Não seria excessivo designar a guerra entre as duas potências marítimas europeias como a verdadeira - e legítima - Primeira Guerra Mundial. Envolvendo mais do que Portugal e os Países Baixos, participaram ainda ingleses, dinamarqueses, espanhóis, japoneses, congoleses, persas, indonésios, cambojanos... Em boa verdade, o impacto provocado pelas baixas foi significativamente menor no conflito que se travou por mais de metade do século XVII, todavia, a população mundial era inferior. Que não se duvide da escala mundial do conflito: desde os campos da Flandres ao mar do Norte, passando pelo estuário do Amazonas, o interior de Angola, a ilha de Timor e a costa do Chile, as armadas dos dois países travaram importantes e decisivas batalhas que marcariam a geopolítica do planeta.
Quando os Países Baixos se rebelaram contra a Espanha na Guerra dos Oitenta Anos pela sua independência, as possessões portuguesas foram o principal alvo da cobiça neerlandesa. O cravo-da-índia e a noz moscada das Molucas, a canela do Ceilão, a pimenta do Malabar, o ouro da Guiné e de Monomotapa, o açúcar do Brasil e os escravos da África Ocidental aguçaram a vontade holandesa em dominar o comércio que ao longo do século anterior tinha sido exclusivo de Portugal.
As populações dos dois países eram relativamente idênticas em número, na proporção de um milhão e quinhentas mil pessoas nos Países Baixos para um milhão, duzentas e cinquenta mil em Portugal. Não terá sido esse o factor determinante para o sucesso inicial da investida holandesa. A disciplina, o porte físico, a alimentação e o poderio naval, superiores na contraparte, explicam a demora portuguesa em lograr sucesso, inicialmente, face aos sucessivos ataques aos seus domínios.
Importa fazer um enquadramento. Nos finais do século XVI, Portugal encontrava-se num posição delicada, unido que estava à poderosa Espanha. Tratando-se de uma mera união pessoal, em Filipe II (I de Portugal), à semelhança da Escócia e da Inglaterra desde Jaime VI (I de Inglaterra), Portugal era a parte mais débil da união ibérica, o que resultou numa maior facilidade dos Países Baixos em atacar as possessões lusas. Por outro lado, a vantagem de atacar as potências ibéricas nos territórios de onde extraiam as riquezas para financiar a guerra fez todo o sentido. Desde o início da dinastia filipina, Portugal sentiu que a união com Espanha seria desastrosa. Efectivamente, não sem algum exagero, um dos motivos preponderantes que levou às ofensivas holandesa e inglesa, também, às possessões portuguesas, foi a união política com Espanha. Guerra que teve o pendor religioso próprio da época, na medida em que os portugueses, católicos apostólicos romanos, e os holandeses, calvinistas, se consideravam como os legítimos representantes da verdadeira religião. Demonstrando o conflito religioso, um cronista português do século XVI escreveria: "Os holandeses são apenas bons artilheiros, só são bons para ser queimados como heréticos inveterados (...)".
À medida em que o tempo passava, os holandeses procuravam dirigir os seus ataques às colónias portuguesas na África, Ásia e América, litorais e costeiras, que eram de fácil penetração se comparando às vice-realezas espanholas do México e Peru.
A expansão holandesa nos mares teve tanto sucesso quanto o início dos descobrimentos portugueses um século antes. Não seria justo negligenciar o facto de os neerlandeses atacarem também os domínios espanhóis. Em simultâneo com um ataque ao Brasil em 1624 - 1625, uma frota de onze navios e perto de dois mil homens navegou para o Pacífico através do estreito de Magalhães e atacou vários entrepostos do Peru e do México. Além disso, enquanto lançavam meios contra as colónias portuguesas asiáticas, não deixavam de investir nas Filipinas, domínio castelhano.
O conflito luso-holandês começou com os ataques a São Tomé e ao Príncipe entre 1598 e 1599 e terminou com a conquista das colónias portuguesas no Malabar, em 1663. A paz com os holandeses só seria firmada seis anos mais tarde, em 1669, em Lisboa e Haia. Até 1640, os portugueses e os espanhóis lutavam contra um inimigo comum; a partir desta data, e dada a Restauração portuguesa, os lusos tiveram de lutar contra Espanha, na península, e contra a Holanda, no ultramar. O resultado final foi contundente: uma vitória holandesa na Ásia, um empate luso-holandês na África Ocidental, e uma vitória portuguesa no Brasil.
