29 de setembro de 2013

Quem Quer Ser... tomado por parvo.


   Como se sabe, o famoso programa televisivo Quem Quer Ser Milionário voltou ao pequeno ecrã. Não saber seria impossível. A RTP fez questão de bombardear tudo e todos com o regresso do seu formato por excelência ao horário nobre. Desta vez, com um detalhe especial: o concurso não viria sozinho; com ele, Manuela Moura Guedes, o rosto afastado, censurado, banido de uma estação sensacionalista, especificamente de um noticiário mesquinho e de parca credibilidade. Convém referir de que nada tenho contra a Manuela Moura Guedes. Nada contra, nem nada a favor. Retenho uma das suas afirmações pós-saída da TVI: o jornalismo tem de ser contra poder. Ora eu que nem estudo jornalismo, mas que por acaso até nem me importaria nada de seguir uma carreira nessa área (aliás, penso nisso), fiquei, digamos, perplexo. Querida Manuela, o jornalismo não tem de ser contra poder, a favor do poder, ou seja lá o que for: o jornalismo tem de ser imparcial. A menos, claro, que nos refiramos à TVI ou aos falecidos 24 Horas Tal & Qual. Vá, convenhamos, seria uma ofensa para o bom jornalismo que por cá se faz.

   Gosto de concursos. Já miudito, testava os meus conhecimentos neste tipo de programas em que a RTP aposta de quando em vez. Têm interesse. Agora até poderia dizer que acerto em cerca de oitenta por cento das perguntas, mas não o irei fazer. Chamar-me-iam convencido e o elogio em causa própria é do pior que há. Participar também está fora de questão. Aparecer na televisão será a apresentar um noticiário ou um qualquer programa das tardes ou das manhãs. Sim, talk-shows incluídos, não me importo nada! Ganha-se bem, trabalha-se pouco (falar, fazer umas palhaçadas, não é trabalhar) e ainda se tem uma notoriedade incrível. Ah, e dá sempre para impressionar miúdas, han.

    Damos por barato de que há todo um processo rigoroso na escolha das perguntas, acreditando mesmo que são dados garantidos, e o contrário nem nos passará pela cabeça. Estaremos certos?
   Não vejo televisão, contudo, o interesse pelo programa levou a que fosse pesquisá-lo no sítio da RTP na internet (agora está na moda ser-se contra os estrangeirismos, sobretudo os anglicismos, qual febre pela pureza linguística). De uma assentada, vi todos os episódios, ou melhor, vi até ao penúltimo porque perdi a vontade de assistir ao último. O que se passou? Resumidamente, uma participante estava a jogar para a oitava pergunta, de dois mil euros, que era a seguinte:

   "Complete o provérbio: Dezembro frio, calor no... A: domicílio; B: aconchego; C: abrigo; D: estiLo"
   
   Nunca fui bom em provérbios. Ao ler a pergunta e as quatro opções, o estilo realmente dizia-me algo. A senhora fez um raciocínio lógico: domicílio não seria porque, à partida, os provérbios são o expoente da sabedoria popular que não costuma passar da simples gíria; abrigo remetia-a para os 'abrigos' dos Aliados na II Guerra Mundial (posição da qual discordei porque abarca também outro significado: o de abrigo propriamente dito, algo contra o frio onde nos 'abrigamos', passo a expressão); estilo não fazia qualquer sentido, logo, decidiu-se pela hipótese B, aconchego. Errou, claro. A resposta correcta foi a D, estilo, ganhando quinhentos euros.

   Fiquei com cócegas cerebrais e fui investigar junto da avó, que me disse imediatamente: "Dezembro frio, calor no ESTIO". Pesquisei na net e vi uma série de pessoas, indignadas, que reclamam junto da RTP para que corrija o enorme erro que cometeu, dando de novo uma oportunidade à concorrente injustamente afastada. Estio significa quente, calor; neste caso, Verão. Mais ridícula do que a situação em si foi a explicação de Moura Guedes perante a admiração da senhora e de um membro do público: estilo porque significa escolher a indumentária (vocábulo utilizado pela apresentadora, correcto, mas que numa situação desta natureza ainda torna tudo mais cómico) para... o frio. Então, não deveria ser algo relacionado com o calor? A expressão corporal de Manuela Moura Guedes, que acredito agora de que cedo se apercebeu de tudo, ainda é mais hilariante. Como se costuma dizer: se não fosse tão infeliz, teria piada.

