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23 de outubro de 2019

Les Plus Belles Années D'Une Vie.


«Le plus belles années d'une vie sont celles qu'on n'a pas encore vécues».


    Foi com esta citação do célebre Victor Hugo que Claude Lelouch deu continuidade à mais longeva história de amor do cinema francês, direi eu, que na sétima arte francesa sou um curioso. Refiro-me a Jean-Louis Trintignant e a Anouk Aimée, que surgiram pela primeira vez, juntos, no grande ecrã, no distante ano de 1966, naquele que foi primeiro de uma série de três filmes. Chama-se Un homme et une femme e foi aclamado universalmente. Vinte anos depois, em 1986, o mesmo Lelouch chamou os dois actores para uma sequência, de seu nome Un homme et une femme, 20 ans déjà. Retornam os três, qual poderoso triunvirato, para este filme que ainda não estreou em Portugal. Ontem, na Cinemateca, foi uma antestreia da antestreia, quase, por simpatia da Cinemas NOS.

  Eu não sabia da existência dos dois filmes que precedem este. Terei de os ver por aí. Lelouch terá pensado nisso e, ao longo desta encantadora longa de 2019, vai-nos presenteando com sobreimpressões do filme de 1966, que funcionam bem ao conferir consistência e autoridade à narrativa. Jean-Louis Duroc, nome do personagem principal, que coincide com o do actor, excepto no apelido, já não se recorda do que fez horas antes, mas mantém as memória do maior amor da sua vida bem acesas. Impossível deixar de fazer uma comparação com o filme de culto Diário da Nossa Paixão, um melodrama barato norte-americano, onde também temos um asilo e um idoso senil. Encontramos o mesmo aqui, mas com um toque de glamour que só os franceses sabem dar, ou não fosse o vocábulo um galicismo.




   A química entre os dois actores, Trintignant e Aimée vem justificar esta longa, que nos saca boas risadas e nos deixa com um olhar complacente e um sorriso terno nos lábios. Aquilo é o amor, o amor que sobrevive ao tempo e ao afastamento, que se matura. Não é o amor encalorado dos vinte e dos trinta. É o amor dos oitenta, das memórias, da história em comum, com as vestes de todos os problemas da terceira idade. Perante pessoas com uma envergadura tão grande, monstros sagrados do cinema francês, com um background tão significativo, pequenos clichés são perdoados.

   Em suma, eu não acredito realmente que, como disse Victor Hugo, os melhores anos sejam aqueles que ainda não experienciámos. Não sou dos que acham que a idade é uma maravilha e que envelhecer é fantástico. Envelhecer é bom porque implica que estamos vivos. Apenas por isso. O segredo está em, em face das circunstâncias, saber viver o melhor possível, com todas as limitações. Foi o que Anne fez, e Jean-Louis, por outro meio, recuperando algum do tempo perdido.

22 de outubro de 2019

Vivement Dimanche.


   Houve um sentimento de frustração que me acompanhou ao longo deste filme noir, a preto e branco, e é discutível o porquê de Truffaut se ter decidido pelo preto e branco estilizado em 1983. Talvez para imprimir à narrativa o carácter de verdadeiro filme de suspense, um policial à boa moda antiga. Em minha opinião, falhou como policial e como história de amor. Truffaut optou por nos deixar sobressaltados, nomeadamente na cena em que a secretária retorna da sua investigação e é surpreendida com uma bofetada. É-o ela e somo-lo nós. O mesmo se diz da cena inicial, quando vemos Barbara a caminhar despreocupadamente e, num ápice, estamos na cena do primeiro dos crimes. É esta arritmia na narrativa, esta quebra da lógica sequencial, que a reporta aos velhos policiais. 



   A história de amor falhou porque aquelas personagens - patrão e empregada - não conjugam. Nunca chegamos a equacionar uma relação entre dois. Porque é que Barbara se empenha tanto em ver esclarecidos aqueles crimes é pergunta que nunca vemos respondida. Amaria a Julien? Veria nele um porto seguro, um abrigo, após uma relação falhada? Personagem misteriosa, ela atravessa várias facetas ao longo da trama: secretária, actriz de teatro, prostituta encapotada e, por fim, num lado maternal, protectora de Julien. O interesse desta mulher reside nesses vários registos, não conseguindo nós fazê-la deter-se num único. Barbara é a super-mulher que carrega a investigação aos ombros.