As razões para a vitória dos holandeses na Ásia podem ser brevemente reduzidas a três motivos fundamentais: recursos económicos superiores, número de homens e poderio marítimo. O padre António Vieira, num escrito da época, relatou que os Países Baixos dispunham de catorze mil navios que podiam ser utilizados como barcos de guerra; Portugal não possuía nem treze navios da mesma categoria. Um censo de 1620 apurou apenas seis mil duzentos e sessenta marinheiros para tripular uma frota; em 1643, soube-se de que não havia em Lisboa um número significativo de homens que pudesse dirigir quaisquer navios até à Índia. Os neerlandeses, entretanto, tinham mais conhecimentos de estratégia naval do que a maioria dos vice-reis portugueses de Goa. Um dado curioso importa ressalvar: os portugueses contavam quase exclusivamente com fidalgos e senhores de linhagem para chefes navais e militares, ficando em desvantagem face aos holandeses que, acertadamente, apostavam mais na experiência e competência profissional. A burocracia já se fazia sentir naquela época. Um comandante português escrevia, desde a costa do Malabar, o seguinte: "Qualquer capitão holandês tem plenos poderes e muito dinheiro para utilizar em qualquer altura (...) Quanto a nós, temos de conseguir o beneplácito de uma autoridade superior (...)".
O físico e a alimentação, já citados, constituíram outra desvantagem para os portugueses. Se os holandeses já naqueles tempos se queixavam da qualidade das suas rações, um soldado português escrevia, em 1644: "Estamos tão magros e tão esfomeados que nem três de nós se equiparam a um holandês (...)". A falta de disciplina e a excessiva autoconfiança ajudariam na vitória holandesa pela Ásia. Francisco Rodrigues da Silveira (1558 - ?), autor do manuscrito Memórias de Um Soldado da Índia, escreveria, em 1595, de que a maioria dos soldados de Ormuz dormia e habitava regularmente fora do castelo e, atente-se!, vinha fazer sentinela duas horas atrasados e, já atrasados ao serviço, mandavam à sua frente dois escravos para lhes transportarem as armas. Relatos da época dão-nos a conhecer de que em 1649, quando alguns marinheiros holandeses desembarcaram em Damão, não foram interpelados e nem encontraram qualquer sentinela porquanto toda a população dormia profundamente durante a sesta do meio-dia até às quatro da tarde. Maravilhoso! Há também referências à falta de munições por parte das tropas portuguesas e às armas enferrujadas e não utilizáveis.
Considerando todas as vantagens de que os holandeses dispunham, poder-se-ia perguntar, então, qual o motivo que os levou a perder a guerra em Angola, São Tomé e Príncipe e no Brasil, depois de terem levado uns meros seis anos a destruir todas as praças portuguesas, uma por uma, na Ásia. Pode-se mencionar um: se bem que os homens holandeses eram, biologicamente, mais fortes do que os portugueses, e melhor alimentados, os portugueses estavam melhor aclimatados aos trópicos. Isso explica a vitória portuguesa no Brasil, nas célebres batalhas dos Guararapes em 1648 e 1649. Mas já no Ceilão, também ele tropical, os portugueses não conseguiram levar a melhor.
Excluindo estas considerações, a razão básica que explicará o facto de Portugal ter conseguido manter uma parte tão extensa do seu império, mesmo após todas estas décadas de conflito, é a de que os portugueses, mal nutridos, preguiçosos, tudo isso e muito mais, ganharam nas raízes profundas enquanto colonizadores. Os holandeses não eram indiferentes a isto. Antonio van Diemen, governador-geral, escrevia, em 1642: "A maioria dos portugueses da Índia considera esta região o seu país-natal. Já não pensam mais em Portugal (...)". O cabo holandês Johann Saar acrescentaria: "Seja onde for que cheguem (...) os portugueses pensam estabelecer-se aí e nunca mais pretendem voltar a Portugal (...) Um holandês quando chega à Ásia pensa: quando o meu serviço militar de seis anos acabar, volto para a Europa (...)".
Mutatis mutandis, a colonização do Brasil durante os efémeros anos de ocupação holandesa foi uma árdua tarefa. Maurício de Nassau, governador no Brasil holandês, avisou por diversas vezes os seus superiores em Haia e Amesterdão de que, a menos que enviassem holandeses, escandinavos ou até mesmo alemães para se substituírem ou misturarem com os colonos portugueses, estes manter-se-iam portugueses de coração para sempre. Regressando à Índia, relatos dão conta de que os indianos preferiam mil vezes negociar com os portugueses do que com os holandeses. Outro motivo de ordem social está directamente relacionado: os portugueses envolviam-se com indianas em muito maior escala do que ingleses ou holandeses, mais preocupados com a pureza de sangue. O catolicismo e as missões religiosas ajudaram a cimentar a posição portuguesa nestas terras longínquas. Embora coercivamente, os portugueses conseguiam implementar a sua religião, e língua, de modo mais fácil e profundo. Antonio van Diemen diria: "Os missionários portugueses são muito superiores e os seus padres papistas mostram muito mais zelo e energia do que os nossos pregadores leigos (...)". Mesmo nos locais dominados pelos holandeses, frequentemente as populações se esquivavam aos ritos protestantes e seguiam algum padre português às escondidas, rezando a missa e baptizando os seus filhos.
