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5 de março de 2025

Anora.


   Já há imenso tempo que não ia ao cinema (mudam-se os tempos, mudam-se as oportunidades; fiz uma adaptação livre). Longes vão os dias em que, quando morava em Lisboa, ia ao cinema dia sim, dia não. Ontem fui, para ver o filme que, na última edição dos Óscares, arrecadou, entre outros, Melhor Filme, Melhor Direcção e Melhor Actriz Principal, num total de cinco estatuetas.




   Reduzi-lo a um filme sobre trabalhadoras do sexo é falta de intuição, inteligência e perspectiva. Anora é mais do que isso. É uma estória de carência afectiva e ilusão. A cena final, sublime, vem acrescentar ainda a frustração, a desilusão, o cansaço, o sentimento de objectificação, tudo junto, que culmina assim. Um filme que, só pela derradeira cena, quanto a mim arrebatadora, merece a pena.

29 de fevereiro de 2024

Close.


   Soube deste filme belga através de uma publicação no Instagram, e despertou-me a curiosidade, sobretudo pela cena que vi, dum miúdo a chorar, sendo que o fazia com tanta maestria e convicção que me levou a pesquisar acerca. Foi aí que tomei conhecimento de que abordava a relação de amizade entre dois rapazes que acabavam de entrar para o secundário. A relação de ambos era marcada por muito carinho, ternura, olhares e atitudes cúmplices, se bem que a nenhum momento nos é dado a entender que fossem namorados. Eram amigos. O realizador quis trocar-nos as voltas com as típicas relações de amizade entre rapazes, nas quais não há lugar a carinho, a fragilidade, a ternura. São relações muitas vezes de disputa de força, de afirmação de egos. Os homens ainda têm dificuldade em demonstrar fraqueza, em chorar, e neste filme eles choram, eles são meigos uns com os outros. Sabemos que na vida real não é assim. É normal vermos um miúdo a deitar a cabeça no colo de outro mesmo que não sejam namorados? 





     Em relação ao filme em si, a fotografia é lindíssima. Vemos as planícies coloridas pelos tons das flores. Um dos rapazes, o Léo, ajuda os pais, nos tempos livres, numa indústria que parece estar relacionada com o comércio de flores. 

     É uma estória triste, solitária, comovedora, que põe os homens em situações de fragilidade a que não estamos habituados. Desconstrói o machismo e a masculinidade. As interpretações são bastante boas. O filme esteve inclusive nomeado para, entre vários prémios, o Oscar de melhor filme estrangeiro.

1 de janeiro de 2024

Napoleão.


   Cheguei há pouco do cinema. Fui ver Napoleão, o novo filme de Ridley Scott sobre o emblemático general francês, nascido em Córsega, que chegou a cônsul vitalício e, finalmente, a imperador. Napoleão é daquelas figuras controversas da História. Há quem o admire como grande estratega militar, e há quem o veja como o homem que provocou o caos na mapa da Europa entre os finais do século XVIII e o início do século XIX.

   O filme narra a ascensão de Napoleão, sem se focar demasiado em nenhum período em concreto. Melhor dito, é uma narração concisa dos momentos mais importantes da carreira política e militar de Bonaparte, embora eu tenha notado a ausência de alguns factos históricos importantes, como a omissão da Guerra Peninsular, que em Espanha se chama Guerra da Independência. Contudo, a vida íntima do imperador não foi esquecida, e inclusive é abordada com bastante minucia, sobretudo a sua relação com Josefina, primeira mulher e imperatriz.


   O resto são factos históricos, que o filme reproduz fielmente. Convém vê-lo no cinema pela grandiosidade das batalhas reproduzidas, que têm outro eco no grande ecrã. Em suma, eu gostei de Napoleão. Não sendo uma obra de arte, é um filme que facilmente revejo quando estrear nalguma plataforma de streaming.

1 de novembro de 2023

Laços de Ternura (1983).


   Há filmes tão bons, com interpretações inesquecíveis, que nos ficam na memória. Posso rever o Laços de Ternura vezes sem conta que não me aborrecerei. Ganhou, em 1984, quase todos os prémios cinematográficos que havia a ganhar. É um drama intenso sobre a relação muito próxima, muito especial, entre uma mãe e uma filha. Depois sobrevem a doença da filha, e o filme ganha um contorno tremendamente dramático. É triste. Deixa-me triste. Nunca fui de chorar com filmes, e também não choro com este. Fala de cancro. Poderia chorar, afinal, a minha mãe morreu de cancro. A minha avó também. Acho que estou impenetrável, como uma pedra dura. Entretanto, identifico a dor alheia, solidarizo-me com ela, até na ficção. É este filme toca nesse ponto, e fá-lo de forma sublime. Tão bom.




16 de outubro de 2023

Voando sobre um ninho de cucos (1975).


