31 de março de 2014

Reflexões e momentos.


  Ontem, fui almoçar com a mãe. Tradicionalmente, os domingos são passados em casa dos avós. Há tempos que venho tentando quebrar com esse costume e já o transmiti à mãe. Perco a paciência para estar rodeado de muitas pessoas. Se sempre fui sensível a barulhos, não gostando igualmente de estar cercado, essa tendência tem se acentuado ultimamente, sobretudo quando há crianças pequenas na família. Tenho percebido que a vocação para ser pai é nula. Fui birrento, demasiado até, mas não gritava, guinchava e outros que tais. Pode-se dizer que era um menino educadamente chato e inconveniente. Irrequieto, sim, não me recordando de perder a compostura.

  Fomos a uma pizzaria. Oh, há séculos que não comia uma pizza! Soube-me pela vida! A mãe também é apreciadora. Escolhemos a típica Quatro Estações.
  Temos poucos momentos nos últimos anos. É comum a mãe chegar tarde. Eu, embora não me deite cedo, geralmente estou a estudar, portanto, aos dias da semana há poucos diálogos.

   
  Isolo-me cada vez mais. A idade só piora. Tenho absoluta noção de que serei um eremita, de futuro, não rodeado por gatos ou outros mamíferos (não posso). Bom, um eremita do século XXI, charmoso, bem vestido, grisalho, embora altivo, sobranceiro e até, diria mesmo, sisudo. Não que me desagrade. Temos de ser autosuficientes. Começo a dar razão a todos aqueles que defendem que depender de outros é o pior que pode acontecer. De atenção, de carinho. A vida é uma tragédia, já o sabemos. Temos de estar preparados para as condições adversas. Saber envelhecer (sim, já vou pensando nisso - homem prevenido vale por dez) com classe e sabedoria é virtude de poucos e anseio de muitos. O amor torna-nos frágeis e incapazes. O sexo, enfim, é uma questão de controlo. O celibato pode ser um estímulo para alcançarmos o nosso nirvana. Mais longe do Homem, mais perto da perfeição. Somos dotados da maior caixa craniana do mundo animal, mas tão débeis. Ser um senhor de meia idade que se cuida, pratica desporto, estimula o seu intelecto, pode ser altamente sedutor... para ele mesmo. E tenho bons exemplos que não reproduzo por elegância.

   Há que limar algumas arestas. Sou novo e tenho tempo para isso. Não posso ficar vermelho de raiva e inerte perante um bule que se vira e entorna o chá sobre os nossos livros e, quase, o mini portátil, como aconteceu na semana passada. Tive por perto uma colega que lá tirou uns guardanapos e os ensopou. Ainda me irrito com pormenores risíveis. Sei lá; seria de esperar que desse uma valente gargalhada. Passei horas a verificar os estragos - lamento mesmo que as páginas tenham ficado todas encarquilhadas ao secar.

   Entre pedaços de cogumelo e de milho, veio à conversa a aparente frieza da sua relação com o marido. Lá me confessou que não mais é feliz no casamento.

   "Troque. Já casou três vezes. Mude de novo!"

   Surpreendida, chamou-me pelos meus dois nomes próprios. A família, por hábito iniciado pela mãe logo após o meu nascimento, trata-me pelo meu segundo nome. A mãe nunca usa o primeiro. Conjugados, significa que: primeiro, está furiosa; segundo, está perplexa. Comprova-se o segundo.

   Tenho um respeito reverencial pela mãe. Algo quase sagrado, não obstante, o mesmo não me impede de alertá-la no sentido de procurar o seu bem-estar. Se não sente nada por aquele que o contrato que celebrou ainda diz que é seu marido, nada como uma boa e célere acção de divórcio. Nada lhe ensino. Ela saberá, melhor do que eu, os passos a dar. Tem experiência no assunto. Atendendo ao passado cada vez menos recente, mas que ainda guardo presente na memória, desligou-se do pai em Outubro de dois mil e cinco, sendo que se separaram em Fevereiro de dois mil e seis. Ora, dá quatro meses. Lá para Julho, Agosto, deixa este. É uma boa média. Ponha o assunto no seu advogado e mexa-se o quanto antes. A felicidade não esperará por si.

