o bem, de pôr cobro a medidas e velhas leis que lhe pareciam injustas, como, em assomos de raiva, de vazar o olho a um secretário. Vejo-o como liberto de preconceitos. Já sabemos que os romanos aceitavam quaisquer religiões que não pusessem em perigo a sua autoridade (tal aconteceu com o judaísmo, nomeadamente), mas Trajano procurou mesmo conhecer mais acerca da seita que então alastrava no Império, o cristianismo. Desdenhou-a, claro. Um espírito romano não teria como perceber as motivações de um deus dos fracos e dos escravos.

   Yourcenar dedica grande parte da obra a relatar a aventura amorosa de Adriano com o efebo Antínoo, uma relação de pederastia tão comum na Antiguidade. A morte de Antínoo, o imberbe catamita, arrastou o imperador àquilo a que nós hoje designaríamos por depressão, provavelmente. Adriano consagrou-o aos deuses, estabeleceu o seu culto e mandou-lhe construir uma cidade, Antinoópolis. 



   

   Memórias de Adriano é de leitura indispensável em quem quer ter conhecimento do melhor que se escreveu lá fora, e é um dos melhores romances do século XX. Yourcenar recheou-o de inúmeras referências políticas, literárias e filosóficas da Antiguidade. Nesse sentido, é também uma belíssima fonte de informação sobre aquela época. Devo dizer que comecei a leitura desconfiado, mas determinado, e terminei-a com um sentimento de empatia pela figura de Adriano.

2 comentários:

  1. Respostas
    1. Dicas dizemos das achegas culinárias. A crítica literária é muito mais do que isso. É a interpretação daquilo que lemos. É a nossa visão sobre as palavras doutros. É um capítulo acrescentado.

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