   Não é algo inédito ali para os lados do Cabo Ruivo. Aqui há uns anos, a estação cometeu um erro semelhante numa das edições do, imagine-se!, mesmo programa, em que uma concorrente foi induzida em erro com a seguinte pergunta: "Qual das seguintes personagens de banda-desenhada foi mais vezes recriada no cinema? A: Zorro; B: Super-Homem; C: Tarzan; D: Batman."  A senhora escolheu a resposta C, Tarzan, no entanto, o programa diria que era a resposta A, Zorro. Deu em chatices. A senhora estava convencida da resposta, a qual sabia efectivamente, comprovando-se de que a opção correcta era a CEntrou na justiça com um pedido de indemnização. Eu sei disto porque fiz um caso prático na faculdade a propósito desta situação verídica. Resultado: o STJ, salvo erro, num acórdão extenso, considerou de que se tratava de uma mera obrigação natural, acrescida de um termo de participação que todos assinam antes, ao que parece. Baseando-se no artigo 1245º do CC, que nos diz que as apostas e os jogos não são contratos válidos nem constituem fonte de obrigações civis, com remissão para o 402º CC, que enuncia expressamente que as obrigações naturais fundam-se em meros deveres de ordem moral ou social, não sendo - e isto é muito importante - judicialmente exigíveis. Fez-se uma ressalva ao mero 'dever de justiça' que consta na última parte do artigo, o que não teve força por si só. Julgou-se a acção improcedente.

    Lamentável. Um erro igual nos mesmos moldes. Há quem não aprenda. Melhor, para quê emendar? A lei dá cobertura, inclusive...

    Pensem duas vezes antes de concorrer a isto.

24 de setembro de 2013

Introdução e Princípios do Direito das Obrigações.


   Reflectindo acerca do direito e da sua relevância prática, apercebi-me de que raras vezes abordei questões relacionadas com a normatividade. No mínimo estranho, sendo a minha área. Do pouco que escrevi, centrei-me sobretudo nas ideias políticas e na sua contribuição para o direito, fugindo consciente ou inconscientemente dos ramos, do âmago.

   Ontem, procurando espaço na minha estante de livros para as aquisições que se aproximam, dei com alguns manuais de direito das obrigações. Na época, era uma das disciplinas que mais repugnância me causava. Sou publicista de raiz. Abomino o direito privado (ou detestava). Há um nexo de causalidade. O direito público e a história do direito têm pontos em comum e, de certa forma, têm uma relação. Porém, e passada que está a maioria das cadeiras privadas, decidi retirar de dentro o pouco de civilista que existe (e há bem pouco - asseguro-vos)  para escrever algo com interesse.

   Começarei por explicar o que é uma obrigação. Uma obrigação é um dever de prestar, de fazer algo ou ainda de não fazer (omissão). Nesta relação jurídica bilateral, temos um devedor e um credor. Em tempos, falava-se de direito de crédito, contudo, essa designação não está institucionalizada. O direito das obrigações está regulado no livro II do Código Civil, em cujo artigo 397º aparece a definição de obrigação. Obrigação é o vínculo estabelecido entre o devedor e o credor, sendo que o primeiro fica adstrito a cumprir a prestação perante este último. O direito das obrigações não é um ramo estanque: está intimamente interligado a outros ramos do direito, nomeadamente o direito da família, sucessões e até, inclusive, os direitos reais - a linha que separa o direito das obrigações dos direitos reais é bastante ténue. Há, aliás, obrigações de natureza real, conforme o disposto no artigo 413º do CC.

   Há princípios básicos e fundamentais no direito das obrigações. Um desses princípios, porventura o mais importante, é o princípio da autonomia privada. O direito das obrigações é o direito dos particulares. É o direito que eu tenho de celebrar um contrato com outrem, por exemplo. É um direito que não está regulado pelo direito público. O artigo 405º do CC aborda precisamente essa liberdade contratual, estando o conteúdo da prestação, evidentemente, dentro dos limites impostos pela lei. Há uma vinculação à juridicidade, atenção. Um contrato que viole a lei injuntiva é nulo. Importa referir que há autonomia privada somente nos direitos disponíveis e jamais nos direitos indisponíveis. Num exemplo extremo: não posso vender o meu corpo a B, suponhamos, através de contrato.
   Sendo uma relação jurídica entre particulares, afere-se daí que estão em pé de igualdade. Nem sempre é assim, daí a preocupação do legislador em proteger, de certa forma, a parte mais débil da relação contratual. Tenta-se proteger o contraente mais fraco. Logo, fala-se de uma limitação à autonomia privada, limitação essa que não consta do Código Civil, mas de legislação avulsa, como as Cláusulas Contratuais Gerais.