   Ele há coisas. Há dias falei-lhes do Barbie, um filme que, pessoalmente, não considero digno de tanto sururu, e hoje venho falar-lhes de um clássico do cinema, Voando sobre um ninho de cucos, de 1975, um filme que ainda não vira, e que vi ontem à noite. Desde logo, é um filme cuja temática me interessa porque aborda os problemas de saúde mental. Em síntese, o personagem de Jack Nicholson ingressa no hospital psiquiátrico, onde se enfrenta a uma enfermeira seca, não diria má, mas de comportamento manipulador com os doentes. E provoca uma revolução que os leva a ser mais conscientes da sua condição de sujeitos que gozam de direitos, e que apesar dos seus problemas, têm vontades próprias, desejos, vontades. O final impressionou-me deveras, não esperava algo tão trágico.

    É um drama com rasgos de comédia que contrabalançam o nervosismo e o distúrbio emocional presente em cada acção e cena. Uma preciosidade sobre a natureza humana frágil e desequilibrada. Considerado um dos melhores filmes de sempre, é-o, efectivamente, quanto a mim.





14 de outubro de 2023

Barbie.


   Vi o filme Barbie. Detestei. Retrata os estereótipos e os papéis de género, numa abordagem fictícia, em que dois mundos paralelos se cruzam: o real, o nosso, levando os seus preconceitos, medos, defeitos para o irreal, onde se cria uma fantasia de empoderamento feminino que se vende às meninas em forma de bonecas que dominam no universo Mattel. Crítica social à parte, custou-me aguentar até ao fim. Mais que aborrecido, é irritante.





24 de maio de 2023

Priscila, A Rainha do Deserto (1994).


   É um clássico LGBT, um filme de culto. Efectivamente, quando (re)vemos -e eu vi-o pela segunda vez, que a primeira fora há muitos anos-, percebemos que foi um filme avançadíssimo para a época (1994 parece estar já ali, mas foi há quase 30 anos). Há pouca caricatura, o que era comum naqueles tempos, e uma vontade honesta de mostrar três amigos nas suas desventuras. Há duas cenas que creio que são memoráveis: a dança drag no meio do deserto, com e sem os aborígenes, e, perto do final, quando um dos personagens principais fala com o filho, e falam sobre a sua vida íntima, o facto de poder vir a ter um namorado. A naturalidade com que a criança encara o facto de ter um pai gay ainda nos surpreende. O que se dirá de 1994!




16 de maio de 2023

Bem Bom (Doce).


   Com algum atraso, é certo (estreou em 2021), ontem vi o filme sobre as Doce, Bem Bom, que recebeu o nome de uma das suas canções mais conhecidas, justamente a que, em 1982, foi à Eurovisão - e ter visto o filme agora foi pura casualidade. Tentei, como se diz, fazer o download há uns meses, sem êxito, e descobri há dias que estava disponível no YouTube.

   As Doce são dos meus conjuntos portugueses favoritos. Em 2003, contava eu dezassete primaveras, comprei uma antologia que saíra por aquela altura, onde constavam os seus eternos sucessos e versões remasterizadas dos mesmos. Naturalmente que o ouvi vezes sem conta. Eu sou daquelas pessoas que não tem preconceitos musicais. Ouço de tudo, desde que goste. Vou da música ligeira portuguesa, conhecida de forma pejorativa como pimba, até à música clássica. Eclético, é como dizem. 




    As Doce não tinham nada de pimba, mas tão-pouco conseguiram escapar a esse rótulo maldito que persegue tantos artistas portugueses. Pelo contrário, as suas canções eram de excelente qualidade. Aquelas quatro raparigas, a par do talento musical (três delas tinham formação na área), ousaram, provocaram, num país saído há escassos cinco anos de uma ditadura moralista e cinzenta. Abriram caminho, de certa forma, para outras artistas que lhes seguiram os passos.

     O filme gerou polémica entre as ex-integrantes do grupo ao não expressar a história verdadeira do quarteto. No início, somos imediatamente avisados de que se trata de uma recriação livre da realizadora que mistura elementos de ficção com factos reais. Eu gostei. Destaca-se entre os filmes portugueses, que geralmente são lentos, de planos estáticos, com músicas e interpretações enfadonhas, e este vem no seguimento de uma melhoria da qualidade do cinema português. Contanto que se diga, como Fátima Padinha disse, que não é a história das Doce, é quanto baste. O filme está bem feito. Se calhar, se retratasse fielmente a história das Doce, seria uma chatice.

19 de março de 2023

A Baleia.


   Julguei que estaria perante um título pejorativo. Equivoquei-me. Depois verão de que baleia se trata, e do simbolismo que essa baleia adquire na narrativa. Este filme emocionou-me, quiçá pela minha fragilidade -sou frágil, fui frágil-, que se agudizou na actual conjuntura, e embora não seja de chorar com filmes, saí de tal forma comovido da sala de cinema que não consegui segurar as lágrimas, que me inundaram o rosto, caindo sem parar, como numa crise compulsiva.

