3 de agosto de 2014

Passeio.


    Na quarta, e não na terça, como combinado, saí com um amigo até à Gulbenkian. É um lugar calmo, pacato, para conversar entre a vegetação, beber um café, ver umas exposições...

    Marcámos em torno das dezasseis. Ele atrasou-se. Dá umas explicações de português e inglês para ganhar mais algum dinheiro. É ambicioso, determinado. Enquanto tomávamos algo na cafetaria do museu, falou-me dos seus planos. Quer trabalhar na Vogue, na parte artística, sair do país, deixar a casa dos pais o quanto antes. Luta por isso, persegue os sonhos. Quando me confrontou com o meu próprio futuro a curto prazo, ouviu uma incógnita, pontos de interrogação que saem no lugar de certezas. Vê-lo assim, tão decidido, levou-me a avançar no dia seguinte, passando pela faculdade e matriculando-me num mestrado. Pelo meio, vou tentar entrar na Ordem. 
      Um sonho que passa ao lado, talvez a carreira de uma vida. Nunca o saberei.

     Vimos muitas famílias. Invejei tamanha harmonia. Que me recorde, nunca os pais pegaram em mim e me levaram a passear. Tenho fotos nos jardins da Gulbenkian, sim, mas com os avós. Nas consultas regulares ao pediatra, ali bem perto, na António Augusto de Aguiar, tenho presente a mãe, com os seus maravilhosos saltos agulha, negros, agarrando-me pela mãozinha, apressada, abrindo a porta do carro e batendo-a com toda a força. Atrasara-se. Jamais teve tempo para mim. Nunca lho pedi. Abona em seu favor. Tudo o que queria era presentes, brinquedos, jogos novos para a consola, o último grito que vira na televisão, no domingo de manhã, entre os comerciais dos desenhos animados.


    Entrámos na livraria da Gulbenkian. Por ali andámos entre os livros. Perde-se. Se tivesse mil euros disponíveis para gastar em livros, gastá-los-ia, disse-me. Comprou dois, um chinês ou japonês e o outro de arte, creio. Adora a cultura oriental, que eu desprezo. Nunca o Japão ou a China despertaram em mim algum interesse, exceptuando-se um ou outro anime que prontamente esqueci ao entrar na idade adulta. Sonha em ir a Tóquio, quase tanto como eu sonho em ser feliz.

    Comprei um livro enorme de História. De Portugal. Tem todos os mapas da colonização do Brasil que fazem os meus olhos brilhar. Devoro cada página sem dar conta. Acaso tivesse seguido História, a Idade Moderna seria a minha especialidade. Por mais que compreenda o carácter sórdido do colonialismo, sobretudo na perspectiva dos povos colonizados, em mim há uma visão romântica, europeísta, algo injusta, com certeza. Como português, natural do pior país da Europa, resta segurar-me à história escrita pelos egrégios avós por forma a não me deixar afundar.

     Deu tempo de desbravar os trilhos sinuosos, atravessando as pedrinhas dos charcos. Soltei um "Olha um patinho!", como uma criança. Ainda gosto de ver os patinhos e os peixinhos, que o corpo não corresponde mais ao apelo de ser pequeno e impele-me a ser adulto à força. Vimos uma gatinha, pranha, mansa, que foi se aproximando sem ter medo. Havia comer por baixo do banco em que estávamos sentados. Afagámos o seu pêlo, eu com medo de ser arranhado (não seria a primeira vez).

      Deixei-o no metro e voltei para casa a pé.

22 comentários:

  1. O retrato de uma tarde bem passada, com o bónus do teu novo livro! :)

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  2. Precisas como de pão para a boca de mais saídas deste tipo e olha o exemplo do teu amigo: sair de casa e ser independente o mais rápido possível.
    Há tanta gente que o quer fazer e não pode, e tu com capacidades para isso não aproveitas...
    Quanto à História é um ponto de comum interesse entre nós dois. Eu só abomino a Idade Média...

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    1. Já me vais conhecendo bem.

      Estou a pensar em arranjar uma actividade. Ando a pesquisar umas coisas... Depois adianto se houver alguma novidade.

      Já gostei menos da Idade Média. Com quinze anos, dezasseis, não gostava lá muito. Agora até que reconheço algum encanto.

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  3. Gulbenkian! Tenho de lá voltar...
    Mas nas minhas idas à cidade é sempre preterida em relação a outros pontos de interesse!

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    1. Sim, e para quem não é de cá não será um dos primeiros sítios a visitar. Mas tem interesse e gosto muito de ir lá. :)

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  4. Também gosto muito da Gulbenkian :)

    Abraço amigo

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  5. porque dizes que sonhas em ser feliz?

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    1. 1) Porque sou idiota;

      2) Porque não me sinto feliz;

      Escolhe. :)

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  6. "Como português, natural do pior país da Europa..."

    Mark, só mesmo um português para dizer isto... É preciso serem os estrangeiros a ver tudo o de bom e único que temos neste nosso Portugal. Espero que um dia mudes a tua opinião.

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    1. Wow, há anos que não tinha anónimos. Que excitação! É pena que não assinem, não acreditando eu que não tenham conta.

      Não, é de facto o pior país da Europa. Todos os sabem. Ano após ano, Portugal é ultrapassado pelos países do centro e leste. Não tarda e estará na "cauda" dos 28. Eu gosto de Portugal, mas não sou vítima do nacionalismo bacoco que tolda a visão.

