8 de março de 2017

Três, ou quatro, em um.


   Estas últimas semanas têm sido atribuladas. Eu, um rapaz tão caseiro, virei um vadio (na acepção decorosa da palavra, sublinhe-se). Quase não estou em casa, sobretudo à noite. A mãe fica feliz, por um lado, mas extremamente preocupada. Creio que também lhe faz bem, indirectamente, porque começa a desvincular-se um pouco. Não que tenha notado isso nas suas reacções; pelo contrário, está paranóica com as minhas saídas. Liga-me imensas vezes. Como a compreendo (se fosse pai, melhor, se for pai, serei igual, ou pior), procuro tranquilizá-la. Hostilizar não ajudaria, e seria profundamente injusto. Quando a perder, ninguém mais se importará se como, se durmo, se tomo a medicação da asma, se ando à chuva.

     Na quinta-feira, fui à Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves, ali pelo Saldanha. O Dr. Anastácio, médico, legou a mansão e o seu recheio, pela sua morte, ao Estado português. Grande coleccionador de arte, deixou um espólio profuso, entre telas, porcelanas, cerâmicas, mobiliário... Daí ser uma casa-museu; casa, porque lá habitou, efectivamente. Gostei bastante da visita. Fi-la sozinho, o museu não tinha ninguém, tendo direito a uma visita guiada de uma das funcionárias, uma senhora de alguma idade, muito simpática e educada. É tão bom encontrar pessoas assim. Senti uma candura qualquer naquela senhora.

     Mais à noite, subi ao Campo Pequeno e encontrei-me com uma colega dos tempos do colégio, a A., que conheço há vinte anos (estou a envelhecer...). Está emigrada na Inglaterra, e aproveitamos quando cá vem para pôr a conversa em dia. Jantámos por lá.


      No domingo, decidi-me, com um amigo, a visitar alguns dos museus da capital. Começámos no Museu Militar, em Santa Apolónia, que presumo ter conhecido em criança. Tive lampejos de memória ao percorrer as galerias, as muitas galerias - tantas que um funcionário, também muito atencioso, sentiu o apelo em alertar-nos para que não deixássemos de ter em atenção a hora de encerramento para o almoço.
      Foi um dos que mais gostei, como se compreende, pela densidade histórica. Não tem só canhões e espingardas, não, embora tenha muitos. Tem quadros, maquetes, bustos, manequins fardados, adereços.

      À tarde, fomos até ao Lumiar, quase nos arrabaldes da cidade, ao Museu do Traje, primeiramente, e ao Museu do Teatro, que se situam no Parque do Monteiro-Mor, este, por sua vez, envolvendo o Palácio do Monteiro-Mor. Estive nos jardins há uns anos. Desta vez, pela chuva miudinha e por estarmos com alguma fraqueza, não os pude percorrer, com pena minha.
       O Museu do Traje tem interesse, mas achei-o um pouco desprovido. Julguei-o mais faustoso. Nem me recordo da última vez que lá fui. É evidente que será fácil reunir os vestidos dos séculos XVII e XVIII, aqueles modelitos deslumbrantes das infantas. Curiosamente, considerei o museu mais apelativo na galeria do século XX. Gostei de ver aquelas roupas de senhora das décadas de 10, 20, 30, e por aí fora.
       O Museu do Teatro é, de longe, mais apelativo. Tem um arquivo fotográfico muito rico, a par, claro, daqueles fatos que os actores usavam nas peças. Um mimo. Saliento um livrinho da Presidência do Conselho, exposto numa vitrina, com os traços do censor do Estado Novo ( « foram mandados tapar os umbigos de todas as coristas »). Estávamos em Setembro de 1958, e Oliveira Salazar não condescendia com esses atrevimentos. Às senhoras, estava reservado o recato.

       Ainda passámos pelo Museu Nacional de Arte Antiga, que havia visitado há poucos meses. Fomos levados pela vontade de visitar as obras de arte de Domingos Sequeira, pintor dos séculos XVIII e XIX.

       Passando já ao dia de ontem, terça, estive no cinema, e vão-me perdoar, mas não poderei deixar passar em vão alguma menção ao filme. Falo-vos do Hidden Figures. Desconhecia que o filme se baseava em factos reais. Tinha alguma ideia da narrativa, por um trailer que vi numa destas minhas últimas sessões.

        Não será o filme da vida de ninguém, no entanto é um bom filme. É realista, interessante pelo contexto histórico e social - a segregação racial que ainda persistia em determinados estados dos EUA. Aquelas três mulheres, afro-americanas, conquistaram árdua e sofridamente o prestígio. Se o dito " não se vai a lugar algum sem esforço " se adequa, eu diria que se lhes aplica sem hesitar. Eu não sei se toleraria tanta humilhação, tamanha brutalidade e ranço xenófobo. Era de uma irracionalidade tal que, ainda que conhecendo as atrocidades sociais do apartheid sul-africano, pensamos sempre: " isto aconteceu mesmo? ".
        Se os estadunidenses conseguiram levar a dianteira aos soviéticos em tecnologia, pondo Armstrong na Lua, muito devem ao contributo destas mulheres e aos seus múltiplos meses de esforço. Foram sumidades na matemática, cujos cálculos permitiram o triunfo dos EUA na corrida espacial.
        As actrizes principais foram bem convincentes. Lá está, um filme que não teve o destaque de Moonlight, não obstante ambos versarem, com vantagem para Hidden Figures, sobre a discriminação.