   Qualquer uma das personagens é bastante inverosímil, assim como o são os diálogos ou os corpos das vítimas prostrados no chão. De policial, este filme é uma intriga quase caseira de um realizador renomado, de carreira irrepreensível, que já se permitia a afrontar as formulações e as convenções dos seus pares.

21 de outubro de 2019

Bon Voyage.


  Bon Voyage é um filme de 2003, com a belíssima Isabelle Adjani, Gérard Depardieu,Virginie Ledoyen e Grégori Derangère, que recua até 1940 e à invasão da França pelas forças nazis.

   É uma longa elegante, que pretende recuperar a magia do cinema de antanho, dos anos 30. Um projecto ambicioso do realizador, portanto. Oscila entre o drama e a comédia, a ligeireza e a densidade. Eu não estaria tentado a vê-la como uma reconstituição de um período espinhoso da história recente francesa, senão como uma história de amor, praticamente um triângulo amoroso, com nuances históricas, que se desenrola embalada pelo contexto da Paris daqueles anos tensos e atribulados, com as tropas de Hitler à porta. A sociedade parisiense refugia-se, então, no sul do país, a designava França Livre de Vichy.




   Eu diria que tem algum encanto pela opulência do guarda-roupa, dos cenários, e sobretudo pela actuação de Isabelle Adjani, teatral, num overacting mais contido, se o encararmos como uma narrativa romanesca. Faltou um equilíbrio entre a aparência e a substância, visto tratar-se de uma grande produção. Houve, efectivamente, o cuidado em criar algo que enchesse a vista, faltando-lhe, porém, aquele toque de magia que o deixaria inesquecível, um grande filme popular de excelência. A parte histórica poderia ter sido melhor aproveitada. Há apenas umas superficiais alusões a Pétain e a De Gaulle. Pela satisfação que me proporcionou e pela última cena, inteligente, bem idealizada, considerei-o uma boa opção da minha parte. Só lhe faltou ser arrebatador.

18 de outubro de 2019

Sans toit ni loi.


  Esta longa de 1985 foi a melhor de Varga, das que vi, e um dos melhores filme deste festival de cinema francês. Nela, a realizadora francesa falecida recentemente debruça-se sobre o feminismo pela negativa. Se nos demais que vi, seus, a protagonista termina bem, triunfante (particularmente em L'une chante, L'autre pas), neste termina numa vala, morta, após uma noite ao relento e infindáveis sofrimentos. O seu corpo exposto, no início do filme, serve como prelúdio à derradeira etapa da sua vida, errante, suja miserável. Aquela rapariga, Mona, teve oportunidades para assentar, mas rejeitou-as a todas. Optou por viver no desprendimento, sem qualquer motivação ou explicação.

   É um road movie europeu (os americanos são especialistas nisso). Um drama. No final, temos a sensação de que nada sabemos sobre Mona. De onde vem, quem é. Ela esquiva-se a dar-se a conhecer. À medida em que a narrativa avança, percebemos que a sua degradação física e psicológica se acentua. Se no início nos parece uma rapariga que anda a acampar por aí, a viajar solitariamente, meio nómada, para o fim percebemos que algo de muito mais grave se esconde por detrás daquela existência. O quê, nunca sabemos.

    Repare-se que o filme começa com a protagonista a sair de um banho no mar. Ela calçava as botas com algum esmero, colocando as bainhas por dentro do cano. Pouco antes de morrer, já se arrastava por uns destroços daquilo que havia sido umas botas, ou seja, Varda, através de mensagens subliminares, foi conjugando o trágico final de Mona também através da sua aparência. Ela foi desaparecendo, em verdade, em humanidade.



 
   Varda jogou ainda com as estruturas sociais. As pessoas com quem Mona se cruzam vão tecendo considerações sobre ela, no poucos planos em que a protagonista não surge. E há ali um confronto entre aquilo que ela deveria ser e aquilo que ela é, por oposição. Mona vive desprendida, sem apego às pessoas ou aos lugares, sem um modo de vida, sem rotinas.  Esse viver errante perturba-os e perturba-nos, como perturba o seu descaso com a sua higiene ou aparência física. Mona não sujeitou o seu corpo às convenções e aos papéis sociais. Limitou-se a viver como queria, sofrendo, depois, as consequências disso mesmo. A sua aparente, aos nossos sentidos, alienação é visível quando, num dos maiores actos de liberdade, aceita uma sandes que lhe foi oferecida e vai, com uma moeda que tinha, pôr música na jukebox. A vida é feita de escolhas, e a sua escolha foi viver assim.