  Como o céu não auspiciava nada de bom, voltámos a casa, sempre conversando pelo caminho. Decisão acertada. Pouco depois caiu uma enorme chuvada.

    Uma tarde profícua.

28 de março de 2014

O mau jornalismo.


    De que Portugal tem uma péssima classe jornalística, isso ninguém duvida. Torna-se habitual fugir à isenção, sofrer pressões de forças ocultas, tomar partidos... Desde há dias, acrescenta-se mais um nome há já longa lista: José Rodrigues dos Santos. Para quem não sabe, ou não está a par, faço menção ao novo espaço de comentário de José Sócrates, na RTP1, transformado, ao menos a julgar pela primeira emissão, em entrevista política de qualidade duvidosa.

  Não vi aquando da sua transmissão original. Tendo conhecimento da polémica surgida nos meios de Comunicação Social, fiz uma busca incessante na net para dar com a malfadada entrevista. Ontem, já sossegado, pude assistir a meia hora de algo degradante para o jornalismo, até para um jornalista acima de quaisquer suspeitas, que julgava competente, profissional e imparcial.

   Sendo sucinto, ao longo do espaço de comentário, José Rodrigues dos Santos fez ataques ultrajantes a José Sócrates. Sócrates, evidentemente, é um hábil estratega político e soube contornar a situação, admitindo mesmo que não estava preparado para aquilo. A tudo rebateu com elegância e convicção. Mais tarde, perante críticas que surgiam, Rodrigues dos Santos tentou desculpar-se, ou, melhor dizendo, sustentar o seu procedimento num qualquer quadro deontológico da BBC!... Precisa de ir buscar critérios estrangeiros para maquilhar aquilo que fez, a quebra inadmissível na postura que um jornalista deve adoptar perante qualquer entrevistado ou interlocutor. O problema, José Rodrigues dos Santos, é nunca ninguém o ter visto tão acutilante com outros convidados / entrevistados.

   Como resposta às inúmeras críticas, Rodrigues dos Santos mostrou uma petulância que lhe era desconhecida, afirmando que aprendeu jornalismo na BBC, como se isso fosse selo de garantia! Foi mais longe ao dizer que, e cito, «não faz sentido esperar que um jornalista do "Avante", por exemplo, seja isento». De facto. Mas é de se esperar que um jornalista da RTP, por exemplo, o seja. E não o foi. Já sabemos que é controlada (tutelada), e tenho noção do peso desta palavra, pelos sucessivos governos. Não esperava que fosse tanto. Todavia, mantenho a principal objecção que referi anteriormente: este estilo do jornalista é desconhecido com outros entrevistados. Nunca ninguém o viu assim. Espero que o repita... com Pedro Passos Coelho, Paulo Portas e outros que tais, quando não mais ocuparem cargos governamentais! Diria mesmo que é um imperativo de consciência; de outra forma, a sua reputação de jornalista, que já nada num curso de águas da chuva rumo à sarjeta, sumirá de todo.

    O que eu vi - eu e muitos - foi um ataque quase pessoal a José Sócrates. Por momentos, o direito à resposta e ao contraditório teve de ser invocado por Sócrates. Rodrigues dos Santos, e notava-se claramente, estava agressivo, alterado, utilizando um tom de voz e trejeitos inéditos. A pseudo-entrevista está pela net. Não vi o papel de "advogado do Diabo", compreensível e ético. Rodrigues dos Santos foi muito além disso. Roçou-se o pessoal, o ideológico. Só não vê quem não quer.

  Ainda que encontrasse contradições no discurso do ex-Primeiro-Ministro, cabia-lhe questioná-lo com tranquilidade e, sobretudo, deixando-o responder. Posteriormente, veio a público dizer que, num almoço, avisou José Sócrates das mudanças no seu espaço de comentário. Bom, as mudanças foram tão significativas que eu não vi qualquer espaço destinado ao comentário político. Eu vi uma entrevista conduzida por alguém afecto ao PSD / CDS-PP, travestido de jornalista. Sócrates tampouco estava à espera daquilo. Não houve qualquer isenção numa emissora de televisão paga por todos os contribuintes. Risque-se aquela meia hora da história da nossa televisão. A RTP veio defender a actuação do seu jornalista. Seria estranho se não o fizesse!