   Outro dos princípios que rege este ramo do direito é o princípio da boa fé. Este princípio dita que se pressupõe - e exige - que as partes adoptem entre elas um comportamento correcto, como dispõe o artigo 227º do CC. A boa fé conhece-se à luz do artigo 612º do CC: tendo em conta o conhecimento que o autor tem do prejuízo causado. Dentro da boa fé, distingue-se a objectiva da subjectiva. Na primeira, há direito à resolução do contrato se houver uma alteração anormal que afecte o conteúdo do negócio jurídico, desde que seja afectado o princípio geral da boa fé (437º, nº 1 CC). A segunda, baseia-se em padrões de razoabilidade, éticos. Não importa tanto o conhecimento efectivo da possibilidade de lesar; importa a potencialidade desse conhecimento.

     Por último, resta-me falar do princípio da responsabilidade patrimonial. No âmbito das obrigações, não há responsabilidade pessoal. Essa existe no direito penal, referindo um exemplo. No direito romano, existia. Muitas vezes, entrando o devedor em incumprimento, o credor, passado todo o processo executivo romano, enfim, fazia seu o devedor, como escravo, ou exigia a sua morte. Num cenário de pluralidade de credores, esquartejavam o corpo do pobre devedor e dividiam-no entre si. Bom, isto seria impensável num Estado de Direito. O que há? Responsabilidade patrimonial. Perante as dívidas, respondem os bens de cada um. Como sabemos, ninguém é preso por dívidas, simplesmente. Surge o dever de indemnizar constante no artigo 562º do CC. Com isto pretende-se que seja restaurada a situação que existiria caso não tivesse ocorrido o dano.

   O normal que aconteça a uma obrigação é a sua extinção. As obrigações extinguem-se com o seu cumprimento. Tenho de prestar X a B, cumpro, terminou a obrigação.

     Muito, mas muito mais haveria a dizer sobre o direito das obrigações. Foi uma brevíssima introdução que espero e desejo útil. No dia-a-dia não temos noção das implicações práticas que este ramo do direito tem nas nossas vidas. A par do que escrevi, quando vamos a uma pastelaria e compramos um bolo, estamos a celebrar um contrato. Teremos consciência disso?

19 de setembro de 2013

O Mordomo.


   Aproveitando estes primeiros dias de aulas em que nem todas são leccionadas, ainda, fui ao cinema depois do almoço. Em todo o caso, poderia ir ao final da tarde. A essa hora começa a arrefecer e não se torna tão agradável.

  O P. entrou no politécnico, revestindo esta ida ao cinema numa espécie diferente de comemoração. Escolhemos, evidentemente, os cinemas UCI no El Corte Inglés. Optámos pelo Mordomo por diversos motivos: gostei da sinopse, além de conter uma participação especial da Mariah. Segundo o P., o filme tem recebido boas críticas, o que, assistindo, dá para compreender.

   Começando pela história, não querendo desvendar nada de forma significativa, aborda a segregação racial nos E.U.A, ao longo do século XX. Nesse sentido, o enredo desenvolve-se em torno de um pequeno rapaz, afro-americano, nascido numa exploração agrícola de senhores brancos, que sente desde cedo o peso da discriminação. Rolando pelas desventuras da vida, acaba na Casa Branca como mordomo dos sucessivos presidentes, trabalhando para as várias administrações por mais de três décadas. Este papel coube a Forest Whitaker que o desempenhou com distinção. Está rigorosamente de parabéns.
   A sua esposa, no filme, é Oprah Winfrey. Não considerei a actuação como algo fora de série. Pouco esforço fez para ser diferente. Quase que vi a apresentadora versão dona de casa / classe média. Não esteve mal, antes isso. Momentos houve em que creio mesmo que esteve bem, acima do que esperava.