  Sans toit ni loi contorna o suspense. Varda quebrou-o logo no início: aquela história iria acabar mal, conseguindo o que pretendeu: que encarássemos cada passo de Mona como mais um em direcção à morte. O estigma do seu fim trágico, ali, por hipotermia, persegue-nos desde o início.
   Entre os degradados e vagabundos, e vemo-los pelo filme, Varda soube contar o feminismo que nem sempre acaba bem, mas não para que fiquemos a reflectir no como teria sido se Mona ficasse a viver com o tunisino ou se se tivesse sujeitado a plantar batatas. O que fica é que aquela rapariga foi mais livre do que nós alguma vez chegaremos a ser. E essa liberdade tem algo de fatalista, arrebatador e poético.

17 de outubro de 2019

Trois Couleurs: Rouge.


  Trois Couleurs: Rouge insere-se numa trilogia que não conheço. Pelo que me pude aperceber, há uma sequência entre os filmes. Como não os conheço, não posso fazer qualquer paralelismo. A minha análise será restrita àquilo que vi.

   Kieslowski, o realizador, faleceu pouco depois deste último filme da saga da trilogia das cores. Deixou-nos uma obra glamorosa, de interpretações elegantes e bem conseguidas, guarda-roupa e cenários requintados. Há duas sequências claramente definidas: a do jovem estudante de Direito e a sua namorada loira, uma, e a de Valentine e o juiz, outra. Entre elas, à primeira vista, parece não haver qualquer relação. Aparentemente, Valentine mora perto do estudante de Direito. Conseguem-se ver das janelas dos respectivos apartamentos. À medida em que a narrativa avança, percebemos que há uma ligação sub-reptícia entre o juiz e aquele jovem estudante. O juiz, voyeur, é o senhor de todas as causas, um deus manipulador, afinal, ele é o dominus da vida dos seus vizinhos, conhecendo os seus segredos. Simultaneamente, ele parece dominar Valentine e até a personagem do jovem estudante de Direito, fazendo com que as suas existências se confundam. Nunca chegamos a perceber se a história do jovem estudante de Direito é a sua, em flahback, ou se corre paralelamente à sua. Tão-pouco se é uma vida que ele instrumentaliza para contar ou sua. Há um enigma, um cruzamento de factos e acontecimentos que, deliberadamente, nos fazem perder a noção da realidade. Só no final, com o naufrágio do ferry-boat, é que temos uma perspectiva comum de todas aquelas personagens.




   O que ressalta é exactamente esse peso demolidor do juiz, que age sobre as outras personagens como se fossem meras marionetas. Nisto se inclui a bela Valentine, que se deixa seduzir. Há uma outra hipótese deixada em aberta: aquela Valentine terá existido ou terá ele criado aquela Valentine a partir da modelo do anúncio de pastilhas elásticas? A cena final deixa-nos essa probabilidade. O juiz controlou-nos também a nós, espectadores, armadilhando-nos a percepção. 

   Trois Couleurs: Rouge confunde-nos. Vemos o filme e, no fim das contas, não sabemos o que vimos. Kieslowski é, no fundo, aquele juiz, ao baralhar-nos os sentidos. Manipula os sons e as imagens (a Valentine do cartaz e a do naufrágio, iguais, diante de um fundo encarnado) e, num acto desleal, reserva-se a verdade do enredo. Não haveria melhor forma de se despedir do mundo dos vivos. É um grande filme.

16 de outubro de 2019

L'Une Chante, L'Autre Pas.


    L'Une Chante, L'Autre Pas é mais uma exaltação ao feminismo por Agnès Varda. De 1977, tem uma primeira parte ambientada em 1962 e uma segunda dez anos depois, em 1972/3. É um filme vincadamente ideológico, de extrema-esquerda, com alusões a Engels, e de afirmação da mulher em poder dispor do seu "corpo". Por aqueles anos, França legalizava o aborto, encontrando resistências fortíssimas por parte dos sectores mais conservadores.

