30 de março de 2017

Os sessenta anos do(s) Tratado(s) de Roma.


    No dia 25 de Março de 1957, na capital italiana, seis países europeus assinavam os dois tratados institutivos da Comunidade Económica Europeia (CEE) e da Comunidade Europeia de Energia Atómica (CEEA ou EURÁTOMO). Os Tratados de Roma, como ficariam conhecidos, resultaram dos esforços conjuntos da França, da RFA, da Itália e dos países do BENELUX no sentido de se estabelecer um mercado comum geral, cujas regras seriam aplicáveis nos mais diversificados domínios da actividade económica. No que respeita à segunda, o objectivo vinha desde a criação da CECA, de 1951, tendo-se prosseguido na solidariedade sectorial no domínio específico da energia atómica. Centrar-me-ei na primeira, na CEE.

     Os dois tratados vieram no encalço do labor dos seis países europeus para a construção de um bloco sólido e solidário, procurando-se afastar definitivamente a espessa bruma em que a Europa mergulhou no pós-II Guerra Mundial. Do lado de lá do Atlântico, nos EUA, a administração estadunidense via com bom olhos a instituição de um verdadeiro novo estado, os Estados Unidos da Europa, que teria representatividade nas Nações Unidas. Harry Truman, Presidente dos EUA, fez saber que uma Europa unida e coesa era do agrado do aliado transatlântico. Não nos esqueçamos do contexto social e político que se vivia, no qual a Europa beneficiava de fundos estadunidenses para a sua reconstrução, que ficariam conhecidos pelo nome de Plano Marshall.

     O empenho dos EUA não era desinteressado. A recuperação económica da Europa assemelhava-se como bastante proveitosa ao mercado estadunidense, na perspectiva de se lucrar com as exportações. O fim do tradicional proteccionismo europeu representava uma oportunidade muito vantajosa para as empresas daquele país. Bem assim, os EUA também esperavam que a Europa pudesse, unida e próspera, assegurar a sua própria defesa, permitindo que se diminuísse o contingente militar estadunidense no Velho Continente e que se diminuíssem os gastos operacionais e financeiros com o pesado encargo que assumiram. Por último, e não menos importante, uma Europa forte resolveria o premente problema do enquadramento da Alemanha na nova ordem estabelecida e ajudaria a conter o expansionismo soviético.

      Não se pense que todo o processo que culminou na assinatura dos tratados - ao longo de dois anos, entre a Conferência de Messina, em Junho de 1955, e a assinatura propriamente dita - foi imune a temores. Os seis países receavam que se fracassasse uma vez mais, que todo o projecto saísse gorado. Houve momentos de tensão, designadamente quanto ao estatuto a atribuir aos territórios ultramarinos franceses, que como sabemos são muitos e estão espalhados um pouco por todo o mundo.

      Em 1969, na Cimeira de Haia, fica assente que o alargamento seria o próximo passo, e ele deu-se sucessivamente ao longo das décadas subsequentes. Temos 28 Estados-membros em 2017, e uma UE, emanada do Tratado de Maastricht, herdeira das comunidades.

      No ano em que o projecto europeu celebra o seu sexagésimo aniversário, e poucos dias depois, o Reino Unido, admitido em 1973, no primeiro alargamento, invoca o artigo que lhe permite desvincular-se da UE. Os 28 em breve passarão a 27, e o que todos temem é que não nos fiquemos por aqui. Os Estados-membros já se apressam em garantir as suas posições. França e Alemanha adequam legislações, Portugal, pela voz do governo, assedia as empresas que se deslocalizarão do Reino Unido. O bom domínio do inglês, verdadeiro idioma empresarial em Portugal, os baixos custos em mão-de-obra, a distância, curta, entre ambos os países e o facto muito notório de Portugal ser um destino de eleição para os súbditos de Elizabeth II são factores que decerto pesarão quando chegar o momento de as empresas tomarem uma decisão.

       A UE conhece os seus dias mais sombrios. Um aniversário simbólico com sabor amargo. E o pior poderá estar por vir se o Reino Unido for bem sucedido. A coabitação com a UE dar-se-á de um ou de outro jeito. Não acredito que a mão das instâncias europeias seja leve, porque seguramente terão de demonstrar firmeza na penalização aos britânicos. Nada poderá ficar igual. Se estão fora, estão fora. E haverá ressentimentos. Na Escócia, ressurge a inquietação. Às vezes, desconfio de que nem os britânicos sabem exactamente o que pensar. O país dividiu-se entre os eurocépticos e os euroconvictos. Eu estaria receoso. Ainda que o Reino Unido tenha laços privilegiados com várias nações, o futuro está num grau de incerteza maior do que aquele que por si só comporta. E pensar que há sessenta anos se comemorava.