Na língua, os portugueses levaram a eterna vantagem sobre os seus rivais. Uma vez que começaram primeiro os descobrimentos, os portugueses levaram a sua língua através dos mares, da América à Ásia, passando por África. O português tornou-se a primeira língua franca do comércio e dos negócios ou, em alguns casos, uma adaptação do idioma, que originaria os diversos crioulos. Na altura em que foram substituídos pelos holandeses em diversos domínios, a língua portuguesa já estava de tal forma implementada e enraizada que os holandeses não conseguiram erradicá-la. Durante os vinte e quatro anos de ocupação holandesa no nordeste brasileiro, a população local recusou-se obstinadamente a aprender o holandês. Em Angola e no Congo, a maioria dos escravos manteve a língua de Camões, não fazendo qualquer esforço para aprender a língua dos seus senhores. Ironia das ironias, a supremacia da língua portuguesa sobre a de Vondel é observada na Batávia, a capital colonial holandesa. Os portugueses só aí estiveram como prisioneiros de guerra, contudo, um dialecto crioulo português foi introduzido por escravos e criados domésticos a ponto de ser aprendido pelos próprios holandeses que consideravam uma honra saber falar outro idioma. A cultura do povo holandês assim o explica. Cultura essa que jogou contra eles neste aspecto. Aliás, o português influenciaria o idioma africânder na África do Sul, língua de origem maioritária holandesa.
mark, vc quer matar me cegar? kkkkk *brinks* vc sabe que eu AMO seus textos históricos e esse nossa, muito bacana! vc escreve tão bem, com tanto detalhe! eu fico deliciado aqui com isso! deve ter dado muito trabalho escrever isso tudo eu imagino..
ResponderEliminarAcho que já falei isso pra vc mas ainda bem que vcs conseguiram correr com os holandeses daqui. Hoje o Brasil não seria nem metade desse país imenso que é. Obrigado aos portugueses :D
Abraços!
LOL, Ty, pelos vistos não ceguei. :D
EliminarMuito obrigado! É importante receber todo esse feedback positivo. Eu sei que são dissertações massudas, pouco apelativas, etc, mas realmente escrever sobre História é mais do que um desafio: é algo que faz parte de mim. Escrevi este texto hoje de tarde, manualmente, como sempre, consultando alguma bibliografia de onde retirei as citações.
Os portugueses, por quem nutro amor/ódio, foram muito importantes por séculos e marcaram indelevelmente a humanidade com os seus heróicos feitos.
abraço.
E o primeiro Brasileiro que eu (Portugues) ouco (leio) dizer isso. Obrigado.
EliminarQue grande dissertação.
ResponderEliminarEu acho os detalhes humanos históricos deliciosos.
Percebemos como a História é feita de pequenas histórias e que tudo tem razões para ter acontecido de uma forma e não de outra, nem que seja porque estava sol tropical num dia de guerra.
Muito obrigado, Alex. :)
EliminarTentei dar alguma 'humanidade' a este grande conflito. E estás certíssimo: um mero dia de sol, nos trópicos, poderá ter dado a vitória a Portugal.
Texto magnifico. Me senti dentro dos fa(c)tos que você nos escreveu. História portuguesa é muito rica mesmo. Não sabia que vocês tiveram uma longa batalha com os holandeses. Perderam algumas,e venceram outras. O Brasil foi uma destas vitórias. Engraçado isso, que a Ty disse, a colonização portuguesa no Brasil foi importante para manter o Brasil nos moldes que é atualmente,todo grandão. Isto tb se deve a chegada da família real portuguesa. Li sobre isso no livro 1808.
ResponderEliminarQuero um texto sobre isto também hein. Vou cobrar! srs :)
Olá Tiago.
EliminarMuito obrigado por gostares. :)
Tivemos uma longa e custosa guerra com os holandeses. No final, todos ficaram bem equilibrados. O Brasil foi um caso curioso. Conseguimos expulsar os holandeses graças à ajuda dos indígenas e, claro, pagando uma choruda indemnização de guerra.
O tamanho do Brasil é fruto da administração portuguesa sempre muito centralizadora. De outra forma, o Brasil ter-se-ia dividido em vários países após a sua independência, à semelhança do que ocorreu na América espanhola. A língua portuguesa, que facilmente se propagou graças à acção dos jesuítas e à sua obrigatoriedade com Pombal, ajudou a essa união. A transferência da Corte foi outro factor que ajudou à identidade brasileira.