    Sócrates, e bem, continuará com o seu espaço de comentário semanal - ao que tudo indica mais interventivo, a partir de agora, da parte do jornalista / moderador que assumirá o controlo. Desistir seria fugir ou dar razão a Rodrigues dos Santos, justificar aquilo que fizera, sair pela porta traseira. Acredito que não esteja «divertidíssimo com o programa», como declarou, já todos conhecemos a personalidade de Sócrates, mas outra reacção não seria de esperar.

   Nutro uma simpatia pessoal por José Sócrates. Tivesse Rodrigues dos Santos coragem para admitir a sua antipatia. No entanto, fui imparcial nesta análise. 
   Abriu-se um precedente. Que outras figuras se sentem diante de José Rodrigues dos Santos e por ele sejam confrontadas, de forma igual, em directo. É o que espero a partir de hoje. E tenho tempo.

25 de março de 2014

Constitucionalismo Britânico.


    O Reino Unido, como sabemos, não possui uma Constituição escrita, formal, à semelhança do que acontece nos países da Europa Continental. Não há um único texto escrito onde estejam expressas as normas do seu edifício constitucional. Daí se falar, recorrentemente, que a Grã-Bretanha tem uma Constituição não escrita, unwritten constitution. Não significa isto que não haja leis constitucionais; há, sim, mas são redutos do constitucionalismo inglês, assente na longa evolução histórica e no costume, ou seja, as práticas imemoriais de determinados factos ou o exercício de certas faculdades que a colectividade entende que devem persistir, punindo-se todos aqueles que as desrespeitem. Estão incluídas também as práticas, praxes e conventions, que, não sendo Direito, regem por acordos políticos estabelecidos.

    Os textos escritos, históricos, não estão codificados. O primeiro deles, e de especial importância, é a Magna Carta, de 1215, que os barões do reino impuseram ao monarca João Sem Terra. Vencido numa guerra pelo continente, sem o apoio da Santa Sé e sem recursos financeiros, o rei teve de resignar-se a firmar um documento em que se comprometia a respeitar os privilégios e liberdades da nobreza, do clero e do povo. Esta Carta preconizava ainda a liberdade da Igreja, as prerrogativas municipais, a moderação na tributação dos mercadores, o direito que cada um tem a não ser condenado senão em virtude de um julgamento prévio, o direito que todos têm à justiça... Era um verdadeiro foral da Nação - um pacto que o rei e o país estavam terminantemente proibidos de violar.

   A Magna Carta seria confirmada pelos sucessores de João Sem Terra. Fora escrita em latim e só posteriormente traduzida para a língua inglesa (no século XVI). Isto obstou ao seu conhecimento pela generalidade do povo britânico. O seu teor e o que previa era um privilégio das classes favorecidas e essas extraíam o seu conteúdo político.

    No século XVII, apareceram novas leis constitucionais. No reinado de Carlos I, travou-se uma luta, respeitosa no início, entre a Coroa e o Parlamento. O monarca pretendia manter intacto o seu poder de decidir e comandar como verdadeiro e único chefe da Nação; o Parlamento queria afirmar a sua supremacia e o direito de tecer observações e responsabilizar os conselheiros régios. O rei perdeu esta querela e, enfraquecido, viu-se obrigado a convocar o Parlamento, em 1628. Aproveitando a má situação, este apresentou ao rei a célebre Petition of Right, que o mesmo teve de aceitar, ainda que com relutância.