26 de março de 2017

Mário Cesariny.


   Um génio, um louco. Pouco conhecimento tenho da obra de Mário Cesariny, a literária e a plástica. Foi, como todos os surrealistas, excêntrico, atrevido, incompreendido. O documentário a que assisti no CCB, esta tarde, contribuiu muito para me aproximar do seu legado. Julgo-o como um homem lúcido na sua transcendência. Não passou inerte pela vida. Observou, experienciou, pintou, escreveu, foi perseguido pela PIDE por ser assumidamente homossexual.

    Naqueles noventa minutos, a alma do homem criativo evadia-se do corpo raquítico. A idade é cruel. Soube, extra-documentário, que a inspiração de Cesariny aumentou nos últimos anos. Quando somos mais maduros, experientes pelos erros, perecemos. Cesariny orgulhava-se das suas múltiplas conquistas amorosas e do fracasso com as mulheres. O pai, austero, disciplinou severamente o filho (e as filhas), e as memórias que deixou não foram as melhores. Surpreendeu-me ver que Henriette, irmã de Cesariny, com quem partilhava a casa, diabolizava o pai, vaticinando-lhe o mais cruel dos castigos no outro mundo.

    Custava-lhe ver os amigos partir. Como dizia, « Lisboa morreu e não foi a enterrar ». A poesia não lhe chegava em casa, mas nos cafés, nas ruas. Teve um amor que o quis matar. Não matou. Escreveu para incautos marinheiros que aportavam na capital. Os brasileiros, dizia, eram os melhores. « Vem cá, minha flor. » A voz doce e o sotaque açucarado levavam-no na certa...

     No ocaso da vida, era um homem permanentemente de cigarro na mão, desgastado pelo tempo, sem muitas ilusões. Era cru nas suas convicções, dolorosamente assertivo e genuíno. Não precisava de um psiquiatra, « mas dum homem ». Não escrevia para enriquecer o editor, não pintava para que as galerias julgassem que conheciam a arte, que tinham qualquer coisinha de surrealismo exposta. Foi livre na sua criação, poeta de si mesmo. Culto.

      Gostava de voar, de sonhar que voava. De ser livre. De olhar no espelho e ver-se ao ver o outro. A sua singularidade sobreviveu-lhe na recordação de todos, e é na diferença que encontramos o nosso traço distintivo. Mortais são os iguais.


22 de março de 2017

Aquarius.


    As terças-feiras estão consagradas ao cinema. À partida, teria esgotado todos os filmes que me interessavam, mas Sónia Braga e este Aquarius prometiam um bom momento. O que sabia do filme não ia além de um trailer que vi noutra sessão. Ontem, entretanto, quando anunciei que assistiria ao Aquarius, um amigo brasileiro teceu-lhe duras críticas. A verdade é que ele é de direita, e à frente perceberão por que o digo. Acusou o filme de estar politizado, de ser «das esquerdas». Não sei se é de esquerda, de direita, da frente ou de trás, mas que é um grande filme, é, e só lamento ter-lhe dado ouvidos, ou o benefício da dúvida, porque refreou as minhas expectativas.

    Não irei falar muito da narrativa. Isso encontram em qualquer resenha, como dizem os amigos brasileiros. Irei focar-me no papel de Sónia Braga, que complementa a história, que também tem interesse dada que sua invulgaridade. Sónia Braga, aquela actriz paradigmática para os portugueses ("eu nasci assim, eu cresci assim..."), pode considerar a Clara como uma das suas maiores personagens. A menos que Sónia se supere em perfeição, é este papel que irei guardar na memória. E que papel! Desde os instantes em que se comove, aos que se irrita, aos que se sente no meio de um caos qualquer, lutando pelos seus direitos, Sónia é bela mulher de cabelos negros, sensual, que geme de prazer com um garotão de vinte e poucos anos e que passeia o neto nas ruas de Recife. Que conforta e ajuda os filhos, que aceita a diferença de um, que não cede ao conformismo de uma doença que não a matou e ainda menos lhe roubou a libido.

     Como a maioria dos filmes que escapa à lógica de Hollywood, Aquarius focaliza-se nos pequenos pormenores. Um copo de vinho, um álbum, um assomo ao piano. É um filme que se demora. Destaco a ambivalência tão presente no cinema brasileiro pelos contrastes sociais: o lado pobre, o menos pobre (a nova geração e a dos nossos pais), que convivem a paredes-meias. O toque retro está presente no início, de forma velada, e subtilmente ao longo das mais de duas horas. Passaram os Queen e o Roberto Carlos. Ou os 80s estão na moda ou nunca saíram de moda, pois raros são os filmes actuais que não dão uma passadinha por lá.

