30 de novembro de 2019

The Big Fish (2003).


   Não sou lá grande fã do Tim Burton. Vi alguns dos seus filmes, como os clássicos Eduardo Mãos de Tesoura e Batman, e a diferença face a este Grande Peixe é a seguinte: se nos outros há uma solidão em que se recortam as suas personagens, neste revela-se-nos um Burton que observa desde fora, mas que, inapelavelmente, está dentro da narrativa.

  É um drama familiar, com passagens que julguei, à saída da sala, apelarem demasiado à lágrima fácil da solteirona de quarenta anos. De qualquer forma, o argumento foi engendrado de um modo completamente original. A realidade a fantasia não se dissociam. Às tantas, cremos que a fantasia não o é assim tanto, para concluirmos que até nas maiores das loucuras há um pouco de razão.




   O final é particularmente interessante. A cena em que Ed Bloom (Albert Finney) é devolvido às águas tem algo de panteísta, de conciliador com a Natureza, de pacificador. É um filme francamente optimista. Vejamos: aquele homem enfrenta a morte com uma coragem incrível, mantendo-se confiante de que a sua forma de se impor perante a vida, incompreendida pelo filho, o ajudará agora no momento mais difícil, e esta personagem animada, exagerada, contrasta com a do filho, depressiva, abatida, quase taciturna. 

   Há ainda, dentro da história, um mote de reconciliação: Will, que mantinha com o pai uma relação distante, desconfiada, conflituosa em certa medida (estiveram três anos sem se falar), e que o julgava um mentiroso doentio, compulsivo, aceita-o na hora da morte, compreende-o, ajudando-o inclusive no momento da partida, contando-lhe uma história tão fantasiada como as que ouvira durante toda a sua infância.

   Um último destaque ao brilhantismo de Burton na sequência de pequenas histórias em flashback dentro da história principal. Aquelas que se desenrolam no circo e as suas atracções exóticas e aberrantes, a bruxa cujo olho desvenda a morte, o vilarejo idílico, o número musical no Vietname (que ainda continuar a povoar o imaginário norte-americano como uma ferida que não cicatriza nunca) e a cena na banheira, naquele banho de imersão intimista e sussurrado. Tudo digno de um pequeno génio na sua arte.

25 de novembro de 2019

The Dresser (1983).


   Shakespeare e as mil caras



   Escolhi esta foto, que infelizmente tem as letrinhas a incomodar, não ao acaso; fi-lo porque deixa patente o móbil de Peter Yates, o realizador, com esta narrativa construída em torno das estrondosas interpretações destes dois grandes nomes da sétima arte: Albert Finney, falecido este ano, e este filme insere-se num ciclo evocativo da sua obra, e Tom Courtenay. Mais do que a decadência física e mental de um velho actor que se arrasta pelos palcos por vocação e uma mistura de sentido de obrigação e responsabilidade para com o seu público, sobressai, sobretudo, aquela relação entre vedeta e camareiro, de mútua dependência, com momentos de tensão, de esgotamento, de impaciência e de amor, não um amor homossexual, mas, e de forma unilateral, por Norman, um amor um tanto ou quanto homoerotizado, vendo em Sir a figura que, à sua forma, idolatrava.

   Yates foi quase um artesão: esculpiu aquelas personagens, permitindo a Finney e a Courtenay que pudessem mostrar toda a sua arte e talento nas mil e uma faces que um actor pode ter, do choro, à ira, à ternura, em emoções teatralizadas que extravasam quase os limites da acção humana. Praticamente não nos damos conta das outras personagens, tal a demolidora presença do velho actor shakesperiano e do seu camareiro.




    É um filme muito físico. Finney vocifera, estrebucha, arrasta-se pelos palcos e corredores. Vê-lo cansa-nos os olhos e perturba-nos os ouvidos. O actor berra, berra muito. O que se quis foi fazer daquela personagem, que cambaleia sempre entre a ficção e a realidade, um apanhado de todas as criações do dramaturgo inglês: Macbeth, Rei Lear, Othello e por aí.
   Não admira que tenha havido alguma inépcia e até prostração de Yates perante um argumento tão arrebatador e exigente para aqueles dois actores. Tudo o mais soçobra ante aquelas interpretações, e os maneirismos de representação põem mais em evidência os actores do que as personagens. É um duelo a dois.

