28 de abril de 2016

Quarenta sobre trinta.


    A Constituição da República cumpre quarenta anos de vigência no presente mês. Elaborada a partir da composição política sufragada em 25 de Abril de 1975, a Lei Fundamental que rege o Estado português entrou em vigor exactamente um ano depois, a 25 de Abril de 1976. Convergiram no texto constitucional, à época, duas legitimidades: a legitimidade democrática, emanada do povo, único detentor da soberania, e a legitimidade militar, que adveio do MFA, que promoveu o golpe de Estado que derrubou o Estado Novo, encontrando expressão constitucional no célebre Conselho da Revolução, que teria previsão até 1982 - data da primeira revisão. Suceder-se-iam outras seis revisões, num total de sete. Em vinte anos, a Constituição adaptar-se-ia ao seu tempo: de rumo ao socialismo, encaminhou Portugal para uma economia capitalista, de mercado, inserida em comunidades supra-estatais europeias. Acrescentar-se-iam direitos ao já apreciável leque de direitos do indivíduo. O Estado também foi visado, reformando-se progressivamente. A Constituição aprimorou-se.

     É, de longe, o texto constitucional mais extenso de todas as leis fundamentais que Portugal conheceu. Ainda assim, e embora afirme o seu primado sobre quaisquer outras fontes de direito interno, a Constituição não deixa de ser ameaçada por alguns perigos constantes, dos quais enuncio, por exemplo, o designado constitucionalismo informal, que esvazia o alcance das normas constitucionais. Também a sujeição às regras do direito internacional, que se sobrepõem ao carácter normativo e hermenêutico do direito interno (valor supra-legal), sendo que não raras vezes a Constituição é revista por forma a se adequar aos tratados que vincularão Portugal na ordem externa, nomeadamente no âmbito do direito europeu, sem prejuízo de alguma doutrina defender a supraconstitucionalidade dos tratados internacionais.

     A Constituição portuguesa, pese embora a sua vastidão, não goza da permeabilidade de determinados textos constitucionais mais sucintos e que, por isso, sobrevivem relativamente imutáveis aos séculos. Não faz parte da tradição romano-germânica do direito formular leis fundamentais que enunciem os direitos mais primários do indivíduo e a regulação basilar do Estado; a Constituição portuguesa, bem como as suas congéneres latinas, elenca todo um rol de direitos sociais da pessoa humana, estatuindo arduamente sobre as competências dos órgãos do Estado, sua organização e funcionamento. A Constituição é, em suma, exaustiva, o que por si só não a envolve numa robustez imune às mudanças sociais. A Constituição não deve castrar as gerações vindouras, tão-pouco as presentes. As suas normas, incluindo as pétreas, espelham os valores da sociedade que lhe subjaz, e só enquanto eles subsistirem estará fundamentada a sua própria existência.


      No dia seguinte, a 26 de Abril, perfizeram-se trinta anos desde o desastre nuclear de Chernobyl, na então República Socialista Soviética da Ucrânia, infeliz efeméride que pouco eco encontrou na Comunicação Social. Pela primeira vez, o mundo confrontou-se com a energia nuclear fora de controlo. Dezenas de pessoas faleceram por contacto directo com os reactores nucleares e milhares virão a sofrer pela proximidade às áreas afectadas.
    A catástrofe teria leituras políticas, abalando a já decadente União Soviética, e certamente terá contribuído para a sua dissolução cinco anos depois, em finais de 1991. A par das repercussões no equilíbrio da União Soviética, o desastre despertou a todos para os perigos da energia nuclear. Já enquanto Estado independente, a Ucrânia herdou um pesado legado. Quilómetros e quilómetros manter-se-ão inabitados pelos próximos séculos, transformando o infortúnio em arte abandonada, como o atestam as inúmeras fotos da cidade de Pripyat.

24 de abril de 2016

Foi Cabral, há mais de quinhentos anos.


   Quase todos os anos, como de costume, dedico algumas palavras ao feito, que considero épico, protagonizado por Cabral ao desembarcar na terra a que designou de Vera Cruz. No imaginário popular, eu diria que dois navegadores portugueses se destacam: Cabral e Vasco da Gama, o último com primazia sobre o primeiro. Ambos rumaram à Índia. A Índia e o Brasil, o paradigma da epopeia marítima portuguesa. Uma representando o oriente, o alvo da nossa atenção, que ao longo do século XVI mereceu que nos fixássemos pela costa oriental africana, pela península arábica, pela própria Índia e pelos arquipélagos do sudeste asiático. Até que a incorporação de Portugal na Monarquia Hispânica, ou Católica, proporcionou a cobiça e o saque dos neerlandeses às nossas possessões, expulsando-nos de uma por uma, sobrando parcos redutos. Portugal voltar-se-ia, por fim, para o Brasil, a sua "jóia da coroa" por mais de duzentos anos, após um primeiro século de relativa obscuridade no seio dos interesses mercantis portugueses. Em breve descobririam a riqueza, ouro que sustentou o fausto dos monarcas e das suas concubinas.