   Varga põe duas mulheres com objectivos distintos de vida: Pauline quer ser livre, sair de casa, ser cantora e activista pelos direitos das mulheres; Suzanne, pelo contrário, aceita ser a dona de casa responsável, a mulher casada no papel e amada. Não deixa de ser curioso que uma rejeita (Pauline) o que a outra tanto ambiciona (Suzanne): estabilidade afectiva e conjugal. O feminismo manifesta-se-lhes de modo oposto. Suzanne vê-se concretizada nos velhos cânones do papel socialmente atribuído à mulher, não deixando, entretanto, de manter o seu consultório, onde esclarece as mulheres do uso dos contraceptivos orais. Pauline rejeita-os, preferindo viver na França da revolução cultural e de costumes surgida do Maio de 68. A França hippie que contagia a Europa e o mundo e que afronta os valores da outra França, a rural, tradicional, patriarcal. Vemo-lo quando Pauline e o seu grupo de amigas viajam pela França profunda, actuando em pequenas terriolas.




    A realizador pôs ainda em oposição a França do Movimento de 70 e o Irão que, pese embora ainda não vivesse as restrições da Revolução de 1979, era uma sociedade profundamente mais fechada nos costumes, não reservando oportunidades às mulheres. Pauline não pôde desenvolver a sua carreira por lá. Um engenho de Varga para mostrar ao ocidente a realidade das iranianas, sem nunca procurar o confronto directo. Pelo contrário, Pauline movimenta-se elegantemente com o seu hijab. É uma visão romântica, quase saída das mil e uma noites.

   Pauline amou a Darius. O que se passa é que, em Varga, os homens não desempenham qualquer papel na trama. Mais ainda, são manietados. Morrem tragicamente, são abandonados. Ele foi-o, e verificamo-lo quando Pauline lhe propõe a ideia de engravidar de novo, ficando, desta vez, com essa criança. O seu feminismo, a luta que a abraçara, não lhe permitia deixar-se enlear na vida de dona de casa e mãe extremosa.

    É, em minha opinião, o mais autobiográfico dos filmes de Varga que pude ver até então. Em maior ou menor medida, algumas daquelas personagens funcionam como alter-egos seus. É uma obra manifestamente datada. No final, cruzam-se duas gerações: a de Pauline e Suzanne e a dos seus filhos. As primeiras desbravaram um caminho que, seguramente, iria permitir que a jovem Marie, filha mais velha de Suzanne, e a bebé de Pauline pudessem viver numa França mais igualitária.

15 de outubro de 2019

Entre le murs.


   Entre le murs foi rodado em 2008, e tem como pano de fundo uma turma multicultural de um liceu parisiense. Somos encaminhados a conhecer os meandros que a segregação, e muitas vezes a auto-segregação, provoca, com consequências a nível comportamental nos alunos. A imigrante do Mali que não sabe francês, os alunos filhos de imigrantes que se discriminam entre si e que revelam problemas se sociabilização e integração. França, como Portugal, e presumo que numa realidade comum a vários países europeus, depara-se com índices de criminalidades infanto-juvenil, de quebra da autoridade dos professores junto dos alunos e de níveis de insucesso escolar. Há uma crise de valores que se vem acentuando gradualmente. Aquela turma, que o filme passa-se inteiramente numa sala de aula do 8º ano, reúne um pouco de cada enfermidade de que padecem as escolas francesas, não obstante haver um esforço notório dos professores para os entender e para se fazerem entender e até alguma flexibilidade no ensino dos conteúdos.




   Esta longa é um claro filme big brother, de verosimilhança social. Dispondo de poucos meios técnicos e com um argumento que é o próprio quotidiano escolar, é mais um retrato quase documentado do que propriamente um filme. Aqueles alunos confrontam - e o filme é um permanente confronto entre professor e alunos - os professores como se habitassem num universo paralelo. Isso transparece nitidamente quando, numa aula de Francês, desdenham de vocábulos ditos eruditos. A determinado momento, um traduz para francês coloquial o que o professor acabara de dizer. Há um problema de comunicação notório, geracional, que se acentua com as diversas sensibilidades culturais. É nas actividades mais lúdicas que as barreiras se esbatem e que se vislumbra algum saudável entendimento, porém, a tensão está sempre presente. Eles desconfiam do professor e jamais o vêem como alguém que está ali para os ajudar.

   Não sendo um desastre, não lhe vejo mais interesse do que como útil representação dos problemas que as escolas enfrentam.

14 de outubro de 2019

Cléo de 5 à 7.


   Cléo de 5 à 7 é um filme francês de 1962, na última fase da Guerra da Argélia, que é sucessivamente referida ao longo da trama. Importa contextualizar Cléo de 5 à 7 numa década que assistirá à verdadeira revolução de hábitos e costumes no ocidente, o Maio de 68. Esta longa retrata uma Cidade Luz glamorosa, que acolhe encontros imprevistos nos seus jardins. Já é a capital do amor, da paixão assolapada. Cléo é, aliás, antes de mais, um valioso roteiro sobre a Paris dos anos 60.