   A Baleia é uma estória da fragilidade da condição humana, do amor, da redenção. Também da aparente maldade, que poderá não o ser; da fronteira entre a honestidade, a transparência e a maldade. Uma estória de gente desafortunada, por um ou outro motivo. Muito emotivo. Não há enredos complicados (como no desastre Everyting Everywhere All at Once), nem deles precisa, porque nós somos mais comuns do que julgamos. Num simples apartamento, conectam-se traumas e desgraças pessoais, que afinal são as nossas - podem ser as nossas.

   A Baleia entra no meu contido catálogo de filmes preferidos de sempre, e mereceu-me a pontuação 9 no IMDB.






12 de março de 2023

The Fabelmans.


   Um filme que tem muito de biográfico. As interpretações são de excelência, sobretudo de Michelle Williams. Spielberg seguramente saberá destrinçar entre o que há da sua experiência e o que resulta da inegável capacidade criativa a que nos acostumou, transportando-nos aos anos 60 com maestria; a uma família de classe média tão normal nos hábitos, nos “pecados”, nos anseios, nos desejos, incidindo no crescimento de um miúdo entre as câmaras de filmar e um terrível segredo capaz de abalar o núcleo aparentemente tão comum e inabalável, e afinal é-o, comum, porque inabalável, nem tanto. Não há estórias completamente felizes.




7 de janeiro de 2023

I Wanna Dance with Somebody.


   Nunca tinha vivido tão perto de um cinema, que me lembre. E há tantos anos que não podia ir à sessão das 22h. Recuperei un petit peu das minhas rotinas urbanas. O filme é que… meh. É um argumento fraco, embora Naomi Ackie tenha estado francamente bem. A vida de Whitney Houston não deve ter sido tão aborrecida, e ela tão desinteressante. São duas horas e meia de um enredo superficial e entediante. Salvam-se os velhos clássicos de uma geração e a mímica da actriz.

2 de maio de 2021

Nomadland.

 

  “Nomadland” trata da quebra dos vínculos sociais a ponto de uma total dessocialização, uma ausência de ligação à colectividade, excepto aos que partilham dos mesmos valores de erraticidade e desprendimento.

   Frances McDormand iguala Meryl Streep em prémios Oscar, e merecidamente, que a sua interpretação é inenarrável. No entanto, há que fazer uma pequena ressalva: McDormand esteve como peixe na água, permitam-me a expressão. Em  “Three Billboards Outside Ebbing, Missouri”, a actriz interpretou, se a memória não me falha, uma mulher com uma vivência rural e desagregada que provavelmente terá motivado a sua escolha para este “terra nómada”.

   É uma estória deprimente? É-o, como a vida sem as cores que lhe damos para a tornar mais suportável. Há quem se recuse a cumprir com os padrões estabelecidos e tome efectivamente as rédeas do seu destino, ignorando automatismos sociais, normas comportamentais, obrigações decorrentes da própria manutenção daquilo que consideramos ser um patamar de dignidade. Na “terra dos nómadas”, há dignidade, há normas, mas não há uma escravidão ao trabalho, ao dinheiro; uma preocupação com a aparência. Existências numa primeira análise desprovidas de raízes, ainda que as tenham no espírito de cooperação que se estabelece entre quem divide um estilo de vida comum.

11 de fevereiro de 2020

Óscares 2020.


   Na madrugada de domingo para segunda, fui dormir tardíssimo. Não podia perder a entrega dos Óscares, evidentemente, como bom cinéfilo que sou. Houve enormes surpresas. O Parasitas, merecidamente, arrecadou as principais estatuetas: Melhor Realizador (Bong Joon-ho), Melhor Argumento Original, Melhor Filme Estrangeiro e, finalmente, a mais cobiçada de todas: Melhor Filme. Não imaginei poder ver Hollywood a entregar aqueles galardões a um filme sul-coreano, a uns tipos que nem o inglês sabem falar. Parasitas, e disse-o logo assim que o vi, é o melhor filme de 2019, um dos melhores da década e quiçá mesmo deste século. Uma maravilhosa sátira às desigualdades sociais da Coreia do Sul. Poderão ler a crónica ao filme (de 31 de Outubro), a quem não o fez, aqui

   Dos grandes derrotados, incluiria não só o Era Uma Vez em Hollywood como o The Irishman, o Joker e, desfortunadamente, o 1917. O Era Uma Vez em Hollywood era o menino bonito, afinal, reporta-se aos anos de ouro da indústria cinematográfica norte-americana. Tarantino não conseguiu convencer a Academia. Assim mesmo, Brad Pitt subiu ao palco para receber o Óscar de Melhor Actor Secundário, o seu primeiro como actor, e Barbara Ling e Nancy Haigh para o de Melhor Design de Produção, pela concepção artística. Joker arrecadou as de Melhor Banda Sonora e Melhor Actor, por Phoenix, numa interpretação que considerei forçada, visando primordialmente a estatueta. Irishman, de dez nomeações, foi para casa de «mãos a abanar», e bem, que o filme é uma chatice pegada. Por último, 1917 era aquele que, com o Parasitas, dividia a minha preferência. Venceu em três categorias: Melhor Cinematografia (Fotografia), Melhor Mistura de Som e Melhor Efeitos Visuais.