        E fico-me por aqui, que falei mais de mim nesta publicação do que em meses, e ainda corro o risco de passar a ideia de que tenho uma vida preenchida.

17 comentários:

  1. Ainda não vi o "Hidden Figures", mas devo vê-lo amanhã. Quero ver todos os filmes nomeados aos Óscares para poder fazer uma reflexão sobre eles lá no blogue. ;)

    Que bom que andas mais "saído da casca"! Só te faz é bem, a vários níveis! ^^

    Abraço grande :)

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  2. Tu andas um galdério (risos), não páras com o rabo em casa (mais risos)

    Ver se convidas para um cinema ;)

    Grande abraço amigo

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    1. Amanhã vou a uma vernissage, vê-me lá tu!!

      Vamos ver isso. :)

      um grande abraço.

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  3. Se tua vida não está preenchida, pelo menos estes dias esteve ... rs

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  4. Ainda não compreendo como é que vocês digeriram tantos museus sem terem tido uma barrigada :) .
    Foi uma autentica maratona...

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    1. Começámos cedo, Magg, e deu tempo para tudo. O metro ajuda.

      um beijinho. :)

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  5. Todas as casas-museu, para lá de nos permitir ver um conjunto único de obras de arte (mas isso também poderemos ter em qualquer museu), têm o atrativo de nos permitir vislumbrar a intimidade e a personalidade de quem lá habitou, e que, de outra forma, nem sequer saberíamos que tinha existido. Acaba por ser o prolongamento da existência espiritual de alguém para lá da sua própria vida terrena.
    E, estranhamente, estas casas, apesar do seu aspeto apelativo e intimista, para não mencionar o artístico, raramente estão habitadas por visitantes.
    Porque tenho uma ligação especial, desloco-me amiúde às casas-museu de Anastácio Gonçalves e à da Fundação Medeiros e Almeida, em Lisboa, e à minha muito querida de José Régio, em Portalegre (como eu adoraria viver rodeado por peças como as que povoam esta em especial), e, não raro, sou o único visitante português a deslocar-me por entre aquelas salas quase dedicadas às moscas.
    Os portugueses por qualquer razão que me escapa, não parecem gostar muito destes espaços intimistas (apesar de reconhecer que gostam da visitar os palácios reais que se encontram abertos ao público, pois quando vou a Sintra ou Vila Viçosa, mal consigo romper por entre a multidão), ou então, não sabem da sua existência, e é pena, pois sinto que nestes ambientes se percebe a existência de alguém que dedicou uma vida a juntar um espólio impressionante (muitas vezes com notório esforço económico, como foi o caso de José Régio) e que, no final da vida, fez o favor de deixar para a posteridade, e para todos nós afinal, o fruto do seu labor.
    É digno de nota e de apreço.
    Um bom final de semana, e espero que continue na sua senda pelo exterior, vivendo esta cidade que a todos nos dá prazer
    Manel

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    1. Bem, da experiência que tenho, quando as exposições são bem publicitadas, geralmente a afluência é muita. Creio que o panorama se está a alterar: temos uma geração de meia-idade, quarentas, que já estudou, que já nasceu no pós-25 de Abril, mais instruída, e que se preocupa, nesse sentido, em conhecer mais. Vejo muitos casais com filhos, adultos na casa dos quarenta.

      Gosto muito de Vila Viçosa. Há anos que não vou lá, e a minha família tem casa relativamente perto, em Estremoz.

      Continuação de boa semana e bom fim-de-semana, Manel. Obrigado.

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    2. Gostaria de fazer só um ligeiro reparo : a casa Museu de Anastácio não está mobilada com as peças da intimidade do proprietário mas com as peças da sua colecção. Indicaram-me que eram mais adequadas à atracção "turistificada" o que é uma pena :( .

      Beijinhos

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  6. Lisboa tem lugares muito bonitos. não apenas os museus, de visitar sempre que possível, mas recantos, bairros, cafés, jardins, sítios que vale a pena descobrir.
    tudo tem o seu tempo. chegaste ao momento de desfrutar de cinema, de passeios, caminhadas, museus... quanto a envelheceres, tu conheceste a tua amiga quase em bebé :) vinte anos? o que digo eu, então? ;)
    bjs.

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    1. Miradouros...

      Conheci-a no colégio. :) Já não era um bebé. Era criança.

      um beijinho.

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  7. Fazes bem em sair, arejar as ideias, ver pessoas, ver prédios e sentir a vida com outra densidade :)

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    1. Ver prédios? :D (risos)

      Sim, faz bem, mas eu sempre saí. Não saía era tanto. x)

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  8. Com quase um mês de atraso, reparei no teu comentário naquele meu canto esquecido. Como o tempo passa...
    Espero que estejas bem. Um abraço!

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  9. Tu talvez te lembres de pessoas com quem não criaste um vínculo, já eu sou assombrado pela saudade das pessoas com quem em algum momento criei um vínculo e que por circunstâncias diversas se afastaram. E ainda na semana passada isso aconteceu a propósito de um rapaz que conheci aqui pela blogosfera e que me fez aceder a esta conta e reparar no teu comentário.

    Também vou andando, olhando para o espelho e vendo mais do mesmo e ainda assim tendo saudades de quem fui.

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