    O filme conta com inúmeras participações especiais, nomeadamente os colegas de trabalho do mordomo e todo o staff presidencial, incluindo os presidentes e respectivas famílias. Nomes como Robin Williams, Lenny Kravitz, Jane Fonda, como primeira-dama de Ronald Reagan, etc. Aliás, pelas interpretações, quase que poderia dizer que Ronald Reagan foi um bom presidente. Para os norte-americanos, com certeza que sim; para os restantes terrestres, visto que o Presidente dos E.U.A é meio como um líder mundial, tenho as minhas dúvidas. No filme, inclusive, Reagan é tomado por momentos de lucidez... Nem sempre a sua consciência concorda com várias das políticas adoptadas por si...
   A Mariah, pois bem. É importante que se diga que não é actriz, nem de raiz, nem de coisa nenhuma. É cantora. Aventurou-se pelo cinema, em 2001, com Glitter, e não correu lá muito bem. Se é verdade que a sua interpretação não é memorável, não é menos verdade de que todos os actores, até os melhores, têm maus filmes; todos os cantores, até os melhores, lançaram péssimos álbuns. Ela não é diferente e as críticas que lhe foram dirigidas escondem o respeito que, no fundo, fãs e não fãs nutrem. Só criticamos aqueles de quem esperamos o melhor. Entendi eu assim a maledicência em torno de Billie Frank, a sua personagem em Glitter, e a Mariah, que se esforçou a partir de então para dar tudo o que sabe - e a mais não é obrigada. Fez de assistente social no filme Precious, em 2009, sendo extraordinariamente elogiada, e não foi uma mera participação especial. Falou, falou, muito e bem. Falou tanto e tão bem que permitiu a Mo'Nique uma das cenas que viria a dar-lhe o ingresso para o Óscar de Melhor Actriz Coadjuvante no ano seguinte. No Mordomo, nem me recordo se fala, mas o seu papel tem um impacto tal, logo no início, que marca o drama até ao final. É impossível esquecer-se daquela mãe quando deparamos com o mordomo velhinho e sofrido.


   Teria mais uma aula. O P. fez o favor de me acompanhar até ao campus universitário. Pelo meio, parámos no Campo Pequeno a conversar. O vento, todavia, estava muito desagradável. Deu para comermos umas pipocas que distribuíam na rua. 
  Irá tratar da matrícula nesta semana que se avizinha, agora que tem a confirmação de que entrou. Está empolgado; não noto alterações substanciais no seu humor, contudo. É bom. Não cria expectativas como eu quando entrei. Saem todas defraudadas.


   A pilha de livros que já tenho por comprar...

15 de setembro de 2013

Aulas.


    Amanhã recomeçam as aulas. Contrariamente ao que muitos possam pensar, não gosto particularmente de ir para a faculdade. Gosto de estudar; não gosto de passar horas trancado em anfiteatros / salas. Pudesse ser avaliado em qualquer outro lugar e certamente optaria por esse método.

  As matrículas arrancaram mais tarde devido a sucessivos atrasos no cumprimento. Um número significativo de alunos. Por essa mora, dividiram oficialmente as três prestações trimestrais em nove mensais, uma despesa a mais no encargo de muitos estudantes. Compreendo ambos os lados. A faculdade necessita das propinas para se auto financiar. Estando centenas de milhares de euros por receber, não é difícil deduzir que fiquem numa situação delicada, remetendo-me apenas aos salários. Contudo, não posso deixar de observar que em vários países europeus, recordando-me de momento da Noruega, o ensino superior é totalmente gratuito, incumbência do Estado norueguês e, por cá, do nosso.