    Finalmente, este filme é uma escola de boa representação. Daqueles manuais em imagem e som que qualquer aspirante a actor deve ver.

22 de novembro de 2019

O não-jantar de Natal - Lisboa 2019.


   Em anos anteriores por estes dias já tinha falado do costumeiro jantar de Natal que organizo para amigos e leitores do blogue. Este ano, à falta de vontade junta-se a constatação de que não faria sentido manter uma tradição quando já não há espírito de comunidade na blogosfera em que me insiro. Não há blogues. As pessoas não escrevem. E as que escrevem fazem-no essencialmente para si. Eu incluído. Não que em 2017 e em 2018 a blogosfera estivesse nos seus melhores dias, que não estava, mas sobre ela ainda não se havia abatido o estigma da morte incontornável. Daí que não faça sentido procurar organizar um evento que, à partida, sairia falhado. E dá trabalho. Há que divulgar, fazer telefonemas, marcações. Comprometer-me. Não quero. 

   Acresce ainda outro factor, porventura igualmente determinante, que é o da morte recente do Miguel Botelho. Pessoalmente, não me sinto confortável a organizar um jantar, um evento que se quer festivo, animado, pairando sobre mim e os convivas, ou seguramente sobre mim, o falecimento de uma das maiores referências da minha blogosfera. Não há nada a comemorar, antes pelo contrário. Há a lamentar. A partida do Miguel teve um impacto enorme em mim. Raro é o dia em que não penso nele. Não me perguntem o porquê.

   Enfim, este Natal blogosférico será menos colorido. Se alguém, que não eu, quiser organizar um lanche, um café, algo discreto, sem aparatos e euforias, não direi que não. Mais do que isso, por tudo o que disse e mais alguma coisa de que me tenha esquecido ou propositadamente omitido, não. É este o ponto de situação.

21 de novembro de 2019

Murder on the Orient Express (Um Crime no Expresso do Oriente).


   Segunda-feira foi dia de clássico. Um Crime no Expresso do Oriente (1974) será, seguramente, um dos filmes que já foram exibidos vezes sem conta na televisão. Eu, em jeito de curiosidade, só me recordava da sua derradeira cena, paradigmática e memorável, e tão-pouco a relacionava a este título.

  Sendo um clássico da cinematografia, como não li o romance policial de Agatha Christie que lhe serve de inspiração, não poderei fazer um paralelismo entre a obra escrita e a sua adaptação. Ouvi uns rumores de que não lhe é fiel; algo, todavia, é certo: quarenta e cinco anos depois, continuamos a aguardar, expectantes, a solução do misterioso assassinato pelo não menos famoso detective Poirot, uma das mais célebres criações de Christie, aqui interpretado por Albert Finney, que lhe imprimiu um ar em certa medida descontraído, desajeitado e bonacheirão.

  Incontornáveis são também os desempenhos individuais de Ingrid Bergman, que aliás levou o Óscar de Melhor Actriz Secundária, de Anthony Perkins e de Wendy Hiller. Infelizmente, quase todo o elenco já faleceu. Do tempo em que havia bons actores. Sentia-se toda uma escola de representação nas prestações de cada um. Mais do que pensando no reconhecimento futuro, importava fazer, e de preferência bem feito. Um apreciador de beleza feminina não deixará de se render aos encantos de Laura Bacall e de Jacqueline Bisset.




   Há um toque a paródia que aligeira o argumento policial (Bianchi, que após cada interrogatório julga estar-se perante o autor do crime). Não sei em que medida a opção do realizador, Sidney Lumet, terá retirado algum do suspense. Em rigor, embora seja um clássico e queiramos saber quem está por detrás daquele homicídio, nunca parece ser esse o mote principal. Mais do que a narrativa, que se torna apelativa pelo mistério que a adensa, o leque de grandes actores é a grande mais-valia desta história. São uma verdadeira constelação, e aquele final foi como que encomendado à medida para que todos pudessem brilhar, e nem poderia ser de outra forma.