      E regresso ao início e a Sónia Braga, que arrebata a cena. Uma interpretação inenarrável, uma segurança e uma leveza que só a idade permitem. É uma senhora, e lá fora já jogou as suas cartas. Para mal dos nossos pecados, o filme, no Brasil, tem sido recebido com desconfiança. Respira-se política no país irmão, e não será só por lá. É uma caça às bruxas adaptada. Quem não está connosco, está contra nós. O filme aborda temáticas caras à esquerda: a igualdade, a afirmação feminista, um toque subtil nas minorias, ingredientes que, per se, não definem necessariamente um filme, tão-pouco anulam o mérito dos actores. Há que saber analisar racionalmente uma obra.

      Aconselho. Na senda da apreciação de um jornalista brasileiro, Reinaldo Azevedo, da revista Veja, « o dever das pessoas de bem é boicotar Aquarius », porque o filme é socialmente incorrecto, provocatório. Morde os calcanhares às senhoras que acompanham os seus maridos e que mal dissimulam a mão a tapar os olhos enquanto Sónia Braga escandaliza a moral, seja com o seu corpo, seja com as suas atitudes. A rever.

17 de março de 2017

A intolerância.


    O Tribunal de Justiça da UE, órgão jurisdicional da União Europeia, com competência sobre os Estados-membros, instituições e órgãos da União Europeia (não dirime conflitos entre particulares), proferiu uma sentença polémica que nos dá conta da não contrariedade ao direito se as empresas procurarem adoptar um padrão neutro, banindo os símbolos religiosos. Não tendo acesso à sentença, eu presumo que estivesse em causa o hijab, vulgo véu islâmico. Uma ou duas funcionárias, algures por essa Europa, teriam sido impedidas de usar esse símbolo religioso no local de trabalho. E o TJUE veio, agora, confirmar que não há discriminação directa se as empresas, e cito, proibirem o uso de  « um símbolo político, filosófico ou religioso ».

    Acompanhando a crescente susceptibilidade política e social, o poder judicial europeu não é imune ao circunstancialismo histórico e sociológico que vivemos na Europa e no resto do mundo. As posições agudizam-se, os partidos de extrema-direita procuram convencer o eleitorado de que a solução está numa campanha ofensiva contra o Islão, e as instâncias judiciais europeias nem sempre conseguem interpretar os valores que subjazem à Europa ideal, solidária, tolerante, inclusiva. São estes os valores que presidiram às comunidades, que mais tarde originariam a UE. Estávamos a viver um doloroso pós-guerra. A Europa estava destruída nas suas infraestruturas e ferida no seu orgulho. A França e a RFA procuraram unir esforços no sentido de se encontrar um ponto de convergência, de modo a que o continente recuperasse o seu esplendor. Foi um labor de todos. A vontade de que esta nova Europa vingasse era tal que Charles de Gaulle não quis que o Reino Unido participasse no processo de construção europeia (e hoje todos lhe dão razão...).

    A Europa é predominantemente cristã - houve quem quisesse incluir essa matriz no gorado projecto de Constituição Europeia. Mas temos uma Europa minoritária que é islâmica. A albanesa, a turca. E, no limite, temos cidadãos da UE, originários de estados-membros, que são islâmicos. Eu conheço alguns. Pessoas que têm a sua religião, que guardam os seus estatutos e preservam as suas regras, mas que contribuem para a riqueza do país, que nasceram por cá, que são tão portugueses como eu, mas que não são cristãos, e creio que é isso que se lhes não perdoa. Os Estados europeus são laicos ou confessionais, de maioria cristã. A desconfiança é milenar. Remonta às cruzadas, passando pelas campanhas dos reis católicos contra os turcos-otomanos, conhecendo certo refreamento quando entendemos, no ocidente, que o diálogo inter-religioso derramava menos sangue e aproveitava melhor a todos. Com os atentados que uma minoria tem provocado por todo o ocidente na última vintena de anos, o ódio recrudesceu, visando o cidadão médio que tem a sua vida organizada e que em nada está relacionado com esses grupos terroristas. Eu conheço muçulmanos que se insurgem contra o fanatismo jihadista.