     Em Melhor Actriz Secundária, Laura Dern, enquanto implacável advogada do Marriage Story. Eu tê-lo-ia dado a Kathy Bates por O Caso de Richard Jewell; em Melhor Actriz, Renée Zellweger, por Judy. Uma justa atribuição à actriz e também uma homenagem da academia à lendária Judy Garland.

    Em Melhor Canção Original, Elton John logrou a sua segunda estatueta, mais de duas décadas após Can You Feel The Love Tonight, por (I´m Gonna) Love Me Again, em Rocketman. Não considerei o filme um deslumbre, mas, observando os restantes três nomeados, acho justo. Em Melhor Banda-Sonora Original, ganhou o Joker; quanto a mim, melhor teria sido entregue ao 1917. Em Melhor Caracterização, Bombshell. Não que tenha sido mal atribuído, em todo o caso, se o fosse a qualquer um dos outros nomeados também não se teria perdido nada. Em Melhor Guarda-Roupa, Little Women. Sendo um filme de época, compreende-se. A Academia premeia o esforço e o esmero. São categorias menores. Aquelas relativamente indiferentes para os actores e realizadores, direi eu, mas não para quem se ocupa daqueles aspectos não menos relevantes de qualquer filme. Em Melhor Argumento Adaptado, Jojo Rabbit, um filme bastante elogiado, que pretendo ver o quanto antes.

        E até para o ano que vem!

9 de fevereiro de 2020

Marriage Story e The Irishman.


   O que me ocorria a cada cena do filme era o seguinte: «Porque é que vocês não estão juntos?» Manifestamente, aquele casal amava-se. Foram empurrados para um divórcio pelos advogados. Assuntos que deveriam ser resolvidos em família, valorizando-se o sacramento que é o casamento, aberto ao diálogo franco, passaram para a mão dos representantes legais. Uma família transformada em notificações e esgrima de argumentos para convencer um juiz. Curiosamente, no meio de tanta gente envolvida, ninguém os aconselhou à reconciliação. O divórcio pareceu sempre o caminho mais fácil.

   Naquela família, nem a sogra representava um empecilho. Ambos, marido e mulher, contribuíram para aquele desfecho. Deu-se um confronto nos objectivos. Os egos não se toleraram. Quando assim é, quando cada um se coloca na dianteira sobre a família, algo vai mal. A família - e tinham um filho de 8 anos, mas já lá irei - é o valor mais importante no casal. Ali, começaram pela solução de ultima ratio: dissolvê-la.



   A criança e a atenção que lhe davam, desmesurada, na satisfação de todas as suas vontades, foi outro factor para o mal-estar geral. É tratada como o centro das atenções, como o centro da vida do casal, ajudando ao desgaste. Numa família, e isto é conhecimento empírico, todos se complementam. Aquele casal deixou de pensar em si, deixou de se namorar. As suas carreiras enquanto actores e directores e o filho prevaleceram sobre o amor, e esqueceram-se de que foi o amor o gérmen da família. Não o alimentaram. Ele não morreu, de facto, mas não soube resistir à pressão. Depois, tudo sucedeu de forma demasiado rápida. Quando se deram conta, e isso é particularmente visível numa cena, tinham assinado os papéis.

    As interpretações de Scarlet Johansson e de Adam Driver são bastante convincentes. Justificam-se as nomeações para Melhor Actriz e Melhor Actor. Laura Dern, como advogada zelosa e escrupulosa no cumprimento do seu dever (talvez até demais…), também logrou a sua terceira nomeação, desta vez para Melhor Actriz Secundária.

   Marriage Story tem uma aura quase seventies, oscilando entre o glamour do cinema e o conforto do telefilme. Talvez seja um filme mais para o sofá, não deixando de ser um bom filme.

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    Provavelmente serei o único que destoa do coro de elogios a The Irishman, que é um filme que nos lembra o clássico de 1972 O Padrinho, ficando muito aquém deste. É demasiado longo, insistindo na fórmula que já conhecemos: a Máfia exige lealdade em troca de uns servicinhos. Quem falha, quem desonra "a família", é executado impiedosamente. A violência gráfica, explícita, deste filme vem por acréscimo. É necessária para dar aquele toque gangster. O cerne da questão, como diz o povo, é: o que retemos de Irishman para o futuro? Nada. Não fossem os grandes nomes da produção - Robert de Niro, Al Pacino, Joe Pesci - e ter-me-ia sido insuportável chegar ao final.




   Olhar para o passado em jeito de retrospectiva, contando a história de vida e lamentando os erros, não melhora em nada a experiência com The Irishman. Justificam-se, talvez, as nomeações para Melhor Direcção de Arte e Melhor Figurino, porque efectivamente há a elogiar o esmero na recriação das décadas em que o filme se desenrola, com tudo o que isso inclui: cenários, roupas, objectos. O toque a classe está lá. Falta-lhe é ser mais do que outro filme sobre a Máfia. Depois de Silence, que adorei, Scorsese mete o pé na poça. Nem arriscou, tão-pouco. Poderia ter sido mais arrojado. Foi previsível, tanto ao ponto de julgar que já tinha visto este filme. Já o vi, é certo, porque o que subjaz a filmes de mafiosos é sempre o mesmo. Definitivamente não voltaram a estar na moda.