     O dia 22 de Abril passa despercebido entre portugueses e brasileiros. Não gozamos do sentimento nacionalista tão presente nos países de língua castelhana, onde Colombo é tido por herói. Não vejo, como gostaria, um sentimento de pertença, como denoto na relação especial entre os EUA e o Reino Unido, sem prejuízo de pontuais quezílias, ou nos laços que unem Espanha às suas antigas possessões na América, pouco pacíficos, é certo, mas surpreendentemente coesos. Sabem o que os liga, o que têm em comum. Semelhante quadro não encontramos entre Portugal e o Brasil. Do lado português, o Brasil ocupa uma posição privilegiada, e isso constatamos, nomeadamente, com a cobertura mediática dada à sua situação política. Os portugueses conhecem a cultura brasileira nas artes, importando-a pelas décadas, desde a música à representação. Os brasileiros pouco conhecem de Portugal, insistindo, a sua maioria, em rejeitar a herança tão portuguesa. No século passado, o Brasil passou a exaltar as suas raízes africanas e indígenas, esquecendo, todavia, que a portuguesa é um dos vértices desse triângulo, que se converteu em outra figura geométrica, posteriormente à independência, com o contributo daquela massa de imigração que pautou os séculos XIX e XX. Frequentemente sabemos de brasileiros que evocam a sua ascendência italiana com orgulho; a portuguesa, não raras vezes com mal dissimulado constrangimento, ou indiferença.

        Portugal foi o obreiro do Brasil. E devemos dizê-lo sem receios. À data da proclamação por D. Pedro (I por lá; IV por cá), o Brasil já assumia as dimensões continentais que lhe conhecemos, ainda que expandisse um pouco mais o seu território em virtude de certos conflitos com os países limítrofes. A sua imensidão, não obstante a multiculturalidade, foi conseguida pela administração portuguesa, centralizadora, cujo idioma se impôs sobre os demais. Olhando em redor, o Brasil vislumbrará uma miríade de Estados sem potencialidade alguma, fruto da fragmentação que se seguiu aos movimentos secessionistas inspirados na Declaração de Independência dos EUA.
         O Brasil carece de efectivar as pazes com o seu passado e com o seu progenitor.

        Amanhã, celebrar-se-á, uma vez mais, a Revolução de 25 de Abril de 1974, tão presente no colectivo português, não tivesse meros quarenta anos. Um povo também é as suas memórias. E a um povo com uma história rica como a portuguesa, não sobrariam dias no calendário para assinalar as datas. Não dedicarei, este ano, qualquer artigo relativo à revolução. Nada há a acrescentar ao muito que já foi dito e escrito, inclusive por mim. 
         A nossa origem é secular. Somos mais do que os últimos cem anos. Como que se tivéssemos nascido com a República, que a bem ver não passa de um regime. Somos, em síntese, também o descobrimento das terras brasileiras, embora o ignoremos.

21 de abril de 2016

Prince (1958 - 2016).


     Fui surpreendido, como a imensa maioria, com a morte de Prince. Para um amante da onda dos anos setenta e oitenta do século passado, Prince é um dos nomes incontornáveis. Não é possível percorrer os grandes sons daqueles tempos sem esbarrar em Purple Rain, Cream, Kiss, ou a minha favorita de todo o seu vasto e profícuo repertório - When Doves Cry.

    Prince estava doente; eu não sabia. Prince, dizem, passava por um período de menor criatividade; desconhecia. Na senda do entendimento de Manuel Moura dos Santos, vultos maiores, como Prince, deixam a sua marca de forma tão indelével que é desnecessário aludir a alguma quebra na produtividade. Prince era a referência em si. Um homem ímpar, original, que escandalizou a moralista indústria americana com os seus outfits exóticos e andróginos, com a sua maquilhagem exuberante, com a postura irreverente em palco.

      Perdemos progressivamente todas as nossas referências. Poucos meses após a partida de Bowie, Prince deixa-nos numa cada vez mais sentida solidão. Génios não nascem todos os dias. Só alguém pouco atento à sua carreira poderá duvidar do muito que ainda estaria por vir. Nos seus cinquenta e sete anos, Prince certamente teria sucessos a somar. 
      Quando sentimos que quase tudo está inventado, tendemos a recorrer aos nossos bastiões. Prince, por mim falo, era um deles.