     O hijab é um mero pretexto. Ao que assistimos, sim, é à crescente intolerância na Europa, quase recuperando a velha máxima bíblica, bem a propósito, da Lei de Talião. Estamos no caminho errado. É natural que as autoridades europeias procurem defender-se de atentados, mas temos de saber fazer a distinção entre extremistas, que os há em todas as religiões, e cidadãos comuns, porventura que professem o Islão, que estão plenamente integrados, e muitos dos quais até contactando de perto com o Cristianismo. Chamem-me irrealista, porque eu acredito que ambas as religiões, que partilham uma origem comum e os seus profetas, podem conviver pacificamente. Como ouvi por uma islâmica, "todos (os islâmicos) somos também cristãos". Uma afirmação simples, aparentemente superficial, mas que reúne em si a fórmula para a paz entre as nações cristãs e islâmicas.

     A decisão do TJUE deve ser bem interpretada. Compreendo que, em função da estratégia empresarial e da adequação à função, possam ser impostas restrições no que diz respeito aos símbolos religiosos. Numa loja de biquínis, por exemplo, não faria sentido que a funcionária envergasse um hijab. Devemos atender ao caso concreto, e não considerar que em qualquer situação, em qualquer contexto, seja legítimo impor aos funcionários que prescindam de determinados símbolos. Usar ou não o hijab pode comportar sofrimento para a mulher. Falamos da religião, e a religião diz respeito a um recôndito profundo de cada um, insondável, digno de respeito (o mesmo se aplicará às convicções políticas ou filosóficas, com a devida ressalva).

     Temo que a actual conjuntura permita que as entidades empregadoras reajam discricionariamente face a este precedente aberto pelo TJUE. O tribunal, contudo, é claro: exige-se que haja um regulamento interno que determine uma indumentária neutra aos funcionários. A questão está em saber até que ponto o hijab pode ser entendido como um símbolo, em primeiro lugar, e um símbolo que se desvie do âmbito da dita neutralidade, em segundo, e ainda podemos questionar-nos acerca do que é a neutralidade, por último. Prescindir do hijab será o mesmo que prescindir de um acessório estético qualquer? Parece-me que não. Entendendo, porém, que a neutralidade consistirá em manter todos os trabalhadores com a mesma aparência no que respeita ao traje, então, sim, não vejo discriminação. A deliberação do TJUE abarca os símbolos em geral, independentemente da religião.

     Da minha parte, um hijab, bem com um crucifixo, ou outro símbolo qualquer, a menos que estejamos diante de circunstâncias muito específicas (como a do biquíni), não afecta a produtividade da empresa, nem a eficiência ou a capacidade do/a trabalhador/a. O seu uso deve ser livre. Uma empresa que preze o bem-estar dos seus funcionários e a inclusão, porque é também isso que está em causa, deixa em cada um a decisão, em consciência, de se apresentar ou não com símbolos religiosos, intervindo na medida em que isso possa lesar os seus interesses.

11 de março de 2017

Marcelo, um ano depois.


    Há um ano, por estes dias, Marcelo Rebelo de Sousa tomou posse enquanto Presidente da República. Muito aclamado, após dez anos de uma presidência impopular e anti-nação, eu diria, Marcelo iniciou o seu mandato com um enormíssimo capital de esperanças. Ser um insigne jurista, ademais constitucionalista, fazia prever aos portugueses que ninguém melhor do que ele interpretaria a Constituição em benefício do povo; a postura leve, descontraída, informal, foi também ao encontro das expectativas das pessoas, que já se indagavam acerca da necessidade de se ter um presidente.

    O ano foi pacífico para o Chefe de Estado. A coabitação Belém - São Bento não poderia ser melhor. Presidente e Primeiro-Ministro entendem-se bem, não raras vezes estão em plena sintonia. Dizem as más-línguas que Marcelo é um " porta voz do governo ". Não se deixem enganar. Não é. Marcelo é um homem inteligente, sabe que tem mais quatro anos pela frente e, se tudo lhe correr de feição, um segundo mandato, na tradição portuguesa que vem de 1980. Afrontar o governo nada lhe traria de bom, pois a geringonça dura há mais do que Pedro Passos Coelho julgou ser possível. O estado de graça não terminou, o país dá tímidos sinais de recuperação económica, posicionando-se bem nos indicadores económicos, e a Marcelo queda assistir, contente. Um árbitro que ainda não teve de intervir.