    O P. só inicia as suas aulas no final do mês, princípios de Outubro. Este ano, felizmente, conseguiu entrar num instituto politécnico, depois de não ter obtido bons resultados nos exames nacionais do ano passado. Escolheu algo relacionado com... produção agrícola. Não me vejo a plantar batatas e a ordenhar vaquinhas... Enfim, o importante é que goste. Custa-me que tenha de sair de Lisboa. Não percebi bem os motivos, mas disse-me que aqui não há bem o que ele quer. Acho estranho... Num país totalmente centralizado na capital... Ele mora na região metropolitana, todavia, sairá mesmo do distrito, ficando num sensivelmente próximo. Que sorte! A maioria dos estudantes, de variadíssimas partes do país, vem para Lisboa; ele, lisboeta, sai! Assumo que me incomoda que fique longe. Temo que nos afastemos aos poucos. Conheço bem o ditado 'longe da vista, longe do coração' e é bem mais correcto do que à partida possamos imaginar. Além de que o facto de ser carinhoso, educado e gentil torna-o especialmente apetecível a essa cambada de esfomeados que anda por aí. Ele não é dado; é fechado, tímido, à primeira vista antipático, o que me conforta.
    Sair de casa é um desafio. Anda felicíssimo. Saberá se ficou, efectivamente, no dia dezoito. Quero que fique, apesar de tudo. Não estaria bem se tal não ocorresse. Ele tem a sua vida e eu a minha. Uma vez que não temos compromisso algum, o medo que me invade é o de que conheça alguém que se torne tão especial para si quanto eu, ou mais até. São ideias que surgem. Não que pense nelas a todo o instante... Sinto-me bem ao seu lado, realizado; é natural que receie perdê-lo.

    Sexta, à tarde, comprei o material. Velhas manias... Ano lectivo novo, pasta nova, estojo novo, tudo por estrear. Excitação, zero. Já cansa ser estudante, cumprir o que terceiros querem. Creio que ultrapassei esse patamar. Não tenho urgência em acrescentar o drº ao nome; quero, sim, pôr de lado a vida de universitário, etapa que está a ser bem mais monótona do que julgava. Antes descobrisse prazer numas cervejinhas... Vale o estojo que é da O'Neill, preto, com mistura de amarelo, verde e laranja, em riscas, lindo. Lindo e caríssimo. Combina com a pasta verde.

    Só irei na terça. Não tenho paciência para pinguins a humilhar miuditos que acabam de entrar cheios de sonhos. Aquilo deve estar um nojo, como de costume no primeiro dia. Se algum professor leccionar, paciência. Não há crise.

       É... sou um veterano diferente. E ainda bem.

10 de setembro de 2013

Momentos.

 
   Na terça-feira passada, achámos por bem ir à praia. Vínhamos falando há algum tempo acerca das férias que o P. passou com a família. Contou-me que costumavam frequentar a praia da Parede, local que o marcou indelevelmente a ponto de não mais ter regressado desde o falecimento do pai. Por algum motivo, decidiu levar-me lá.

    Às nove, apanhámos o comboio que parte do Cais do Sodré e, algumas estações depois, chegámos ao nosso destino. Durante o percurso pelos passeios de alcatrão que nos levariam até ao areal, vimos imensas pessoas idosas, algumas das quais com uma pasta cinzenta que iam aplicando ao longo da pele, especialmente nas articulações. O P. explicou-me, pacientemente, de que se trata de uma espécie de argila terapêutica para os ossos.
   Agradou-me o mar sem rebentação. A maré estava baixa, descobrindo-se rochas e pedras por toda a extensão da praia. Pouco ficámos nas toalhas. Quando dei por nós, estávamos pé ante pé sobre os íngremes pedregulhos, cuidadosamente, não fôssemos cortar a pele (o que acabaria por lhe acontecer). Descobrimos um sulco onde, apoiados em determinadas pedras, podíamos mergulhar. Claro que me aventurei nas mais seguras e pequenas... Ele, evidentemente, atirou-se das mais perigosas, preocupando-me desnecessariamente.
    Não será preciso dizer que, à tarde, ele já tinha imensos cortes nas pernas, nos pés e até no peito! Todavia, à medida em que andávamos sobre as rochas, abria o caminho, dando-me a mão. Talvez por isso tenha saído intacto. 
    Pressenti uma certa melancolia no seu olhar. Provavelmente lembrar-se-ia do pai, das brincadeiras entre ambos. Não toquei no assunto. Consegui distraí-lo. Às tantas brincávamos à entrada da água, atirando algas um contra o outro e rindo. 
    Vi uma colega da faculdade. Não sei se ela terá reprovado porque, de facto, não me recordo da sua figura neste último ano. São tantos os rostos... Cumprimentou-me educadamente, trocando breves palavras sobre o início iminente das aulas. Gostei da sua discrição. Pensei que repararia no P. ou que comentaria algo com a mãe (suponho que fosse). Pelo contrário, agiu naturalmente. Conquistou a minha simpatia.
     Regressámos a meio da tarde.