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    Logo mais, estarei colado ao ecrã a ver os Óscares. Ainda não pude ver o Jojo Rabbit, o que duvido que viesse a alterar a minha escolha para Melhor Filme: 1917 ou Parasitas. Se o Joker ganhar, será profundamente injusto para com estes dois filmes nomeados na mesma categoria. Finda a cerimónia, nos próximos dias, direi algo sobre a entrega dos prémios e as minhas escolhas.

6 de fevereiro de 2020

Bombshell, 1917 e Little Women.


   Tenho ido ao cinema. Fui a duas sessões durante a semana cultural e ontem a uma terceira. Como sabeis, gosto muito de cinema, e a cerimónia dos Óscares está aí à porta. Dos títulos nomeados na categoria de Melhor Filme, já pude ver: "Joker", "Era Uma Vez em Hollywood", "Parasitas", "1917" e o "Little Women". Faltam-me ainda o "Jojo Rabbits", o "Marriage Story" e o "Irishman", estes dois últimos na plataforma Netflix (que tenho). Há um último, "Ford vs. Ferrari", também nomeado, mas não está disponível na generalidade dos cinemas. Até ao dia da cerimónia, tenho de ver o Marriage e o Irishman, deixando o Jojo para a semana que vem.

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  Bombshell não está nomeado para Melhor Filme (está-o nas categorias de Melhor Actriz, por Charlize Theron, Melhor Actriz Secundária, por Margot Robbie, e Melhor Maquilhagem e Penteados, esta última uma categoria menor), em todo o caso, quis ir vê-lo. Aborda a questão do assédio sexual a jornalistas e apresentadoras da cadeia norte-americana Fox, um caso real que atingiu a empresa e fez derrubar o todo-poderoso Roger Ailes, fundador e director executivo do canal.

  O assédio às profissionais do sexo feminino nos mais variados sectores não é novidade. Como muitas mulheres, a minha mãe soube o que isso era nos anos 80, enquanto advogada estagiária numa sociedade. Contou-mo. As insinuações começam discretamente. Com o tempo, passam a observações directas, a olhares de desejo, a condescendências que qualquer mulher prescinde quando quer ser reconhecida pelo seu trabalho e não pelo seu corpo. Em Bombshell, vemos o comportamento pouco cerimonioso de Ailes com Kayla Pospisil, Megyn Kelly e Gretchen Carlson, tomando esta última a dianteira na denúncia, anos depois de uma mesma funcionária ter tentado o mesmo, sem êxito. Afrontar Roger Ailes era comprar uma briga com um homem que dominava o panorama televisivo dos EUA, amigo de poderosos, que tinha conseguido eleger e derrubar candidatos presidenciais.




   Evidentemente, este filme insere-se na retórica feminista / defensora das minorias que domina Hollywood, considerando-se, ainda assim, que versa sobre um caso real. Não senti um ímpeto feminista acentuado. O assédio é uma realidade num mundo dominado maioritariamente por homens, e o homem é aquilo: sexo e desejo. A ciência explica-o. O que para a mulher é idealização romântica, para o homem é sexo. Sabemo-lo. O que distingue o predador do homem ponderado é a capacidade de se controlar e de respeitar as colegas ou as subordinadas, de ser profissional.

    Parcamente, gostei das interpretações dinâmicas e honestas de Theron, Kidman e Robbie, e ainda de John Lithgow como Roger Ailes. A narrativa segue uma sequência lógica e não se perde naquilo que não é essencial. Nesse sentido, é um filme que não aborrece, firme, objectivo. Requintado nas interpretações, nas roupas, na maquilhagem, no glamour das personagens e dos espaços que ocupam.

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     O 1917 é o melhor filme de guerra que já vi e um dos melhores filmes de sempre (para mim). É um bom prenúncio da crónica ao filme, não é? Vi-o duas vezes. Da segunda, ainda gostei mais. Pude atentar em pormenores que me escaparam da primeira vez, e diz o povo que não há duas sem três.

    Sam Mendes recriou um palco de guerra impiedoso na recta final da I Guerra Mundial. Um conflito que parecia interminável (como a determinado momento se ouve no filme, «durará até o último dos homens restar de pé»), que deixava marcas no ânimo dos homens e cuja eternidade se via nos cadáveres que se amontoavam e decompunham, não restando, em muitos casos, mais do que caveiras incrustadas na terra húmida e pútrida, verdadeiras valas a céu aberto. Os horrores do conflito misturavam-se com a decomposição da matéria orgânica.

      Visões do inferno, apocalípticas, alternam com a beatitude das flores de cerejeira que resvalam no curso de água e preenchem os prados, da vaca que pasta e dá leite, do bebé e da moça virginal que vivem num abrigo subterrâneo, qual manjedoura como Cristo nasceu - uma nova geração, a redenção, a esperança -, e uma canção de embalar que faz esquecer o presente catastrófico.