     Este ano foi um ano de conciliação. Os portugueses e o Presidente da República reataram, malgrado o PSD se queixe de falta de apoio implícito. Marcelo está em todo o lugar e tudo lhe merece um comentário. É o presidente-comentador. Só não o pode fazer em directo e em sinal aberto. Nada é deixado ao acaso. Marcelo sabe que precisa de granjear mais e mais popularidade, caindo nas boas graças do povo. Se tiver eventualmente de ser arrojado, no futuro, estará seguro por esse suporte popular. Os presidentes são alvos fáceis quando algo corre menos bem. Não acredito que nenhum dissolva a Assembleia da República levianamente. Dou este exemplo porque se trata de uma das prerrogativas presidenciais de maior vigor. Ser o presidente em que todos confiam dá-lhe essa margem de manobra. Cavaco não a tinha, sobretudo no decurso do seu segundo mandato.

     Marcelo é assim, mas não é só isto. Tivemos, há meses, uma demonstração, ligeira, dessa sua faceta mais interventiva aquando da crise na Cornucópia. Marcelo serviu de mediador e encetou negociações sem a presença do ministro que detém aquela pasta. Os comentadores não perdoaram. Até que ponto podemos traçar a fronteira entre o Marcelo que nunca governou, embora o tivesse querido, e que por isso pode sentir um apelo nesse sentido, e o Marcelo espontâneo, que quebra as regras protocolares, e que não terá agido de má-fé, é uma questão que fica em aberto.

      Nem tudo são rosas. O risco que Marcelo corre é o do descrédito. As pessoas dividem-se entre os afectos e a autoridade. A páginas tantas, não sabemos com que ânimo as decisões são tomadas. Marcelo não sabe ser convincente, mesmo quando quer. Porque ele é o homem que se banhou no Tejo quando concorreu à câmara de Lisboa, porque engraxa os sapatos na avenida, porque se senta à esplanada com o manuel das couves a beber sumo de laranja e a trocar dois dedos de conversa. O sentido de Estado não é muito, e quando se impõe, há ali um desconforto qualquer. Marcelo prefere o ameno convívio, os sorrisos soltos e a informalidade, que lhe é natural. Veremos quando chegar a hora de tomar decisões complicadas, melindrosas, como se comporta e qual a sua sensibilidade, intuição e faro político. Dou-lhe o benefício da dúvida.

8 de março de 2017

Três, ou quatro, em um.


   Estas últimas semanas têm sido atribuladas. Eu, um rapaz tão caseiro, virei um vadio (na acepção decorosa da palavra, sublinhe-se). Quase não estou em casa, sobretudo à noite. A mãe fica feliz, por um lado, mas extremamente preocupada. Creio que também lhe faz bem, indirectamente, porque começa a desvincular-se um pouco. Não que tenha notado isso nas suas reacções; pelo contrário, está paranóica com as minhas saídas. Liga-me imensas vezes. Como a compreendo (se fosse pai, melhor, se for pai, serei igual, ou pior), procuro tranquilizá-la. Hostilizar não ajudaria, e seria profundamente injusto. Quando a perder, ninguém mais se importará se como, se durmo, se tomo a medicação da asma, se ando à chuva.

     Na quinta-feira, fui à Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves, ali pelo Saldanha. O Dr. Anastácio, médico, legou a mansão e o seu recheio, pela sua morte, ao Estado português. Grande coleccionador de arte, deixou um espólio profuso, entre telas, porcelanas, cerâmicas, mobiliário... Daí ser uma casa-museu; casa, porque lá habitou, efectivamente. Gostei bastante da visita. Fi-la sozinho, o museu não tinha ninguém, tendo direito a uma visita guiada de uma das funcionárias, uma senhora de alguma idade, muito simpática e educada. É tão bom encontrar pessoas assim. Senti uma candura qualquer naquela senhora.

     Mais à noite, subi ao Campo Pequeno e encontrei-me com uma colega dos tempos do colégio, a A., que conheço há vinte anos (estou a envelhecer...). Está emigrada na Inglaterra, e aproveitamos quando cá vem para pôr a conversa em dia. Jantámos por lá.


      No domingo, decidi-me, com um amigo, a visitar alguns dos museus da capital. Começámos no Museu Militar, em Santa Apolónia, que presumo ter conhecido em criança. Tive lampejos de memória ao percorrer as galerias, as muitas galerias - tantas que um funcionário, também muito atencioso, sentiu o apelo em alertar-nos para que não deixássemos de ter em atenção a hora de encerramento para o almoço.
      Foi um dos que mais gostei, como se compreende, pela densidade histórica. Não tem só canhões e espingardas, não, embora tenha muitos. Tem quadros, maquetes, bustos, manequins fardados, adereços.