   É ainda, parece-me, um manifesto feminista. A personagem principal é uma jovem mulher, belíssima, fútil e influenciável (interpretada pela lindíssima Corinne Marchand), que se tem em enorme consideração. Os homens, neste filme, que são poucos e surgem pouco, são meros adereços. O que se pretende é abordar a realidade feminina, as preocupações femininas e a psique feminina. Não sei se a realizadora, Agnès Varda, já falecida, e cuja obra é homenageada neste festival de cinema francês, fez mais pelo feminismo com este filme ou menos.




    A incerteza quanto à doença da protagonista surge como mote para que repensemos prioridades. O dia em que saberá o resultado do exame é aquele que marca o início do Verão, ou seja, o início de uma nova etapa. Conjugou-se esse elemento com a superstição da personagem e da sua empregada.

   Claramente um filme da Nouvelle Vague, a câmara inquieta-se com Cléo, seguindo-a e deixando-nos segui-la. Varda dividiu a longa em pequenos capítulos definidos no tempo, para que nos apercebamos da sua dimensão inexorável e irreversível. A longa, em suma, é a constatação de Cléo perante a iminência da morte e da sua própria finitude. As cenas do engolidor de rãs e das máscaras africanas actuam como uma elipse na nossa memória: Cléo já se vê morta. O seu mundo não é aquele, e àquele ela não pode compreender. Repare-se que a personagem, que sempre envergou branco, passa a vestir o preto.

   É quando encontra Antoine, uma personagem também com o tempo contado, que Cléo pode mitigar o seu sentimento de solidão. Com ele, no autocarro pelas ruas de Paris, em direcção ao hospital, vê a vida a ficar para trás, à medida em que observam os contornos da cidade. Lentamente, é como se se encaminhasse para o fim. Ao descobrir que a sua doença pode não ser assim tão grave, permite-se a poder amar. No diálogo final, quando diz a Antoine "nous avons tout le temps", intuímos esse renascimento da esperança, e a possibilidade de a vida retomar o seu curso normal.

13 de outubro de 2019

Amour.


   Amour é uma dolorosa perspectiva, de resto comum, do envelhecimento e da morte. Este filme lembrou-me instantaneamente dos meus avós paternos, e sobretudo da dedicação da minha avó ao meu avô, na doença, ao longe de catorze anos.

  Os silêncios, em Amour, fazem a diferença. Percebemos o estertor da morte a percorrer aqueles cómodos escuros, à medida em que as lembranças se avolumam e as despedidas se tornam inevitáveis. Na cena em que Anne folheia um velho álbum de fotografias, assistimos à antítese da vida nas suas palavras, quando a define, "bela e comprida". A morte não lhes bateu à porta, como o vizinho que traz as compras, ou a empregada de limpeza (protagonizada por Rita Blanco, curiosamente). Entrou de rompante, qual intrusa, apoderando-se de todos os momentos daquele apartamento espaçoso, requintando, que se torna palco de um definhar lento e gradual, profundamente desconfortável para o espectador.




    Facilmente perdemos a sequência às acções, como se a lógica cedesse se fundisse numa imagem estática: a de Anne, já morta, que nunca nos sai da cabeça. Esta alienação com a realidade e com a verdade da narrativa confere um carácter metafísico ao filme. É a morte que toma o tempo, que o torna lodoso e que nos faz entrar naquele microcosmos angustiante, vedado ao mundo, só perturbado na sua unidade com as visitas fugazes de uma filha. George, aliás, age com brusquidão às recomendações de Eva. Não. Aquele é o seu mundo, e cabe-lhe, ora com paciência, ora com impaciência, acompanhar a mulher no seu calvário.

  Esta longa é um retrato cru, sem sentimentalismos, impiedoso, da última etapa da vida humana, da degradação física e mental, da solidão, mas também do amor, do cuidado, do maior e mais difícil gesto do bem-querer, do auto-sacrifício, em juras que se cumprem até ao final. Um drama que nos comove e aterroriza, embora não saibamos bem o porquê. Talvez porque a realidade consiga ultrapassar a ficção, ou talvez porque aquela ficção é a realidade que não queríamos conhecer / ter.

   Resta acrescentar que vi Amour há dias, na vigésima amostra de cinema francês, o primeiro de vários filmes.