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  7. fiquei com inveja de teu passeio, uma coisa tão nostalgica... e a fundação é mesmo linda não?

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    1. É linda, sim. Bem melhor do que o CCB (Centro Cultural de Belém), na zona de Belém, um bairro de Lisboa. Este último remonta ao início dos anos 90 do século passado, é recente, e digamos que prejudicou um pouquinho a Gulbenkian. :)

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  8. Se gostas de animais visita animaisforadoprato.blogspot.com :)

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  9. É incrível...
    Parece que leio o meu passado, ainda que noutro contexto social mas felizmente com uma mãe oposta, o que por um lado também não foi completamente bom. As mesmas indecisões que ainda hoje me atormentam: -"Deveria ter seguido letras ou fiz bem em seguir científicos?". "Fiz bem em seguir o ramo via ensino ou devia ter seguido psicologia clínica?", "Fiz bem em obedecer ao meu pai, indo estudar para Viseu ou devia ter desobedecido, optando por faculdades das grandes cidades, aumentando assim a probabilidade de me libertar, de poder ter sido feliz, de ter conhecido pessoas idênticas?"...
    Pelo menos, peço-te POR FAVOR, ao contrário de mim, não fiques só nem te dediques exclusivamente à profissão. O tempo passa num ápice :( Abraço-te.

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    1. Sabes, há um mito criado em torno das faculdades das "grandes cidades". Eu também julguei, ao entrar no ensino superior, que encontraria uma pessoa especial, que tudo seria diferente do secundário, que seria uma época divertida e diferente. Não foi. Talvez devido à minha personalidade, esquiva, introspectiva, sossegada demais, alheando-me de confusões. No entanto, se tivesse de ser especial até poderia ser num corredor, não é? (...)
      Passou o tempo, as ilusões, e desvaneceram-se as esperanças.

      um abraço e obrigado pela tua visita! :)

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    2. Faço minhas as tuas palavras!
      Mantive o sonhos. Pensei que tudo seria então diferente quando começasse a trabalhar. Nada preciso relatar a este respeito. Aliás, os últimos 5 anos foram, sobretudo, um pesadelo. Só espero conseguir mudar de escola onde sou efetivo ou que o cancro do meu pai, dado ser doença crónica, me possibilitar destacamento durante vários anos, no mínimo até que tal aconteça. Não aguentarei voltar aquela escola. Não mesmo! Se em novembro-dezembro, num fim de semana, naquele inferno, tentado me senti, pela 1ª vez na vida, a tomar toda uma caixa de Xanax forte, voltar não sei... Ai Mark, ensinar já foi uma verdadeira paixão. Um namoro mesmo. Agora, e sobretudo desde que se lembraram de criar essa figura de "diretor", um pesadelo. De Santa Comba praticamente não tenho razão de queixa. Os alunos adoram-me. Mas pelo que passei, não sei se amigos há nesta profissão. Os sucessivos ministros destruíram-na. Há dias, num blogue, lia uma senhora que trabalha numa secretaria que dizia: "... professores de ciências da natureza, história,... dão aquela matéria 2 anos e já a sabem para toda a vida. Para que precisam de horas para preparar aulas?" De facto, na escola, onde não me concentro pois prefiro a casa ou o café ou um canto qualquer da escola que não num sítio com um grupo que me seja imposto, até tem razão. Razão essa que mesmo assim não deixa de ser dúbia. Por ex, no caso de CN6, tenho dado todos os anos, à exceção de quando estive na ed especial e 2 anos nos quais apenas tive 5º anos. Nunca dei as mesmas aulas de CN. Mais, nunca as minhas aulas de CN6 foram exatamente iguais para todas as minhas turmas. Dói ler este tipo de gente. Eu não me importo que vão assistir às minhas aulas e digo: não concordo com o sistema de avaliação como está, por causa dos "graxas". Estes, não querem pais e comunidade nas suas aulas. Se pais vissem como é o nosso dia, talvez a opinião mudasse. Desculpa desabafo!
      Tenho um desafio para ti, caso pretendas aderir. Não fico aborrecido caso não o faças. Foi-me proposto por pessoas muito agradáveis, que serão mais ou menos da tua idade, algumas da UC, de medicina mas nada snobes. http://sonhosdesencontrados.wordpress.com/2014/08/21/onze-perguntas-onze-respostas/

      Abraço

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    3. Ser professor é uma profissão tão nobre e tão maltratada. Este país não sabe dar valor aos seus professores. Fico muito triste com tudo aquilo pelo qual os professores passam em Portugal.

      Aceito o desafio, claro que sim! :) É um prazer participar do desafio em que me nomeaste.

      Paulo, as melhoras do teu pai.

      um abraço.

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    4. Obrigado, Mark.

      De nobre penso que muito se está a perder dada a existência de diretores e dos famosos "lambe botas". Estes são os que tudo têm na Escola e nada fazem. Caíram nas graças e fazem por tal: são parasitas que procuras colegas para acusar em gabinete de atos praticados ou inventados.

      Obrigado ainda pelos teus votos.
      Abraço.

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  10. Se me tivessem deixado teria seguido História de Arte...

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    1. Tenho uma prima que seguiu essa área no secundário.

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