      À tarde, fomos até ao Lumiar, quase nos arrabaldes da cidade, ao Museu do Traje, primeiramente, e ao Museu do Teatro, que se situam no Parque do Monteiro-Mor, este, por sua vez, envolvendo o Palácio do Monteiro-Mor. Estive nos jardins há uns anos. Desta vez, pela chuva miudinha e por estarmos com alguma fraqueza, não os pude percorrer, com pena minha.
       O Museu do Traje tem interesse, mas achei-o um pouco desprovido. Julguei-o mais faustoso. Nem me recordo da última vez que lá fui. É evidente que será fácil reunir os vestidos dos séculos XVII e XVIII, aqueles modelitos deslumbrantes das infantas. Curiosamente, considerei o museu mais apelativo na galeria do século XX. Gostei de ver aquelas roupas de senhora das décadas de 10, 20, 30, e por aí fora.
       O Museu do Teatro é, de longe, mais apelativo. Tem um arquivo fotográfico muito rico, a par, claro, daqueles fatos que os actores usavam nas peças. Um mimo. Saliento um livrinho da Presidência do Conselho, exposto numa vitrina, com os traços do censor do Estado Novo ( « foram mandados tapar os umbigos de todas as coristas »). Estávamos em Setembro de 1958, e Oliveira Salazar não condescendia com esses atrevimentos. Às senhoras, estava reservado o recato.

       Ainda passámos pelo Museu Nacional de Arte Antiga, que havia visitado há poucos meses. Fomos levados pela vontade de visitar as obras de arte de Domingos Sequeira, pintor dos séculos XVIII e XIX.

       Passando já ao dia de ontem, terça, estive no cinema, e vão-me perdoar, mas não poderei deixar passar em vão alguma menção ao filme. Falo-vos do Hidden Figures. Desconhecia que o filme se baseava em factos reais. Tinha alguma ideia da narrativa, por um trailer que vi numa destas minhas últimas sessões.

        Não será o filme da vida de ninguém, no entanto é um bom filme. É realista, interessante pelo contexto histórico e social - a segregação racial que ainda persistia em determinados estados dos EUA. Aquelas três mulheres, afro-americanas, conquistaram árdua e sofridamente o prestígio. Se o dito " não se vai a lugar algum sem esforço " se adequa, eu diria que se lhes aplica sem hesitar. Eu não sei se toleraria tanta humilhação, tamanha brutalidade e ranço xenófobo. Era de uma irracionalidade tal que, ainda que conhecendo as atrocidades sociais do apartheid sul-africano, pensamos sempre: " isto aconteceu mesmo? ".
        Se os estadunidenses conseguiram levar a dianteira aos soviéticos em tecnologia, pondo Armstrong na Lua, muito devem ao contributo destas mulheres e aos seus múltiplos meses de esforço. Foram sumidades na matemática, cujos cálculos permitiram o triunfo dos EUA na corrida espacial.
        As actrizes principais foram bem convincentes. Lá está, um filme que não teve o destaque de Moonlight, não obstante ambos versarem, com vantagem para Hidden Figures, sobre a discriminação.

        E fico-me por aqui, que falei mais de mim nesta publicação do que em meses, e ainda corro o risco de passar a ideia de que tenho uma vida preenchida.

6 de março de 2017

A prostituição.


   O PS aprovou uma moção que aconselha a regulamentação da prostituição, contra o voto, ao que li, de António Costa e de outros dirigentes de topo do partido. Eu acompanho a posição do secretário-geral do Partido Socialista.

    A eutanásia foi outro dos temas presentes da moção, fracturante, claro está, mas quanto a esse tenho um artigo escrito a respeito, que poderão consultar no blogue (deixo-vos o link aqui).

     A prostituição não é uma profissão, pois não é. É uma actividade tão antiga quanto o homem, sim. O Estado propõe-se a encará-la como um instrumento de sobrevivência que enobrece os homens e as mulheres que a praticam, compactuando com a miséria humana que é ter de prescindir de parcelas da dignidade para poder prover ao sustento pessoal, e familiar, na maioria dos casos. Os prostitutos e as prostitutas não se autodeterminam. Essa é a maior das falácias dos defensores da regulamentação. Não há autodeterminação quando somos movidos, por circunstâncias trágicas da vida, a sujeitar o nosso corpo a sevícias, a favores e a práticas que põem em causa a nossa condição de membros inalienáveis da família humana, merecedores de respeito, independentemente das nossas diferenças e dificuldades. O Estado, em suma, assume-me enquanto proxeneta, mais um na vida de muitas daquelas pessoas, das que os têm, arrecadando impostos e conferindo, em contrapartida, umas regaliazinhas, o preço de se contribuir para o bem-estar social de uma comunidade que convive com muito à-vontade, e leveza até, com o drama do vizinho do lado que se deita com qualquer um para poder alimentar-se. É esta a sociedade indiferente em que vivemos.