     No olhar de Schofield vive a descrença, a apatia, a alienação, o sofrimento. É uma estrondosa interpretação do jovem actor britânico George MacKay enquanto primeiro-cabo Will Schofield, um homem determinado pela missão que assumiu e pelo compromisso com o amigo que o salvara e que perdera. Uma determinação inabalável, sobre-humana; um sentido de ética e de camaradagem.

       A direcção de imagem e a cenografia são de excelência em 1917. Os planos que a realização nos dá, colocando-nos no centro da acção com aqueles dois soldados, num primeiro momento, e com a solidão de Schofield numa aparentemente desértica e calamitosa França.

      É um filme extraordinário, que me lembrou Dunkirk, e merece todas as indicações que recebeu aos Óscares, incluindo, como não poderia deixar de ser, a de Melhor Filme.

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      Little Women recupera a dupla Ronan-Chalamet que vem de Lady Bird, e foi-me interessante vê-los de novo em cena. Há manifestamente uma química entre ambos, o que os terá levado também, direi eu, a querer repetir a parceria. Essa empatia, ao menos profissional, chega ao espectador: têm um desempenho bastante verossímil. Já não poderei dizer o mesmo de Meryl Streep. A veterana actriz, em contrapartida, fez uma má opção. Praticamente não nos damos conta da sua presença. A personagem que veste, a velha tia refilona, assenta-lhe mal, e depois a sua interpretação - e os grandes também têm maus momentos  - é fraca. Esforçada. Parece que nos quer convencer, sem necessidade, de que é a melhor. Emma Watson tem uma prestação mediana-sofrível, condizente com a sua personagem, a mais desinspirada e desinteressante das quatro irmãs. À dupla citada, que se repete aqui, temos uma mais-valia em Pugh, Scanlen e Dern.

      O interesse na narrativa vai surgindo à medida em que avança, porque a primeira parte é confusa. Há um excesso de personagens secundárias que perturbam os sentidos e nos afastam do conhecimento das personagens principais. Deve ser pecado comum a todos os filmes de época, e este leva-nos aos tumultuosos anos da Guerra da Secessão.



   A candura da relação entre as irmãs, com saudáveis momentos de afeição e de fúria, com temperamentos, talentos e objectivos de vida distintos, como em qualquer família, ao ser-nos permitido entrar na sua casa, nas suas brincadeiras e nos seus percursos, que afinal é um pequeno drama caseiro, é a única virtude que justifica ver este filme. 

    Há uma abordagem à posição social (e económica) da mulher na sociedade estadunidense do século XIX: ou nascia rica, ou casava com um homem bem posicionado para se sustentar. Nas palavras da velha tia March, à mulher não restava mais do que casar ou ser prostituta, ou ainda ser actriz, que para si era o mesmo. Em Little Women, entretanto, são os homens que se socorrem das mulheres para brilhar, isto é, supondo que o alcançam.

14 de janeiro de 2020

O Caso de Richard Jewell.


   Baseado numa história verídica, estes filmes são-me sempre mais apelativos. Quando saí da sala de cinema, o meu primeiro pensamento perdeu-se no sistema judicial dos EUA e em como, comparativamente, me orgulho do nosso, do português. Quando nos queixamos de algumas injustiças do nosso poder judicial, esquecemo-nos de observar aquele, onde, em muitos casos, os direitos elementares dos suspeitos são violados. Richard Jewell tornou-se suspeito por preencher um qualquer estereótipo criado por uma jornalista inescrupulosa que se deitava com inspectores do FBI em troca de informações privilegiadas. Inspectores esses que pareciam pouco estar preocupados em apurar a verdade material, e sim em levar um culpado para a câmara de execução.




   Depois, impressionaram-me os métodos de investigação, o relacionamento tenso com a defesa, as tentativas dos inspectores de ludibriar o suspeito, as infracções que cometeram, verdadeiros crimes de abuso de poder e autoridade. Finalmente, todo o sofrimento gratuito causado em duas vítimas, num bonacheirão de trinta e poucos anos, de boa índole, honesto, de uma ingenuidade quase infantil, e na sua doce e frágil mãe.

  As interpretações são muito boas (Kathy Bates está, de resto, nomeada para Melhor Actriz Secundária na edição deste ano dos Óscares), regra geral, e o filme tem aquele travo a 90s que ajuda a apaziguar o coração dos mais saudosistas daqueles anos - quando ouvimos Macarena, a irritante e pegajosa canção dos Los del Río, quase que nos apetece imitar a coreografia ridícula que a acompanha. À distância de mais de vinte anos, tudo ganha outro encanto.

11 de janeiro de 2020

Dois Papas.