    A Petition of Right, um dos pilares do constitucionalismo inglês, protestava contra o lançamento de impostos sem o consentimento do Parlamento, contra as prisões arbitrárias e contra o uso da lei marcial e da permanência de soldados nas casas dos particulares em tempos de paz. É importante não confundir a Petition of Right com o Bill of Rights, de 1689. Depois de 1628, houve uma revolução, em 1640, que conduziria à deposição do rei e à sua subsequente decapitação. Cromwell, brilhante estadista, tornou-se o Lord Protector de uma República de brevíssima existência. Prova é que a Constituição escrita que deu ao seu povo só sobreviveria dois anos à morte do ditador. No ano de 1660, a monarquia foi restaurada e Carlos II ascendeu ao trono. Suceder-lhe-ia, em 1685, Jaime II, católico, que pretendeu sujeitar novamente a Igreja inglesa à autoridade papal. Como reacção, em 1688, uma revolução depôs o último monarca da Casa dos Stuarts, negando o direito divino dos reis e invocando a existência de um pacto entre a nação e o soberano. Foi então chamada ao trono a filha do rei, Maria, que estava casada com o seu primo, um príncipe holandês, Guilherme de Orange. O Parlamento condicionaria a aclamação dos monarcas à aceitação do Bill of Rights.

    E o que é o Bill of Rights? É uma declaração de direitos, enumerando uma série de actos que o rei não pode cometer por serem desconformes, significando isto que o rei está submetido ao direito que resulta do costume sancionado pelos tribunais, o common law, que é aplicável a todos os ingleses, independentemente do seu estatuto social, do rei ao homem do povo. Este bill consagra várias garantias: o direito de petição, assegura a liberdade e a inviolabilidade dos membros do Parlamento no exercício das suas funções, enuncia a reunião regular das câmaras, condena os tribunais de excepção, ilegaliza a suspensão de leis só pela vontade do rei ou o favorecimento régio que dispense alguém do cumprimento da lei e estabelece claramente que o rei não pode lançar impostos ou manter um exército permanente sem a autorização do Parlamento.

   A Coroa, atribuída à Casa de Orange, ficaria dependente do Parlamento. No último ano do reinado de Guilherme de Orange, ou Guilherme III, 1701, o Parlamento aprovou o Act of Settlement, à luz do qual só pode ascender ao trono britânico um príncipe anglicano, prescrevendo ainda novos impedimentos para que o rei não governe sem o Parlamento ou prejudique a supremacia parlamentar, vedando ainda que o soberano possa imiscuir-se na consciência dos juízes.

   Nos nossos tempos, século XX, seriam elaboradas mais leis constitucionais, a ver: o Parliament Act, de 1911, que restringiu os poderes da Câmara dos Lordes (como se sabe, o Parlamento britânico é composto por duas câmaras: dos Lordes e dos Comuns), fixando em cinco anos o mandato dos deputados da Câmara dos Comuns; o Statute of Westminster, de 1931, que veio regular as relações entre o Reino Unido e os seus domínios e colónias no ultramar; o Ministers of the Crown Act, de 1937, alterado em 1946 e 1957, que fixou o vencimento dos ministros, consagrando ainda a existência de várias funções que até então eram meramente costumeiras; os Regency Acts, de 1937 e 1953, que regulam os preceitos da regência em caso de menoridade ou incapacidade do rei; o Parliament Act, de 1949, que impôs mais restrições ao poder legislativo dos lordes; o Life Peerages Act, de 1958, que permite a nomeação de lordes a título vitalício; o Peerages Act, de 1963, que conferiu aos pares da Escócia o direito de tomar assento na Câmara dos Lordes, entre outros. Estas foram as principais inovações no século passado.

    Devem ainda ser consideradas leis constitucionais todas aquelas que confluíram para o actual Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte. No século XIII, a Inglaterra era apenas um dos vários reinos das ilhas britânicas. Eduardo I anexaria a este reino o País de Gales, com o Statute of Wales, de 1283, passando o título de Príncipe de Gales para um dos filhos dos monarcas ingleses (seria estabelecido no primogénito). Só três séculos mais tarde, no século XVI, é que Henrique VIII transformaria essa anexação numa incorporação definitiva, conferindo aos galeses a possibilidade de elegerem representantes para a Câmara dos Comuns.
    Outro reino independente era a Escócia. Em 1603, o rei da Escócia, Jaime VI, foi chamado para ocupar o trono inglês devido à morte da Rainha Virgem, Isabel I, última monarca da Dinastia Tudor. Jaime tornar-se-ia rei de Inglaterra como Jaime I e a Escócia manteria a sua independência num regime de pura união pessoal com a Inglaterra (dois reinos, um rei), à semelhança do que acontecia - curiosamente pelos mesmos anos - entre Portugal e Espanha (dois reinos absolutamente distintos, dois impérios, um só rei). Ao contrário da separação que se efectivaria nos reinos ibéricos, em 1707, já no reinado de Ana, os parlamentos dos dois reinos, escocês e inglês, decidiram avançar com a união pessoal para união real. O Act of Union, da mesma data, estabelecia um só Parlamento e políticas comuns. A Escócia manteve determinados poderes, como a sua Igreja oficial, leis municipais e civis, tribunais e nobreza, que se fazia representar na Câmara dos Lordes por dezasseis pares. O Parlamento escocês reabriria em 1998, trezentos anos depois, com o Scotland Act.