Claro! Hei-de escrever mais pormenorizadamente sobre o Brasil durante esta guerra. :)
Adorei como sempre, só tenho pena que os Holandeses não tivessem invadido Lisboa :(
ResponderEliminarTinham conquistado Portugal, e hoje creio que estaríamos bem melhor ;)
Abraço amigo Markito e Bom Domingo
Ahahah, eles estavam mais interessados no nosso vastíssimo império colonial e suas riquezas. :)
EliminarMas, olha, os franceses tentaram dois séculos depois, sem sucesso. :)
abraço, Francisco, e um excelente domingo para ti.
Esta dissertação inserida num post num blogue é dos melhores textos que já li pela net. Os meus parabéns!
ResponderEliminarJC
Muito obrigado. :)
EliminarOlha lá os vastos impérios que existe em Portugal. Por vezes, é com cada império que cruza connosco na rua ;)
ResponderEliminarFranceses não. Gosto mais de loiros :D
ehehehehehehe
LOOOL, só tu. :D
EliminarTambém não ligo nada à França. É país que não me seduz. Sou 'todo' anglo-saxónico. :)
excelente, Mark, como sempre, e referires que escreveste isto numa tarde, consultando uma ou outra bibliografia, é de louvar. tens um dom, um gosto por História que em poucos encontrei.
ResponderEliminarse tivesses sido um dos autores dos meus livros de história do 10.º ao 12.º, teria tido mais que um 15...
boa semana.
bjs.
Muito obrigado, Margarida. :)
EliminarSim. De facto, já tinha um esboço mental do que escrever, já sabia que livros consultar para retirar as citações e algumas datas, afinal, é o período que mais suscita o meu interesse (Idade Moderna).
Oh, tiveste uma nota excelente! 15 é bastante bom! :)
um beijinho.
Brilhante! Magnifico! Não tenho palavras...
ResponderEliminarMuito obrigado, João.
EliminarAdorei. É um tema que pouco conhecia e fiquei bastante elucidado. Gostei imenso dos pormenores, que parecendo sem importância, acabaram por ser determinantes na evolução e desfecho destas guerras.
ResponderEliminarAbraço Mark.
Muito obrigado, Arrakis.
EliminarÉ um tema que me fascina. A escrita flui sem eu dar conta. Só depois reparo que é um texto para o blogue. E, olha, fica deste tamanho. :)
abraço, Arrakis.
Adoro estes teus textos! Sempre fui um apaixonado por história e gosto muito de ler estas tuas "dissertações".
ResponderEliminarContinua!
Grande Abraço ;-)
Oh, obrigado. Ainda bem que gostaste. :)
Eliminarabraço. :)
Olá Mark, tive três professores neerlandeses na Universidade Federal do ABC, em São Bernardo/SP, e já os havia consultado sobre a Guerra Luso-Neerlandesa, e a história contada nos Países Baixos é muito diferente do que sabemos aqui no Brasil. Alegam eles que o conflito terminou porque Portugal, que era mais frágil militarmente e economicamente, pagou pelo Brasil e Angola, além de abandonar os domínios na Ásia. Outra informação, Holanda é uma região no Reino dos Países Baixos, na realidade há duas províncias assim chamadas: Holanda do Sul e Holanda do Norte. Os portugueses e espanhóis comercializavam inicialmente com mercadores dessas duas regiões e acabaram generalizando todo um povo, assim como os brasileiros. Parabéns pelo blog!
ResponderEliminarOlá, Anónimo.
EliminarSim, eu sei que "Holanda" é uma região dos Países Baixos. Se reparar, no meu texto, refiro-me à "Holanda" pelo nome correcto: Países Baixos. Até podia ter sido mais preciso e designar de Províncias Unidas, o nome verdadeiramente correcto para se aludir aos Países Baixos daquele tempo.
Sim, Portugal pagou uma choruda indemnização aos holandeses no seguimento do tratado que estabeleceu a paz entre ambas as partes da contenda, mas não abandonámos, de todo, as nossas possessões asiáticas. Eles conquistaram-nas efectivamente.
Expulsámo-los do Brasil, de Angola e de São Tomé e Príncipe, mas, em contrapartida, pagámos milhões, sim, de outra forma teriam invadido Lisboa.
Obrigado. :)
É realmente engraçado generalizar uma nação pelo nome de uma ou duas províncias kkk Pelo visto foram os lusos e os espanhóis que se equivocaram e levaram esse erro para suas colônias. Agora começo a entender porque aqui no Brasil existem piadas sobre os portugueses rsss
EliminarNunca ouvi em lado algum que tinham sido os portugueses e os espanhóis a difundirem esse "erro", até porque, repare, os anglófonos dizem "Holland" também, a par de Netherlands.
EliminarNão seja preconceituoso. :)