   Um filme Netflix que esteve nomeado nalgumas categorias dos Globos de Ouro, que de resto não vi. Disseram-me que era um filme aborrecido. Eu, por acaso, gostei, particularmente do confronto ideológico entre Ratzinger e Bergoglio. Claro que houve ali um toque brasileiro na narrativa, com a inclusão do futebol, do Mundial de 2014 - o filme passa-se sobretudo no momento em que Bento XVI decide deixar o Papado, tendo, todavia, todo um contexto em retrospectiva, recuando ao início da vida de Bergoglio, às suas crises de fé, ao momento em que se apercebera da sua verdadeira vocação etc.

   Reside, entretanto, no dito confronto ideológico o verdadeiro mote do filme: que Igreja Católica queremos, que Igreja Católica cada um daqueles homens nos apresenta? Homens que divergem nas vivências, nas realidades socioculturais em que se inseriram por décadas até terminarem no Vaticano. 

   E também eu mudei, mudança essa que foi perceptível pelos leitores mais atentos do blogue. Ao longo dos anos, à medida em que amadureço, venho-me tornando mais conservador. Não gostava nada do Cardeal Ratzinger. Considerava-o um homem obsoleto, e foi com alívio que na altura soube da sua resignação. Hoje em dia, sete anos depois, temo o futuro da Igreja. Subjazem muitos interesses em torno da tal reforma que muitos dizem ser necessária. Discute-se, por exemplo, o fim do celibato, que está longe de ser um dogma e que só foi adoptado pela Igreja no século XII ou XII. Pessoalmente, não me agrada nada a ideia de ter um pároco que à noite se entrega aos prazeres da carne. Como disse Ratzinger, «uma Igreja que case com o espírito da época, acabará viúva na época seguinte».




    Um das leituras possíveis prende-se à hipótese de este filme vir limpar um pouco a imagem que Ratzinger deixou no mundo, e particularmente no católico, ao mostrá-lo como o homem que esteve por detrás da ascensão de Bergoglio à Cátedra de São Pedro, apercebendo-se da sua importância no futuro da Igreja, o que seria até algo contraditório. Percebemos que Ratzinger, embora aberto ao diálogo, não sentia apego às ideias reformistas de Bergoglio. O realizador, Fernando Meirelles, deixa-o em aberto e deixa-nos na dúvida sobre o que terá pretendido: exaltar o legado de Ratzinger ou, pelo contrário, mostrar-nos o homem que, antecipando-se aos escândalos que se abateram sobre a Igreja, passou "a bola" a Bergoglio? Um retrato algo injusto, uma vez que as investigações aos abusos sexuais no seio da Igreja começaram justamente quando o actual Papa Emérito era Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé.

     Em todo o caso, o filme gira inteiramente em torno daqueles homens, sem a perturbação de personagens secundárias, e dos debates que travaram entre si. As interpretações vão além do fabuloso, e confesso que gostaria de saber a reacção de Ratzinger ao ver-se retratado a comer pizza com as mãos e a dançar o tango.

3 de janeiro de 2020

Era uma vez em... Hollywood.


    Na altura, não fui ver este filme ao cinema. Esperei que estivesse disponível no videoclube da minha operadora de tv a cabo.

      Não vejo motivo algum para tamanho acolhimento junto da crítica. Mais, não vejo qualquer obra-prima de Tarantino aqui. Vejo, isso sim, uma procura por ser original, ao querer mostrar-nos os bastidores de uma Hollywood nem sempre cor-de-rosa que ficou lá pelos anos 60, com a interpretação multifacetada de Leonardo DiCaprio, sobretudo, que Brad Pitt foi quase duas vezes duplo: de 'Rick', a personagem de Leo, e do próprio. DiCaprio que vem mais uma vez mostrar tudo aquilo de que é capaz. A afirmação da sua personagem, o orgulho quando as cenas lhe correm bem (que o filme assenta numa narrativa dentro de outra), concorre com o próprio ego do actor, que esteve como peixe na água. Deu-se ao luxo de exibir a sua arte, com confiança e até com uma pontinha de arrogância. I'm the ***king best.




      Houve quem lhe chamasse um filme fetichista. É-o, efectivamente, na atenção que dá à mulher, aos seus pé, à pilosidade da hippie; à amizade masculina, aos carros, à masculinidade. Acima de tudo, este Era uma vez em… Hollywood é uma ode à sétima arte, e Tarantino preocupou-se mais em explorar várias vertentes do cinema, nos planos, na fotografia, no desempenho dos actores, no contexto histórico (o assassinato de Sharon Tate pelos Manson), do que em contar-nos uma história bonitinha e linear. Procurou, talvez no meio do marasmo, agradar àquele público menos óbvio e mais contundente nas críticas. Acontece que o filme, que é um experimentalismo, torna-se profundamente entediante. É um filme de massas sem pretensões de o ser. Tarantino quis surpreender.

    É um filme que se ama ou odeia. Eu odiei-o, claro está, no entanto, neste caso, apercebo-me de engenho e genialidade. Talvez eu não esteja à altura da arte de Tarantino. É mais confortável supô-lo do que ter como certo de que os grandes também erram, mesmo quando pensam que têm uma masterpiece em mãos.

13 de dezembro de 2019

Compras de Natal e "One From the Heart" (1982).