     A prostituição, em Portugal, foi descriminalizada em 1983. Tal como a homossexualidade, manteve-se enquanto actividade perseguida após o 25 de Abril de 1974. Como esquecer as célebres declarações do general Galvão de Melo: « O 25 de Abril não se fez para prostitutas e homossexuais »? Actualmente, o ordenamento vigente não a censura, mas também não a reconhece. Mantém-se esse status quo desde há décadas. Continua a criminalizar-se, e bem, o lenocínio e todas as formas de exploração. Para o enquadramento histórico e social da prostituição, recomendo um livro muito interessante, de 2003, escrito em colaboração por Fernanda Fráguas e Isabel do Carmo, que conviveram com dezenas de prostitutas nos anos em que ambas estiveram detidas na Prisão das Mónicas, no seguimento do processo das FP-25 (de Abril). Chama-se, singularmente, Puta de Prisão, a mais infame, a mais desgraçada. Um livro que li na parte final da minha adolescência e que foi determinante na definição da minha orientação nesta matéria tão sensível.

      Se o Estado se investe, em tom paternalista, do papel de guardião dos direitos de cada um, poderia começar por investir em políticas verdadeiramente humanas de criação e manutenção de postos de trabalho, bem como em apoios sociais céleres e eficazes que venham ao encontro das necessidades dos mais desfavorecidos. Se a ideia é a de amparar quem precisa, este será, a meu ver, o caminho. Num país com menos desigualdades sociais, com mais emprego, com melhores salários, com estruturas integradas de suporte, em que a comunidade não segrega, mas agrega, poucos recorreriam - não o farão de ânimo leve - à prostituição. Continuaria a haver, haverá sempre, mas a opção individual é respeitada, já o é e continuará a sê-lo. Fá-lo-iam por opção, e na vida optamos, correndo os riscos inerentes às nossas escolhas.

      Eu conheço o flagelo, não tão de perto. Tenho uma amiga pessoal, transexual, que conheci ainda quando era o P. Pois bem, o P. percebeu que não se sentia bem, mudou-se para a Suíça, país em que reside de momento. Iniciou o tratamento hormonal e a vida levou-a, já E., à prostituição, regulada, « com todos os direitos ». A E. é infeliz. Profundamente. Lamenta a sua condição e partilha, inclusive, do meu raciocínio. E quer ser ajudada, psicologicamente até.
      A prostituição destrói as pessoas, afasta-as do seu amor-próprio, do seu entendimento acerca do respeito que lhes é devido. É-me intrinsecamente impossível virar o rosto, caindo no erro de julgar que a dita regulamentação vai resolver ou amenizar os inúmeros problemas que afligem os prostitutos e as prostitutas.

2 de março de 2017

T2 Trainspotting, Lion e Oscars.


    Eu sei, eu sei que incumpro com o que prometi, mas o mês tem sido realmente atípico, e já só queria recuperar o que venho gastando em bilhetes de cinema.
    Entre ontem e hoje, fui duas vezes ao cinema. Ontem, o T2 Trainspotting; hoje, o Lion. Adorei o segundo, não gostei nada do primeiro. Fui para o T2 de espírito aberto, temeroso porque abri o precedente de ler crónicas, mas esperando, ainda assim, ser surpreendido pelo argumento, considerando que o primeiro, de 1996, é um filme de culto. O universo das drogas, da delinquência e da exclusão social, pelos anos noventa, suscitou, acredito, revolta nuns e entusiasmo noutros. A sequela, sendo o primeiro o que apregoam, é um desastre. Interpretações muito fracas, uma narrativa pouco convincente. O género drama-comédia exige, em si, um esforço adicional, para que nos consigam fazer rir diante de tantas tragédias pessoais. Rir, em verdade, ri, mas não me seria difícil rir com os clichés do filme. Tudo o que envolva sexo provoca a risada contagiante do público. Só veja quem não tiver gostado do primeiro ou quem goste de ver maus filmes, mal produzidos, que mais se assemelham a capítulos de novelas.