18 de abril de 2016

O processo de destituição de Dilma Rousseff.


    Soubemos, nesta madrugada, que o primeiro passo decisivo está dado: a Câmara dos Deputados, por uma maioria significativa, decidiu iniciar o processo de destituição, ou de impeachment (nunca como agora esta palavra encontrou tanto eco fora dos meios académicos), da Presidente da República Federativa do Brasil. Ultrapassou-se uma primeira etapa, porquanto o ordenamento constitucional brasileiro, à semelhança do português nos tempos da I República (1910 - 1926), prevê a existência de duas câmaras (bicameralismo), uma câmara baixa, a Câmara dos Deputados (o equivalente à nossa Assembleia da República), e uma câmara alta, o Senado, que faz todo o sentido em países de proporções continentais, como Brasil, ou com substractos sociais e culturais diversificados. Ora, o processo será encaminhado ao Senado, numa segunda etapa, aguardando-se pelo veredicto dos senadores brasileiros.

     Não sou um especialista em ciência política brasileira e tão-pouco em direito constitucional brasileiro. Para evitar ferir susceptibilidades ou inaugurar uma discussão extensíssima sobre o mérito deste processo de destituição, centrar-me-ei, tão-só, na sessão da Câmara dos Deputados a que pude assistir.

     Fui um estreante. Não havia ainda assistido a uma sessão do plenário brasileiro. Devo dizer que fiquei perplexo. Perturbou um pouco a minha sensibilidade europeia. Compreendo, como por todos é sabido, que as democracias sul-americanas - e aqui sem qualquer juízo valorativo - são bastante peculiares face às europeias. O Brasil é um país multicultural. O seu parlamento é um reflexo da sociedade brasileira. Ainda assim, qual o meu espanto ao verificar que a sessão mais parecia um circo, uma feira de vaidades. Falou-se de Deus, da religião, da família, com deputados a agradecer aos pais, aos filhos, aos cônjuges; gritou-se, apupou-se, jogou-se confetti para o ar, levou-se bandeiras, até ao cúmulo de ver deputados a comer e a passar comida uns pelos outros. Se ficamos indignados com algumas atitudes mais grosseiras dos deputados portugueses, nomeadamente, nada é comparável com a realidade parlamentar do país irmão.

    Tentando manter uma postura equidistante desta querela, ou deste imbróglio político, por não ser brasileiro e por não viver as emoções na primeira pessoa, não deixo de começar a sentir certa compaixão por Dilma Rousseff. Não senti uma sincera inquietação com o estado do Brasil, com os dez milhões de desempregados, com a estagnação económica. Os deputados não estavam preocupados em discutir o crime de responsabilidade, um tipo legal que no ordenamento jurídico brasileiro poderá levar, no limite, à destituição dos titulares dos cargos públicos; entretanto, passeavam-se pelo microfone, esgrimindo argumentos assentes na pura demagogia e no fácil populismo. A Presidente do Brasil, a bem ver, não cometeu qualquer crime que ficasse provado (por ter incumprido, alegadamente, a Lei da Responsabilidade Fiscal). Para todos os efeitos, goza do princípio da presunção de inocência. Assisti, em suma, ao que me pareceu ser um assalto ao poder.

      O caso ganha contornos alarmantes quando percebemos que vários políticos enfrentam, eles mesmos, processos por corrupção. Michel Temer, o vice brasileiro, de quem Dilma diz estar a ser vítima de traição, é suspeito pela prática de inúmeros ilícitos. Já Eduardo Cunha, o Presidente da Câmara dos Deputados, está a ser investigado no âmbito da Operação Lava Jato, e a sua falta de credibilidade moral foi mencionada por vários parlamentares. Se o processo de destituição chegar, por fim, ao afastamento da Chefe de Estado e de Governo brasileira, o Brasil continuará mergulhado nas espessas brumas da corrupção e da lavagem de dinheiro.

     Julguei, até ser derrotado pelo cansaço, que a margem que separaria o "Sim" do "Não" seria menor. Surpreendeu-me a votação massiva pela abertura do processo de destituição. Os partidos que apoiavam o Governo abandonaram a Presidente. Determinados deputados votaram contra a orientação dos partidos; outros, por seu turno, votaram contra a sua consciência. Entre tamanho alvoroço, senti a calma e o discernimento no voto dos deputados do PT, alguns dos quais insurgindo-se contra o que lhes parece ser um golpe.

      A crise política no Brasil está longe de conhecer um fim. Viveu-se um primeiro episódio de uma triste novela que está para durar.