    Por fim, a Inglaterra foi dominando a Irlanda ao longo do tempo. Em 1800, unir-se-iam, formando o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda. Em 1921, a Irlanda do Sul constituiu, como domínio, o Irish Free State, que proclamaria a sua independência em 1937. Continuou incorporada ao Reino Unido a Irlanda do Norte, desde 1921, que possui governador-geral, duas câmaras e gabinete próprio, não sem consequências sangrentas ao longo das décadas...

    Hoje, do Reino Unido faz parte a Inglaterra, o País de Gales e a Escócia (Grã-Bretanha) e ainda a Irlanda do Norte.

22 de março de 2014

Conferências (Parte II).


    Não era suposto ir. No entanto, não se falou de nada mais durante o dia.

  Depois do almoço, comi um menu do bar da faculdade e fui estudar para a biblioteca. Por casualidade, encontrei uma amiga que não conseguiu transitar de ano e, desafiado por ela, concordei em ir assistir a uma outra palestra, poucas horas depois, subordinada ao tema "Criminalização da Homossexualidade no Uganda". Duas conferências no mesmo dia, com poucas horas de intervalo, abordando a homossexualidade, numa faculdade conservadora. Boa... Esta teve início às dezasseis. Estiveram presentes uma activista da Amnistia Internacional, um jurista e jornalista radicado em Moçambique e um professor-assistente de Direito Penal. Foi bastante interessante. Falou-se da realidade dos homossexuais em África, no geral. No final, pudemos colocar questões à bancada. Ao meu lado, esteve um colega rapaz que me surpreenderia. Mais atrás, uma coleguinha que presumia retrógrada, do pior, e afinal... As aparências enganam.

   A situação da homossexualidade em África é muito precária. É ilegal em cerca de 34 países, incluindo Angola e Moçambique, por exemplo. A diferença é a de que nestes dois países, antigas colónias portuguesas, não há uma militância em perseguir gays e lésbicas. Todavia, a legislação está lá e não engana ninguém. É proibida. Num power point, a activista apresentou-nos slides muito esclarecedores. Alguns incluíam fotos e breves resumos sobre a vida de homossexuais, homens e mulheres, assassinados pelo continente africano. Deveras emocionante. É impossível não se ficar perturbado. No final, intervim e trouxe à colação o recrudescimento da intolerância na Rússia e as tradicionais violações sistemáticas dos direitos humanos, no que concerne à homossexualidade, no Médio Oriente e nos países islâmicos, independentemente de onde se encontram no globo.

   Terminaria às dezoito, à mesma hora em que estava a começar o outro debate, desta vez sobre a "Co-adopção por Cônjuge ou Unido de facto do mesmo Sexo".  Saímos em passo acelerado e chegámos a tempo de arranjar dois lugares bem à frente. Como previ, foi o caos, com uma nuance: o próprio psicólogo clínico estava contra o projecto da co-adopção. Em parcas palavras, foi uma conferência dos opositores. O que eu não sabia, e que não transmiti no último post, é que houve uma conferência, na semana passada, cujo painel era composto por pessoas favoráveis à co-adopção. Em vez de promoverem um único evento que reunisse as diferentes sensibilidades, não. Nessa, soube, participaram um activista da ILGA, Paulo Corte-Real, um juiz, Dr. António José Fialho, um deputado do PS, Pedro Delgado Alves, e ainda a Presidente Executiva do Instituto de Apoio à Criança, Dulce Rocha. Tive azar!...