     Tive sorte, e assisti-os na sequência correcta, porque o Lion é um filme excelente. Não li nada a respeito, e só soube que se tratava de uma história verídica no final do filme. Ambientado na Índia, recriando-se o que seria a ruralidade nos confins daquele país, Lion traz-nos a história de uma criança pequena, aparentando os seus cinco anos, que se deixa perder do irmão, que acompanhava na fatídica realidade de tantas crianças e jovens, os pequenos delitos para sobrevivência pessoal e o trabalho infantil, quando ambos se dirigiam para um local onde, supostamente, ganhariam algum dinheiro para ajudar a mãe. O desencontro dá-se por uma circunstância infeliz, e o miúdo fica à deriva na gigantesca Calcutá, sem dominar o idioma local, o bengali, passando pelas mais assustadoras peripécias, tão comuns, aparentemente, num país em que milhares de crianças desaparecem todos os anos. Tendo sido adoptado por um casal australiano, no seguimento da institucionalização, recupera, em adulto, memórias de episódios vividos com o irmão mais velho, cúmplice de brincadeiras e de aventuras. A angústia por desconhecer o paradeiro da família biológica e por supor o sofrimento em que estariam a mãe e os irmãos leva-o de volta à Índia.

     Saroo era um menino com uma história pessoal, tal qual nos faz chegar em diálogo com Sue, a mãe de criação. Ela adoptou-o e ao seu passado. Gostei particularmente deste diálogo. Em determinadas alturas, só conseguimos seguir em frente após termos conhecimento do passado, seja descobrindo-o, seja entendendo-o, seja aceitando-o.
     Nicole Kidman esteve muito bem, assim como o protagonista que dá corpo ao jovem adulto Saroo, Dev Patel. As gravações na Índia foram muito bem conseguidas. Creio que o realizador se esforçou o suficiente para nos mostrar o quotidiano dramático das crianças sem eira nem beira que deambulam pelas ruas das desumanas metrópoles indianas, enquanto nos leva a percorrer os caminhos de terra com Saroo e Guddu, a apreciar a beleza das paisagens naturais da Índia e das crenças religiosas que encerra, com o Ganges e as divindades como pano de fundo na parte introdutória da trama. O final é particularmente emotivo, referindo-me em concreto às derradeiras cenas entre Saroo e Guddu, que se perderam e perderam a infância.
       Extraordinário filme, que passará a constar entre os meus favoritos de sempre.


       Os Oscars... La La Land teve os que mereceu nas categorias musicais, de fotografia e de concepção artística, expectavelmente, mas Emma Stone arrecadou o de Melhor Actriz, o que não me parece ter sido a escolha acertada. Limitando-me aos filmes a que assisti, Natalie Portman, muito embora Jackie seja o filme mais aborrecido do ano, teve um desempenho superior, que justificaria mais a atribuição do galardão. Casey Affleck levou para casa a estatueta de Melhor Actor. Julgo que muito bem. Poucos encarnariam com tal maestria aquele homem profundamente tomado pelo desalento, em Manchester by the Sea. Concordei com a escolha de Damien Chazelle para o Oscar de Melhor Realizador, porque me parece que La La Land, do ponto de vista da direcção, é um filme bem idealizado, mas ainda não conhecia Lion, que não foi tão acarinhado como o seu concorrente e que, nesse sentido, nem sonhou em somar este prémio. Também teria escolhido Lion na categoria de Melhor Argumento Adaptado, que escapou para Moonlight, que levaria ainda o tão almejado Oscar de Melhor Filme, que eu entregaria também a Lion. Em Melhor Argumento Original, Manchester by the Sea, que sempre considerei estar uns graus acima de Moonlight (não competiram nesta categoria).

       A bem dizer, compreendo as vozes que erguem contra os Oscars. A atribuição dos prémios está nitidamente politizada. Não ganham os melhores filmes ou os melhores actores, mas aqueles que a Academia considera que poderão, socialmente, causar maior impacto. Moonlight é um bom filme, é, mas Manchester by the Sea é melhor. Lion é melhor. E há outros cinco filmes nomeados que ainda nem vi e que, espanto não me causaria, serão melhores. Há uma carga subjectiva na apreciação. Para mim, claro está. Mahershala Ali conquistou o Oscar de Melhor Actor Secundário. Esteve bem? Claro que sim, mas Dev Patel, no meu entendimento, esteve melhor. Moonlight tinha porque tinha de ganhar, porque se funda numa história que ainda gera controvérsia, porque se não ganhasse seria discriminação, seria a Academia a desprezar um amor alternativo no cinema, e porque o foco incide tão-só na comunidade afro-americana. E Mahershala Ali, que nem teve um desempenho constante no filme, uma vez que a sua personagem desaparece precocemente, ganhou, sem prejuízo da prestação do actor, porque o ambiente que se vive nos EUA obrigou a que fosse aquela a escolha da Academia. Deixemo-nos de rodeios. Sabemos o que aquele actor representa numa América cada vez mais intolerante. Tratou-se de uma jogada da Academia, que seria de mestre se nós fôssemos todos uns tolos sem sentido crítico.
       Já há muito pouco cinema nos Oscars, lamentavelmente.