    Na última sexta-feira, seguindo a sugestão da Margarida, fomos assistir a Sala VIP, de Jorge Silva Melo, no Teatro da Politécnica. Falei-lhe da peça e, curiosamente, ele não estava a par. Ficou incumbido de fazer a marcação (os primeiros dias seriam gratuitos). Assim foi. Hora acordada, vinte em ponto. O P. já havia levantado os bilhetes. Como era cedo, demos uma volta pela zona, conversando, e descemos ao miradouro de Alcântara. Foi um início de noite maravilhoso.
    Quanto à peça em si: o P. não gostou muito; eu gostei. Não querendo entrar em pormenores (não sei se, porventura, alguém assistirá), mas já entrando, é bastante forte e dramática. Aborda a vida de cantores líricos e é passada numa sala de aeroporto que, a julgar pelas cadeiras, às vezes parece a sala de espera de uma clínica. Há homossexualidade, há assassinatos, palavrões e até nudez (de um dos actores - o que não é raro em teatro). É desconcertante e muito pouco óbvia. Tem momentos em que dá para rir, incluindo cenas simuladas de sexo que, enfim, só visto! Eu aconselho.
     Está em exibição no Teatro da Politécnica, como referi acima, até dia 19 de Outubro, nos dias úteis.


    Para hoje, marcámos mais um piquenique (muito gosta de piqueniques...). Desta feita, no Parque da Bela Vista, ou seja, uma zona agradabilíssima da cidade (não!). Não que seja desagradável; os orientes não me seduzem.
    O P. levou uma das suas saladas mirabolantes com todos aqueles ingredientes que ele gosta de misturar. Da minha parte, levei dois pequenos hambúrgueres de peru com salada de alface e tomate. Almoçámos num simpático (embora desértico) parque de merendas. À tarde, ainda tive de jogar badminton com ele... Meteu na cabeça que tenho de jogar àquela coisa! Não adianta expor os meus argumentos de que prefiro exercitar o cérebro... não. Naturalmente, não corri (nem ele quereria). Aliás, se me ouve arfar, fica aflito. Pouco jogámos. Minutos depois, sentámo-nos sobre a relva, descansando à sombra de uma árvore. Apoiei a minha cabeça no seu ombro.
   Terminámos o dia no parque de diversões das crianças. LOL Estava vazio. Ele, numa teia gigante que dava acesso a dois escorregas de metal, igualmente enormes e medonhos; eu, no baloiço de pneus. :) Ainda me desafiou para que me enfiasse naquela teia horrorosa, assegurando-me de que estaria atrás de mim a amparar-me, mas nem assim! Nunca gostei de parques. Em criança, tinha imenso medo. Uma vez, com oito anos, desci num escorrega e bati com as nádegas no chão. Tanto insistiu que acabei por entrar num escorrega amarelo, o menor de todos. Isto é tão patético! LOL Lá regressei ao meu baloiço de pneus enquanto ele subia e descia a teia. Parecíamos dois miúdos de dez anos.
    Enquanto o via, destemido, trauteei a música Always Be My Baby.

    Dizem que o encanto está nos pequenos momentos. Corroboro.

5 de setembro de 2013

As ideias políticas do Islão.


   O desconhecimento que paira nas sociedades ocidentais quanto ao Islão conduz ao preconceito baseado no medo, aliás, que se verifica em relação a tudo o que nos é estranho. Enquanto uns temem o Islamismo, confundindo-o com o terrorismo, como se do mesmo se tratasse, outros procuram desvendá-lo, respeitando-o na sua essência, conduzindo-se pelo fascínio que um conhecimento aprofundado pode suscitar. Da minha parte, o respeito existe até ao limiar dos direitos humanos. Tudo o que ultrapasse essa fasquia merece a minha mais veemente reprovação.