   Ontem, fui às compras de Natal. Comprar uns pequenos mimos para mim e para as pessoas que me são mais próximas. Como creio que lhes tenha dito, não tenho por hábito oferecer (a não ser à minha mãe), como não é costume na minha família trocar-se presentes. Os meus pais nunca me compraram nada sem que eu não os acompanhasse. Pelo Natal, levavam-me às lojas e eu comprava o que queria. Não tem tanta graça, é verdade, e é uma deturpação da essência de se comprar algo para oferecer: o factor surpresa e a demonstração de gentileza / carinho de quem oferece. Acontece que assim evitavam uma frustração caso não gostasse, e é difícil apurar-se ao certo aquilo que uma criança quer. Já havia muita tecnologia nos anos 90.

  Compras feitas por aí, num dos centros comerciais da cidade, decidi ir almoçar à Avenida da Liberdade enquanto esperava pela sessão das 15h na Cinemateca. Mais um clássico, desta feita um de 1982, de Francis Ford Coppola, One From the Heart. E o que se me apraz dizer sobre este musical do início dos anos 80? Desde logo, creio que agora sei onde Damien Chazelle foi buscar inspiração para o La La Land. Notei tantas semelhanças, sobretudo nos números musicais. Tal como este último, One From the Heart pode deixar um gosto amargo em quem vai à espera de algo verdadeiramente arrebatador; não o é. É uma reinvenção do género musical, com uma falha aqui, uma imprecisão ali. Na busca pelo sonho, notei um certo descuido até nos cenários, mesmo considerando o ano em que o filme foi rodado. Este filme não honra as produções hollywoodescas, inclusive nos gastos exorbitantes que as rodeiam sempre.




   Inteiramente passado na noctívaga Las Vegas, os sentimentos e as angústias daquelas personagens perdem-se  no meio de tanta luz, tanta festa e tanto brilho. A cidade é como que um parque de diversões enorme, onde não há lugar para os infelizes. Aquele optimismo e a animação chegam a ser sufocantes.

   Coppola e o director de fotografia procuraram criar duplos planos no plano, num jogo de sombras e espelhos que nos cria a ilusão de coexistirem espaços diferentes dentro do mesmo plano. Tal é observável em algumas cenas. Um virtuosismo ambicioso naquela época, pretendendo-se fazer escola com isso. Acontece que a receptividade não foi condizente com a ambição de Coppola, que quis resgatar o musical e manter o trilho de produções bem-sucedidas dos anos 70 que o tornariam num dos maiores nomes da indústria da sétima arte norte-americana.

    Particularmente, gostei do filme pelo tanto que me fez imergir numa realidade diferente da minha. Julgamos estar num sonho, um sonho apaixonante. Não foi uma má experiência, não foi. Dificilmente tenho más experiências com os anos 80.

30 de novembro de 2019

The Big Fish (2003).


   Não sou lá grande fã do Tim Burton. Vi alguns dos seus filmes, como os clássicos Eduardo Mãos de Tesoura e Batman, e a diferença face a este Grande Peixe é a seguinte: se nos outros há uma solidão em que se recortam as suas personagens, neste revela-se-nos um Burton que observa desde fora, mas que, inapelavelmente, está dentro da narrativa.

  É um drama familiar, com passagens que julguei, à saída da sala, apelarem demasiado à lágrima fácil da solteirona de quarenta anos. De qualquer forma, o argumento foi engendrado de um modo completamente original. A realidade a fantasia não se dissociam. Às tantas, cremos que a fantasia não o é assim tanto, para concluirmos que até nas maiores das loucuras há um pouco de razão.




   O final é particularmente interessante. A cena em que Ed Bloom (Albert Finney) é devolvido às águas tem algo de panteísta, de conciliador com a Natureza, de pacificador. É um filme francamente optimista. Vejamos: aquele homem enfrenta a morte com uma coragem incrível, mantendo-se confiante de que a sua forma de se impor perante a vida, incompreendida pelo filho, o ajudará agora no momento mais difícil, e esta personagem animada, exagerada, contrasta com a do filho, depressiva, abatida, quase taciturna. 

   Há ainda, dentro da história, um mote de reconciliação: Will, que mantinha com o pai uma relação distante, desconfiada, conflituosa em certa medida (estiveram três anos sem se falar), e que o julgava um mentiroso doentio, compulsivo, aceita-o na hora da morte, compreende-o, ajudando-o inclusive no momento da partida, contando-lhe uma história tão fantasiada como as que ouvira durante toda a sua infância.

   Um último destaque ao brilhantismo de Burton na sequência de pequenas histórias em flashback dentro da história principal. Aquelas que se desenrolam no circo e as suas atracções exóticas e aberrantes, a bruxa cujo olho desvenda a morte, o vilarejo idílico, o número musical no Vietname (que ainda continuar a povoar o imaginário norte-americano como uma ferida que não cicatriza nunca) e a cena na banheira, naquele banho de imersão intimista e sussurrado. Tudo digno de um pequeno génio na sua arte.