18 de outubro de 2017

A nódoa negra.


   Debrucei-me, em Junho, sobre Pedrógão. Aquela mortandade apanhou-me de surpresa. Não julguei ser possível ver morrer tanta gente em dias, uns nas suas casas, outros encurralados pelo fogo enquanto dele tentavam fugir. Logo aí, dei-me conta do rotundo falhanço do Estado português e das instituições, um descompromisso inadmissível com a segurança dos cidadãos e com a sustentabilidade e o ordenamento das nossas florestas. Quatro meses depois, repetiu-se a tragédia, e devo dizer que o que mais me custou foi ver a leveza com que o Governo encarou o fim de semana mais assombroso da história recente. Vi um Primeiro-Ministro calmo, quase que relativizando o sucedido, e uma Ministra da Administração Interna que fazia finca-pé, insistindo em manter-se no cargo, quando tutelava a pasta que lhe teria permitido adoptar todas as medidas necessárias de prevenção para evitar os fogos e os seus efeitos devastadores - num país em que os incêndios são recorrentes.

   A reacção da oposição foi a única possível. Não é só a MAI a responsável. Os ministros são politicamente responsáveis perante o Primeiro-Ministro, que encabeça o executivo. Em última instância, a responsabilidade não pode ser negada ao Chefe do Governo. No seguimento dessa dupla responsabilização, Ministra / Primeiro-Ministro, naturalmente toda a estrutura governativa é posta em causa, o que justifica, da parte do CDS-PP, uma moção de censura, que, ao que consta, será votada favoravelmente pelo PSD.

   O CDS tem sido coerente nas suas decisões. Assumiu-se como verdadeiro partido da oposição, a meio da crise de credibilidade do PSD, e Assunção Cristas, já em Junho, com Pedrógão, havia sido implacável quando criticou a actuação do Governo e a aparente desresponsabilização face a uma tragédia sem precedentes. A moção de censura enquadra-se bem como instrumento de ultima ratio (artigo 194º, número 1 da CRP). Aprovada com maioria absoluta, implica a queda do executivo (artigo 195º, número 1, alínea f)). É bem pouco provável que tal aconteça, porque os partidos que já anunciaram que a votarão favoravelmente, CDS-PP, o proponente, e PSD, não reúnem a maioria exigida pela Constituição, ou seja os 116 deputados. Quando a queda do executivo está afastada, o que parece ser o caso, há uma interpretação a fazer da moção de censura: para o CDS-PP, o Governo não tem condições para se manter em função - daí que não o possa voltar a fazer (propor outra moção) até ao término da legislatura. Sendo a Assembleia da República soberana, a rejeição da moção dará novo fôlego ao Governo, uma vez que o parlamento reitera, assim, a sua confiança no executivo (não confundir com a moção de confiança, cuja iniciativa parte do Governo). Para que a moção acarrete a demissão do Governo, alguns deputados da extrema-esquerda teriam de se aliar à direita, o que não é razoável, não obstante os acordos entre o PS, PCP-PEV e BE nada preverem quanto a cenários semelhantes. Admitindo que alguns deputados votassem a favor da moção e que o Governo caísse, ou mesmo que António Costa apresentasse a sua demissão ao Presidente da República, as novas eleições poderiam reforçar a representatividade parlamentar do PS.


     O discurso do Presidente da República foi duro, e deixou recados ao Governo. A remodelação governamental, cirúrgica ou não, foi dita entrelinhas. Veio o merecido pedido de desculpas aos portugueses, e o Presidente, que não tem quaisquer competências executivas, percebeu que essas palavras eram merecidas àquelas populações, num gesto de humildade que o Governo não soube ter. Também, como figura máxima da hierarquia do Estado, vem o reconhecimento de que este falhou na salvaguarda da segurança e da vida dos cidadãos. Pontos para Marcelo, fracassos para Costa. O pedido de demissão da MAI, junto do Primeiro-Ministro, veio ao encontro dos apelos do Presidente. Constança Urbano de Sousa estava desacreditada perante a opinião pública, profundamente fragilizada desde Pedrógão. Creio que tomou a decisão certa, até para preservar um pouco da sua imagem pública, desgastada após tantos desaires políticos.

     Deve, nesta matéria, haver um consenso político entre os partidos com responsabilidades governativas. Ano após ano, deparamo-nos com o flagelo dos incêndios; neste ano, em particular, com a perda de mais de cem vidas humanas, um número demasiado elevado para ser esquecido, deliberadamente ou não.

6 comentários:

  1. Muito bem dito, Mark! A soberba de António Costa tem de cair, caso contrário quem arrisca-se a cair é ele próprio e o seu governo!

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    1. Não gostei nada de o ver, e à sua gestão, nisto dos incêndios.

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  2. Gostei muito deste teu texto :)

    Grande abraço amigo

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  3. Estupidez, ignorância, omissão, canalhices políticas e a fins. Tristes dias estes ... Idade Média II

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