   O Islão nasceu, como ideia política, no ano 622 da nossa era, na cidade de Medina (Madinat al-Nabi - a cidade do profeta), local para onde Maomé foi obrigado a instalar-se. O Islamismo assenta fundamentalmente em dois pilares: o Corão, livro sagrado - ensinamentos e regras transmitidas por Deus ao profeta - e a Suna (a tradição de Maomé). A religião, na maioria dos estados muçulmanos, confunde-se com o próprio Estado, falando Louis Gardet, perito na história do Islamismo, do Corão como «o código revelado de um Estado supranacional». Os crentes, os islâmicos, são integrados na comunidade (Umma, que deriva de Umm - mãe). A palavra Umma é das mais importantes de toda a doutrina islâmica, uma vez que se refere ao conjunto de homens aos quais Deus enviou um profeta, acreditando na sua palavra, e unindo-se a Ele através desse mesmo profeta, no caso, Maomé.

   No plano da teoria, a cidade muçulmana é uma teocracia igualitária (não existindo, no Islão, a presença de sacerdotes). A fonte do poder legislativo (amr) é o Corão; o poder judicial (fiqh) pertence a todo o muçulmano que, conhecendo o Corão, sabe aplicar as sanções que o mesmo estabelece; o poder executivo (hukm), que é ao mesmo tempo civil e canónico, pertence a Deus, e é exercido através de um único intermediário. A comunidade jura obedecer a Deus perante este seu representante que não tem poder legislativo, nem judicial. Não há outra autoridade temporal que não Deus (isto explica, por exemplo, que não exista uma figura semelhante à do Papa no Islamismo). Mais uma vez citando o grande professor Louis Gardet: «O poder vem de Deus e permanece nele, sendo exercido por Ele através de um instrumento humano». Consequentemente, visto que a escolha desse representante de Deus não pertence aos humanos, mas ao próprio Deus, o êxito absoluto da sua regência é causa justificativa da legitimidade. A contrapor a este absolutismo divino está a igualdade entre os homens, assente sobre o nada que é a natureza humana; os homens são iguais entre si porque a comunidade foi constituída pela vontade de Deus. Nesta teoria temos uma ideia primária de democracia, embora fossem reconhecidos os doutores  (consenso dos doutores, ijma). Estes teriam como função elucidar ou aplicar à comunidade os princípios revelados pelo profeta. Todavia, mais uma vez temos presente a ideia de igualdade objectiva: pode ser doutor todo aquele que esteja apto a conhecer os escritos divinos.

   Após a morte de Maomé (632 d. C.) surgiu o problema pela dificuldade em designar um sucessor, o que originou importantes cisões no seio do Islamismo. As mais conhecidas operaram entre sunitaskharigitas e schiitas. A polémica em torno do califado (que deriva da palavra khalafa, por sua vez, em português, vir depois) tornou-se uma questão central na ciência política muçulmana e manter-se-ia (como se verifica) até aos nossos dias. Ibn Khaldun (1332 - 1406), importante historiador islâmico, descreveria o califado como uma função criada para o bem geral, sob vigilância do povo. Parece-me uma visão algo premonitória, e ainda hoje longe de aplicação nas sociedades muçulmanas, de algum poder do povo. Esta visão progressista tem explicação: contrariamente ao que se possa pensar, a sociedade islâmica não viveu isolada: houve importantes contactos com a Grécia Antiga e até com o Ocidente contemporâneo (do qual as viagens e os contactos entre portugueses e muçulmanos, durante a era dos descobrimentos, são demonstrações do mesmo). Se o mundo muçulmano acabou por se fechar sobre si, não devemos atribuir este facto apenas a um esbatimento na continuidade dogmática; efectivamente, as trocas comerciais foram paralisadas pelo Ocidente (os portugueses, aqui, com uma machadada decisiva ao se substituírem aos árabes no famoso comércio das especiarias, criando a rota marítima que aniquilaria por completo a antiga rota terrestre). Outro motivo há que poderá explicar este declínio da influência islâmica: progressivamente, a ofensiva cristã iria desmantelar todas as investidas do Islão no Ocidente, reconduzindo este último ao seu reduto principal no Médio Oriente.


A todos que dominem o francês e que pretendam aprofundar conhecimentos acerca do tema supra abordado, aconselho a leitura do livro La Cité Musulmane (vie sociale et politique), 1954, de Louis Gardet. Infelizmente, não conheço nenhuma tradução para a língua portuguesa. Esta obra foi essencial para uma oral de melhoria no âmbito da disciplina de História das Ideias Políticas, do 1º ano do curso.