  Estaria na pior de todas. Por incrível que pareça, o padre foi o menos agressivo e extremista; o psicólogo, o pior. Perante centenas de pessoas (o anfiteatro comportará cerca de trezentas, fora as dezenas que estavam de pé), disse barbaridades como a das suas capacidades de converter homossexuais. Leram bem. Afirmou, peremptoriamente, que vários gays e lésbicas que, porventura, haviam casado com pessoas do mesmo sexo, o procuraram e que ele, humanamente, os conduziu à vida heterossexual, estando hoje essas pessoas casadas com cônjuges de outro sexo, constituindo família, com filhos, e sendo felizes. Não admira que tenha uma série de processos da Ordem dos Psicólogos! Não revelarei a identidade do senhor por uma questão de reserva. Procurem por um psicólogo que só diz disparates e facilmente chegarão ao nome...
   Dois professores, conservadores, um dos quais, por quem nutro especial carinho, levou o seu preconceito ao limite, por entre aplausos efusivos de uma plateia maioritariamente católica e intolerante. Senti-me num lugar profundamente hostil.

   No final, quando o moderador deu a palavra ao público, várias pessoas quiseram interpelar a tribuna. Uma psicóloga disse que o próximo passo não seria o da adopção por casais homossexuais, mas a legalização da pedofilia, confundindo as realidades absolutamente distintas. Aplaudiram-na. Entrei em choque. Juristas, pessoas de diversas áreas entre centenas que ali estavam. Como é possível que não raciocinem? A maioria dos pedófilos, que têm uma parafilia (a homossexualidade é uma orientação sexual minoritária), é heterossexual. Felizmente, dois rapazes usaram da palavra. Um deles, que eu conheço, é heterossexual e defensor da co-adopção. Confrontado com o que disseram, do ambiente sadio para uma criança entre um pai, homem, e uma mãe, mulher, contou que foi criado só pela mãe e indagou se, por esse facto, a sua família seria anormal na perspectiva do psicólogo. Arrancou alguns aplausos.

   A maior das surpresas estaria por vir. O tal colega, que estivera ao meu lado na palestra anterior, fez um discurso emotivo. Perante trezentas e muitas pessoas, assumiu-se como homossexual. Colegas, professores, membros da Associação de Estudantes, pais e mães, um repórter que gravava. Entre frases que soluçavam e custavam a sair, perguntou se o achavam "anormal", em clara ironia, argumentando a favor das crianças felizes, que as há, que moram com casais homossexuais (isto em resposta ao psicólogo, que dissera, anteriormente, que os estudos mais credíveis dão conta de uma propensão a problemas mentais, depressões, suicídios, etc, em crianças que coabitam com casais do mesmo sexo). Demorou poucos minutos e recebeu algumas ovações entusiásticas. Também o aplaudi. Dever-me-ia ter levantado, como alguns. Não o fiz.

   Passava das vinte. Pedi licença à minha colega, de forma a que ela se levantasse, e saí. Vim todo o caminho, de metro, a pensar no que o meu colega acabara de fazer. A sua coragem. Não falo de uma sala circunscrita a dez pessoas: estavam centenas e uma câmara de filmar. Chegando a casa, abri o facebook e fui procurá-lo. Antes de falar, como todos, disse o seu nome, que supus o primeiro. Coloquei na pesquisa e, graças a amigos em comum, depressa apareceu. Enviei-lhe uma mensagem a dar-lhe os parabéns. Respondeu-me horas depois. É uma simpatia. Admiro-o. Deveria ter esperado pelo fim para falar com ele, cumprimentando-o. Temi a sua reacção.

   Não defendo que se fale de detalhes tão pessoais e íntimos. Eu não o faria. Ele fê-lo porque sentiu que tinha esse dever, que tinha de dar a voz ao presenciar ataques tão infames como aqueles que se fizeram ali. Quis mostrar àquele bando, religioso, fanático, que não tinha medo. No fundo, representou-me a mim e a todos, a muitos de vós que lêem isto. Sente-se leve. Adjectivo seu.

    Obrigado, D.